terça-feira, 7 de julho de 2009

TOQUINHOS DE BRAÇOS

Foi um caso sério. Nove meses exatos depois do casamen­to, começaram as dores. E, como fosse o primeiro filho, telefo­naram para o marido:
— Venha imediatamente!
O rapaz, lívido do outro lado da linha, perguntou:
— É pra já?
— Parece.
Ele se arremessou pela escada e acabou de vestir o paletó dentro do táxi. Outros parentes foram avisados, vizinhos, o dia­bo. Como Marieta era geralmente benquista, logo a casa se encheu de gente. A parteira já estava no quarto e passavam cria­das, com bacias e jarros. Na sala, corredor e hall, havia a con­jectura natural: “Menino? Menina?”. A prima solteirona, muito religiosa, fazia promessas. Então, começou a tragédia. Marieta gritou quatro dias e quatro noites. A criança não nascia e a jo­vem mãe dizia, num intervalo de um grito para outro: “Eu não posso, meu Deus, eu não agüento!”. O marido, descabelado e insone, soluçava na sala de jantar e no corredor, como uma criança. Veio o médico e nada: houve um momento em que a cesariana parecia inevitável. Finalmente, a criança nasceu. E morta.

A MATERNIDADE

Na manhã seguinte, a rua em peso romanceava aquele par­to. As vizinhas, de janela em janela, trocavam impressões:
— Quantos pontos?
— Dezenove!
— Que barbaridade!
O marido, Durval, dava graças a Deus que a mulher tivesse escapado, viva, daquele sofrimento pavoroso. Em casa, com os parentes, foi categórico: “Nunca mais! Nunca mais!”. Com isso queria dizer que não queria mais filhos. Uns concordavam: — “Faz bem. É isso mesmo”. Outros suspiravam: “Tão triste um casal sem filhos!”. Quanto a Marieta, muito fraca, duma palidez apavorante, não estava ainda em condições de opinar. Parecia defunta. Sua convalescença foi bastante lenta. Um dia, passea­va com o marido pelo jardim da casa. Ele, de braços com a mu­lher, repetiu: “Nunca mais, meu anjo, nunca mais!”. Marieta es­tacou e ergueu para ele o rosto pálido:
— Eu quero um filho. Pelo menos um!
— Mas você não pode, fulana!
E ela obstinada:
— Quero, sim, quero. Ouviu?
Vendo-a pálida, o lábio inferior tremendo, lágrimas nos olhos, Durval teve medo: “Está bem, minha filha, concordo, pronto”.
Três ou quatro meses depois, a notícia correu em meio dos amigos, vizinhos e parentes: “Marieta apanhou barriga outra vez”. Os mais assustadiços se perguntavam: “Será que vai ser a mesma agonia?”. Desta vez, fizeram tudo. Tratamento de san­gue, visita ao médico de quinze em quinze dias, dieta, o diabo. O médico parecia otimista:
— Tudo ok. A criança está em boa posição. Por enquan­to, não há novidade.
A roupinha toda do primeiro, do que nascera morto, esta­va lá intacta. Mas a moça, muito supersticiosa, comprou um novo enxoval, com medo de um azar possível. Fez promessas e não se separou do rosário e do livro de orações. Até que, na data prevista, começaram as dores. E foi matemático. Durante qua­tro dias e quatro noites, encheu a casa e as ruas com seus gri­tos. O marido abotoou o médico no corredor: “Se minha mu­lher morrer, eu te passo fogo!”. Quando Marieta já não tinha mais forças e voz, a criança nasceu e morta. O marido, na cozi­nha, chorava de cortar o coração:
— Mas por quê, meu Deus, por quê?
O que o aterrava era a constância da tragédia: dois filhos mortos! Quanto a Marieta, perguntava: “Que foi que eu fiz? Eu não fiz nada! Eu não merecia essa sorte!”. Ou, então, interpela­va qualquer pessoa presente:
— Por que é que as outras têm filhos e eu não posso ter?

A EXPLICAÇÃO

Essa maternidade frustrada era uma humilhação para ela. Sentia-se inferiorizada perante as mulheres em geral e as vizi­nhas em particular. Uma dessas tornara-se sua inimiga e a dei­xara de cumprimentar: chamava-se d. Ifigênia, e entre uma e outra havia uma guerra contínua e indireta. As duas se hostili­zavam através de terceiros. Esse pavoroso disse-que-me-disse excitava a rua inteira. Havia partidários de Marieta e de Ifigê­nia. Pois bem, pois bem. Quando morreu o seu primeiro filho, Marieta desabafou:
— Isso com certeza foi praga daquela cretina!
Praga ou não, o fato é que d. Ifigênia acompanhava, com o maior interesse, o martírio da inimiga. Segundo os maledicentes, d. Ifigênia, ao saber que o filho da outra morrera, fez o co­mentário: “Foi castigo!”. Seria verdade? Seria mentira? Quem sabe? Uma coisa, porém, era verdade: enquanto ela gritava com as dores, d. Ifigênia, em casa, cantava o “Danúbio azul”. E, agora, Marieta vivia com a idéia fixa:
— Já sei por que que meus dois filhos morreram!
— Por quê?
E ela:
— Por causa dessa jararaca. No mínimo, fez alguma macumba!
— Ora, que bobagem!
Tentavam dissuadi-la: — “Parece criança!”. Mas não havia raciocínio que a impressionasse. Seu ideal era ter um terceiro filho, e vivo. Imaginava o despeito da outra quando a visse na calçada com a criança. E já antegozava: — “Ela vai ficar com cara de tacho!”. Durval, ao lado, ponderava:
— Toma juízo, Marieta! E, afinal, vem cá. Você quer o fi­lho para irritar a vizinha?
— Quem sabe?
Enfim, ela se preparou para o terceiro parto, embora sob os protestos do marido. Novas promessas, novos cuidados. Quando, já deformada, passava pela casa da outra e a via na ja­nela, cruzava os dedos. Finalmente, chegou a grande hora. Em meio do seu sofrimento, fazia o apelo interior: “Tomara que viva! Tomara que viva!”. Não lhe saía da cabeça a imagem da vizinha na janela. Mas teve o filho e morto. D. Ifigênia soube e pôs todo o volume do rádio. Como era um programa carna­valesco, Marieta teve, para sua tragédia, um fundo de sambas e marchas.

