quarta-feira, 29 de julho de 2009

O DILEMA

Tempos atrás, a filha, então com quinze anos, irrompera no seu escritório:
— É verdade o que me contaram, papai?
Tércio ergueu-se da cadeira giratória, fez a volta da mesa e veio falar com a garota, face a face. Ela continuou, com o lá­bio inferior tremendo:
— É verdade que mamãe se matou?
Recuou, atônito.
— Quem?
E ela:
— Mamãe. É verdade que ela se matou? É verdade que o senhor obrigou minha mãe a se matar? Responda, papai! Quero saber! É verdade?
Antes de responder, ele, muito pálido, foi fechar a porta do gabinete à chave. Voltou-se para a filha. Com uma aparente serenidade, que escondia seu dilaceramento, perguntou: “Quem te disse? Quem te contou?”. Antes, porém, que Malva abrisse a boca, o velho Tércio mergulhou o rosto entre as mãos e re­bentou em soluços. Sem uma palavra, num misto de fascinação e de asco, ela viu o pranto do homem que punha acima de tu­do e de todos. Finalmente, ele ergueu o rosto devastado:
— É verdade, sim! Sua mãe se matou, porque eu quis, por­que eu mandei!

O SUICÍDIO

Fora criada na lenda piedosa segundo a qual a mãe havia morrido de parto. Sejam os parentes, sejam os mais íntimos da casa, todos confirmavam a versão generosa. Eis que, de repen­te, um telefonema anônimo e brutal colocara a menina diante da verdade. Correu ao pai e este confessou. Malva crispou-se de pena e angústia. Apertou, de encontro ao seio, a cabeça do velho: “Oh, papai!”. E, então, Tércio passou duas, três horas, com a filha no colo, contando a tragédia de sua experiência ma­trimonial. Explica: “Eu sempre te escondi isso, porque não que­ria ser cruel com uma morta. Mas já que te contaram...”.
Malva ouviu como espantada, com sofrida curiosidade. Sou­be que a mãe fora infiel e que o pai criara o dilema: “Ou tu te matas ou eu te mato!”. Ele mesmo, com um ódio sóbrio e ina­pelável, preparou o copo com o veneno e lhe ofereceu:
— Toma, anda!
Antes de beber, ela balbuciara: “Deus abençoe minha fi­lha”. Malva tinha sete ou oito anos de vida, só. Tantos anos de­pois, ao conhecer a verdade, da boca do próprio pai, quis sa­ber, com uma curiosidade não isenta de doçura: “Era parecida comigo, papai?”.
Tércio agarra-se à filha; tem um esgar de choro:
— Demais! Parecida demais!
Crispa as mãos num apelo: “Mas não quero que tenhas o mesmo destino! Não quero!”.

OBSESSÃO

A partir deste momento, Malva foi outra. Andou pela casa, procurando nas gavetas, nas malas, um retrato dessa mãe tão linda e tão infeliz como uma Inês de Castro. Morrera de amor e isto bastava. Passou vários dias imersa numa meditação deli­ciosa. De vez em quando, o pai a surpreendia diante do espe­lho, enamorada de si mesma.
Visitas começaram a observar: “Malva está ficando mais mu­lher, não está?”. As velhas parentas cochichavam entre si: “É a mãe escrita e escarrada!”. E, então, Tércio percebeu que mu­davam os hábitos da filha única. Não parava em casa. Vivia com amigas, em festas, cinema, teatro. Em casa, o telefone não para­va: “Malva está?”. Até que, uma tarde, um velho amigo de Tér­cio vem procurá-lo. Primeiro, faz a ressalva:
— Olha, fulano: eu não gosto de me meter na vida dos ou­tros. Mas acontece o seguinte: sou teu amigo, do peito; gosto mais de ti do que de meus irmãos. Compreendeste?
Pigarreou:
— Toca o bonde.
O outro baixa a voz:
— Tércio, abre o olho.
— Por quê?
— Abre o olho, porque tua filha foi vista, de automóvel, com um homem casado, sabe onde? Na avenida Niemeyer. O negócio é batata.
Não chorava desde a morte da mulher. E, agora, as lágri­mas caíam-lhe dos olhos, de quatro em quatro. Baixou a cabe­ça: “Obrigado”.

