sábado, 11 de julho de 2009

O RAFFLES

Foi para São Paulo, de avião. Devia demorar-se, lá, talvez uma semana. Desembarcou, fez seus negócios e, às duas horas da manhã, apanhou o telefone do hotel:
— Eu queria um interurbano.
— Para onde?
— Rio.
Deu o número e o nome. Estava no quarto, que era no dé­cimo andar, e estava morto de saudades. Casado há três anos, era doido pela esposa. Confessava mesmo, com certo heroís­mo: “Se eu perdesse minha mulher, deixaria de ser homem”. Exagero, como se vê. Mas era incontestável a paixão de Eusebiozinho. Diga-se de passagem que a mulher merecia, fisicamen­te, essa paixão. Com vinte e três anos, podia ser considerada uma das pequenas mais bonitas do Rio. E, em casa, na rua, no ônibus, em toda a parte, viviam num agarramento de namora­dos ou amantes. Uma vez, foi até interessante. Foram a um ci­nema e, em dado momento, o vaga-lume apareceu e fulminou aquele casal suspeito e inconveniente. Eusebiozinho foi tomar satisfações com o funcionário do cinema. Enfiando o dedo na cara do outro, berrou: “Pois fique sabendo que é minha espo­sa!”. Os amigos, quando os viam, naquela felicidade inalterá­vel e irritante, saudavam:
— O único casal feliz do mundo!

O LADRÃO

Enfim, foi completada a ligação. Eusebiozinho, sôfrego, no telefone, desmanchava-se: “Como vai essa coisinha louca?”. Perguntava: “Tu aceitas um beijo nessa boquinha?”. Eram dengues de namorado, que ele preservava ao longo dos dias e meses. Ela respondia qualquer coisa, que ele não escutava muito bem. O telefone estava péssimo. E o rapaz, na sua avidez de apaixo­nado, não queria perder uma sílaba. De repente, julgou captar a palavra ladrão. Insistiu:
— O quê? Fala mais alto, meu anjinho, fala com a boca en­costada no fone! Agora repete!
Ela repetiu, quase soletrando:
— Entrou ladrão, hoje, aqui em casa!
— Ladrão?
— Pois é!
Atônito, apavorado, berrava, agarrado ao telefone.
— Mas que negócio é esse? Fala mais alto, meu amor! Não estou ouvindo tostão!
— Alô! Alô!...
A voz da mulher fugiu de todo. Histérico, bateu no gancho:
— Telefonista! Telefonista!
Nada. Acabou desligando. Estava fora de si. Pensou nesse ladrão que invadira sua casa. E o pior é que Luciana estava só e, em conseqüência, indefesa. Pôs-se a pensar nas possibilida­des que contém um assalto. Digamos que o miserável, vendo Luciana, linda e solitária, em pleno sono, numa de suas camisolas diáfanas e decotadas, perdesse a cabeça. Foi a hipótese de não sei que ultrajes que o inspirou naquele momento. Meia hora de­pois estava no aeroporto e se instalava no avião de regresso. Deixava interesses importantíssimos em São Paulo, negócios muito sérios que exigiam sua presença lá. Mas tomou a resolução na seguinte base: “Primeiro, Luciana. O resto que vá para o diabo que o carregue!”.

O ASSALTO

Moravam numa ruazinha tranqüila e idílica da Tijuca. To­dos os moradores se conheciam e se davam como se fossem uma família só, numerosa e solidária. Quando Eusebiozinho rea­pareceu, esbaforido, metade da vizinhança se concentrou na sua casa. Luciana se atirou nos seus braços. E, depois dos primei­ros beijos, ela teve o desabafo:
— Ainda bem que você voltou! Graças a Deus!
E ele, sentando-se, afrouxando a gravata:
— Não te deixo mais, nunca mais, nem que o mundo ve­nha abaixo. Mas, meu anjo, como foi o negócio? Entrou ladrão, foi?
— Imagina o perigo, meu filho! E sabe quem foi que viu o ladrão? Dona Tereza!
Eusebiozinho virou-se para a indigitada, que confirmou. E veio, então, a minuciosa reconstituição. A pobre Luciana, sem desconfiar de nada, fora se deitar às dez horas, depois de con­versar no portão com algumas vizinhas. Como tinha um dor­mir muito fácil, pegou logo no sono. E não vira nada, não tive­ra a mínima noção do perigo. O marido, pálido, tomava-se de um furor impotente, ao pensar nesse desconhecido, nesse ho­mem, que entrara no quarto de sua mulher. Ocorria-lhe que as camisolas de Luciana eram sumárias. E, no mais íntimo de si mes­mo, teve ciúmes do gatuno. Luciana, porém, continuava a his­tória. Cerca de onze e meia, d. Tereza, ali presente, estando com muito calor e consumida de insônia, viera para a janela. Trazia uma revista, com que se abanava. E foi então que, de repente, vê na casa de Eusebiozinho um vulto mais do que suspeito. Es­tando o dono da casa em São Paulo, uma coisa era óbvia: aque­le vulto, evidentemente masculino, tinha que ser, logicamente, ladrão. Os presentes foram unânimes:
— Claro!
D. Tereza tratou de recuar, de espiar por detrás das corti­nas. O ladrão, colado à parede, ainda espichou o pescoço, num reconhecimento do ambiente. Não vendo ninguém, encheu-se de ânimo. Correu e, para não perder tempo, pulou o pequeno portão e, então, a vizinha pôde vê-lo melhor. Eusebiozinho bufou:
— Cachorro!
Uma vez na calçada, o ladrão corria procurando não pisar forte, por causa do barulho. Foi depois disso que, caindo em si, d. Tereza pusera a boca no mundo. Num instante, a rua in­teira estava em polvorosa. A pobre da Luciana acordara com o alarido. Eusebiozinho, enxugando o suor da testa, queria saber: “Como era ele?”. D. Tereza deu a primeira informação: “Bem vestido, alinhado, simpático”. Eusebiozinho abriu a boca e d. Tereza confirmou:
— Nem parecia! Bonitão mesmo!