O MARIDO

Uma semana depois, apareceu uma parenta velha. Foi encontrá-la numa tristeza obtusa, irremediável. De vez em quan­do, Marieta interrompia a conversa para perguntar: “Que mal fiz eu a Deus?”. A pessoa que no momento estivesse presente não sabia o que dizer. Ou se limitava a uma exclamação inócua: — “Que coisa!”. Esta parenta, porém, foi mais longe. Baixou a voz: — “Eu conheço um caso assim. Parecidíssimo!”.
— Conhece?
Explicou que conhecia, sim, e, a pedido de Marieta, forne­ceu detalhes. Era uma moça que perdia um filho atrás do ou­tro. Sabe por quê? E cochichou:
— Porque o sangue do marido e o da mulher não combi­navam. Depois ele morreu e ela casou outra vez. Pois teve cin­co filhos, vivinhos da Silva, e uns filhos que eram uns amores!
— Ora veja!
Foi o comentário único e maravilhado de Marieta.
Quando a parenta saiu, mergulhou numa ardente medita­ção. Era então isso? Via o marido com outros olhos. Ele, como sempre, inclinou-se para beijá-la. Desta vez, porém, ela fugiu instintivamente com o rosto. Sem desfitá-lo, balbuciou: “Meu sangue e o teu não combinam!”. Durval teve um momento de surpresa: “Que besteira é essa?”. Não era besteira, era um sen­timento que nascia em Marieta e que rompia das profundezas de seu ser. Durante quatro ou cinco dias, não pensou noutra coisa. E, além do mais: ela e o marido eram primos. Esse frágil, esse tênue parentesco parecia confirmar a hipótese da velha: — “É isso! Batata que é isso!”. Aconteceu que, nessa fase, passou pela porta da vizinha e a viu lá. Fosse ilusão ou não, julgou per­ceber na outra uns ríctus sardônicos. Voltou para casa desespe­rada. O marido teve que explodir:
— Você parece maluca! Você só pensa nessa mulher!

O PECADO

Como andasse muito nervosa, o médico recomendou que passasse de quinze dias a um mês na montanha. Foi sozinha, porque o marido não podia acompanhá-la. Na estação, ao despedir-se dele, disse, com uma certeza fanática: “Hei de ter um filho”. Durval saiu pensando que a mulher era dominada por uma psicose. No hotel da montanha, Marieta fez novas ami­zades. E era muito vista com um rapaz, corretor de imóveis e viúvo, forte, bonito, de um élan vital tremendo. Um domingo, o filho do rapaz, um garoto de sete anos, apareceu por lá com uma tia. Foi olhando a criança, loura, sadia, ideal, que ela se de­cidiu.
Dias depois, voltava subitamente para a cidade. Vinha ou­tra, transfigurada, um olhar mais doce e mais intenso, como al­guém que, enfim, conquista uma certeza maravilhosa. O mari­do a esperava; ela o beijou, sôfrega. Mudara muito, cantarolava o dia todo e nunca a sua feminilidade fora tão encantada. O pró­prio Durval a interrogava: “Que é que há contigo?”. Uma tarde fez a revelação: — “Acho que estou!”. O marido não disse na­da para não magoá-la. Fez, porém, o comentário interior: “Es­peto!”.

O PARTO

E só pensava na vizinha: “Desta vez, ela vai ficar com cara de besta!”. Sua gravidez transcorria tranqüila e feliz. Durval co­çava a cabeça, inquieto; mas o próprio médico não escondia o otimismo: — “Está tudo ok”. Até que chegou o dia. As do­res se tornaram mais curtas e intensas. Desta vez, Marieta con­seguia não gritar. Mordia o lençol. E, assim, sufocando os próprios gemidos, não deu a d. Ifigênia o gostinho de abrir o rádio. A expectativa do marido, do resto da família, do pró­prio médico era tremenda. Nasce a criança. E a jovem mãe ouve o seu choro. Então, faz um esforço para exclamar:
— Graças, meu Deus, graças!
Ela pensa na vizinha que ficará possessa. Mas o médico e a parteira não sabem o que dizer. O menino não tem bra­ços, ou, por outra, tem uns toquinhos no lugar dos braços.

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