PAI E FILHA

Quando Malva chegou, muito linda, linda demais, ele a in­terpelou. Referiu a denúncia e, na sua cólera contida, quis sa­ber: “É verdade?”. A princípio, Malva nega, ferozmente. Ele, porém, continua: “Quero a verdade!”. Acaba explodindo: “Pois é verdade, pronto, é verdade!”. O pai a contempla, estupefato. Nunca fora tão viva a semelhança entre mãe e filha. Dir-se-ia a mesma graça frívola e pungente. Fora de si, ele põe-se a gritar dentro da sala:
— A senhora não me sai mais de casa! Não me põe o pé na rua!
Estava sentada, ergueu-se. Com um brilho cruel nos olhos azuis (tão parecidos com os da que morrera), desafiou o velho:
— Papai, eu tenho um encontro marcado com essa pessoa, amanhã, às quatro horas. Quero que o senhor saiba: se eu não for, eu me mato, papai, eu me mato!
Ele não dormiu nada nessa noite. Andou no quarto, de um lado para o outro, até o amanhecer. Mais tarde, no escritório, não trabalhou. Às três e meia, bate o telefone; era a filha. Per­gunta:
— Posso ir, papai? Está na hora. Posso ir?
Ele faz um esforço sobre si mesmo:
— Não!
Silêncio. E, súbito, ela tem no telefone um riso soluçante, terrível: “O senhor matou a mãe. Agora vai matar a filha!”. Corta a gargalhada; novamente serena, diz, calçando as palavras: “Pa­pai, quando o senhor entrar em casa, vai encontrar o meu cadáver!”. Desliga. O velho perde a cabeça. Chorando, voa para casa. Diante da filha, é um trapo humano. Diz apenas:
— Vai, pode ir.

MALUQUINHA

Era verdade, sim, a aventura com o homem casado. Nos dias seguintes, os parentes vinham falar espavoridos com o ve­lho. Punham as mãos na cabeça: “Você deixa? Você topa?”. Ele respondia: “Só não quero que minha filha tenha a sina da mãe. O resto não interessa”. Mas o escândalo foi tão violento que ele, afinal, tentou descobrir a solução. ,Conversa com a filha: “Mas não é nem um casamento no México? No Uruguai?”. Mal­va o desiludiu:
— Que esperança, papai! Ele vive até muito bem com a mulher!
Duas ou três vezes, Tércio tentou intervir. Ela, porém, o gelou, com ameaça: “Olha, papai: já tenho o veneno. O senhor quer que eu me mate como a mamãe? Quer? É só dizer!”. Fazia o desafio com uma frivolidade cínica que o aterrava.
Tércio recuava, porque jamais esquecera a que obrigara a matar-se. Até que, um dia, é procurado por uma senhora em estado interessante. Conta, chorando: “Sua filha me tirou o ma­rido. Meu filho vai nascer sem pai”.
Não soube o que dizer a essa mulher que ia ser mãe e que estaria no sétimo ou oitavo mês de gravidez. De noite, chama a filha; tranca-se com ela no gabinete. Começa a contar a visita que recebera, mas ela o interrompe: “É verdade, sim. E daí?”. Desafiava-o como das vezes anteriores. Então, Tércio lembra-se da outra, a que morrera. Levanta-se: “Eu volto já”. Reapare­ce, pouco depois, com um copo cheio. Fez a filha segurar o co­po. Põe o revólver em cima da mesa, ao mesmo tempo que cria o dilema:
— Ou tu bebes isso ou te mato.
Apanhou o revólver e apontou para o coração de Malva. Diante do pai, ela bebeu até o fim. Depois, largou o copo va­zio, que se estilhaçou no chão.

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