O RAFFLES

Era um desses casos que excitam as imaginações pelo novelesco. O fato de ser um gatuno bonito já era excepcional. E, além do mais, havia uma circunstância: não desaparecera nada, absolutamente nada. Eusebiozinho coçava a cabeça:
— Mas não desapareceu nada? Tem certeza? Vê lá!
E a mulher:
— Nada.
Para o rapaz, que tinha ciúmes até dos móveis, o episódio assumia aspectos cada vez mais desagradáveis. Estaria disposto a admitir um larápio maltrapilho, imundo e boçal. Mas aquele gatuno elegante ou, segundo o detestável termo de d. Tereza, “bonitão”, enchia-o de despeito e de cólera homicida. Pediu um revólver emprestado: “Meto uma bala nesse desgraçado!”. A mulher protestava: “Pra que matar, meu filho?”. Ele, atiran­do patadas no chão, confirmava os propósitos homicidas:
— Mato sim! Mato esse cão!
E, de fato, já não dormia direito. Qualquer rumor o fazia saltar da cama, de revólver em punho. Luciana tratava de apaziguá-lo: “Isso já é mania, Eusébio! Vem deitar, vem, meu fi­lho!”. Afinal ele vinha. Todas as tardes, ao voltar do emprego, parava na porta de d. Tereza. Fazia e repetia as perguntas: “A senhora o reconheceria se o visse?”. Ela afirmava:
— Claro! Sou muito boa fisionomista, graças a Deus!
O aspecto que mais deslumbrava a santa senhora, no caso, era a analogia entre o gatuno da Tijuca e o Raffles dos livros. Ela jamais imaginara encontrar, na vida real, um criminoso grã-fino. Fantasiava: “No mínimo, ele freqüenta bailes, usa casaca”.

O ENCONTRO

Uma noite, houve um baile grã-fino, na Gávea. E, por coin­cidência, d. Tereza também foi. No automóvel, Eusebiozinho ia conversando com a vizinha. Na sua idéia fixa, fez a confis­são: — “A única coisa que não topo é ladrão!”. E exagerou mes­mo: — “Devia-se matar os ladrões a pauladas no meio da rua!”. D. Tereza, assustada com essa ferocidade, ponderou:
— Mas você não pode se queixar. Arranjou um ladrão ultracamarada, que não roubou nada!
Enfim, chegaram na festa. Luciana ia muito linda e o pró­prio marido, apesar desta condição, olhava para o decote ousa­do e revelador. Fez, para si mesmo, uma reflexão melancólica: “Mulher bonita demais é espeto!”. E a verdade, a aterradora ver­dade, é que Luciana era bonita demais. Suspirando, com um princípio de tormento, Eusebiozinho rendeu à gorda d. Tereza uma homenagem convencional: convidou-a para uma primeira dança. Iam os dois pela sala, nas evoluções do fox, quando d. Tereza estaca. Esbugalha os olhos e cutuca seu par: — “O ladrão!”. Eusebiozinho empalideceu: — “Onde?”. E ela: — “Ali!”. Sim, lá estava ele, o miserável, num smoking impecá­vel, quase belo, cercado de moças. A pura e simples verdade é que ele as fascinava e elas pareciam magnetizadas, Assombra­do, Eusebiozinho interpelava a vizinha: — “Tem certeza?”. Ela foi definitiva:
— Pela luz que me alumia!
Então, o rapaz não perdeu mais tempo. Foi direto à dona da casa e dramatizou, indicando o Raffles: “Há um ladrão entre seus convidados”. Quando a dona da casa viu o suspeito, até achou graça: “Mas aquele é o doutor fulano, engenheiro, mi­lionário, tem vários Cadillacs!”. Ele, desconcertado, foi obrigado a admitir o engano, o mal-entendido. Eram duas horas quando voltaram, os três. D. Tereza, apavorada e num constrangimen­to evidente, admitia que se enganara. De vez em quando, olha­va para Luciana, suspirando. Eusebiozinho não abriu a boca, e Luciana parecia feliz.
Podia ser mal-entendido, gafe, o diabo. Mas o fato é que, no quarto, ainda de smoking, deixou-se possuir de uma certeza mortal. A mulher, diante do espelho, tirava os brincos. Ele apa­nhou o revólver. E, muito calmo, disse:
— Não tenho coragem de te matar.
Luciana viu, através do espelho, quando o marido encos­tou o cano do revólver na própria fronte e apertou o gatilho.

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