quarta-feira, 19 de agosto de 2009

CAPÍTULO I

Era em Vaz Lôbo, uma segunda-feira. De manhã, bem cedinho — seriam umas sete ou sete e meia, no máximo — apareceu a andorinha, com a mudança. O caminhão enorme, que entupia a rua, encostou no 78, que era, justamente, a última casa da Vasconcelos Graça, do lado esquerdo de quem vem. Prédio velho e triste, de um andar só, com a pintura descolando nas paredes. O último inquilino, um “seu” Felipe, saíra de lá em rabecão. A mulher o abandonara, levando os filhos, um menino e uma menina. “Seu” Felipe, su­jeito caladão, sempre de cara amarrada, era sócio de uma casa de jóias, na cidade. Traído e abandonado, tomou um corrosivo violento. Morreu junto ao rádio que estava ligado para o programa do Jóquei, na “Jor­nal do Brasil”. Enquanto estrebuchava no chão, o Teófilo de Vasconcelos anunciava, ao microfone: — “Foi dada a saída!” Pois bem: — atiraram o homem num caixão de alumínio e o rabecão levou o corpo para o Instituto Médico-Legal. De lá, veio para uma capelinha, junto do Pronto Socorro. A espôsa apareceu, no velório, de passagem. Chega, pára, faz uma prece. Em seguida, suspende um filho de cada vez; e, emborcan­do a criança sôbre o rosto do cadáver, dizia-lhe:
— Beija teu pai, beija.
Cada um dos filhos roçou com os lábios aquela testa úmida. E a menorzinha, a menina, sentiu na bôca o suor do defunto. Fêz uma caretinha de nôjo e cuspiu nas costas da mão. Zózimo de Barros Guimarães veio morar, com a família, na mesma casa. Naturalmente, a senhoria aproveitou para aumentar o aluguel que, no tempo de “seu” Felipe, era quase de graça. Mas, como eu ia dizendo: — encostou o caminhão e, logo a seguir, veio o táxi com os novos moradores. “Seu” Zózimo saltou na frente e pagou o automóvel. Desceram a mulher, D. Engraçadinha, bonita senhora, e os cin­co filhos: — o rapaz, Durval, de 19 anos, cujo perfil lembrava o do falecido John Barrymore; e as meni­nas: — Matilde, a mais velha, com 17 anos, Arlete, com 16, Margarida (ou Cuida), com 15, e Silene, a caçula, com 14. A mais velha emprestava à menor o lenço amarrotado:
— Limpa o nariz.
Resfriada, Silene estava, desde a véspera, coro uma coriza inestancável. Vizinhas, das janelas próxi­mas viram a garôta assoar-se. Entraram todos e Dur­val, que foi o último, ainda se virou e olhou uma mo­rena robusta, que aparecia, no sobrado defronte, ao lado de uma velha e uma criança. A morena, cheia de corpo, seria a primeira amizade da família naquela rua. Chamava-se Altamira e era professôra de acor­deão.
Na sala de visitas, “seu” Zózimo trata de abrir as janelas, de par em par, para que o sol entrasse. Sabia que o último inquilino morrera ali. Não pôde evitar a reflexão: — “Será que eu vou também?”. Viu-se morto, com os pés amarrados, com algodão nas nari­nas. Chama a mulher:
— Escuta aqui, Engraçadinha!
Eis a verdade: — era marido e tinha-lhe mêdo. Tudo na espôsa o intimidava e o pior momento, sem­pre desagradável e ameaçador, era quando ficavam sòzinhos, no quarto. Para “seu” Zózimo, a companhia da mulher era a solidão irremediável. Êle achava graça ao ouvir falar em “intimidade conjugal”. Não havia, ali, nenhuma intimidade, nem quando estavam na cama, nem quando dormiam juntos, nem quando faziam os filhos. Não entendia nem aquêle nome ines­perado de Engraçadinha. Parecia mais um apelido de família e não um nome oficial, de batismo, de registro civil, de certidão de casamento e, futuramente, de ates­tado de óbito. De vez em quando, êle bebia — adquirira o vício da bebida — e, com uma insolente coragem alcoólica, fazia-lhe a pergunta:
— Quem é você?
Claro que, sóbrio, não teria jamais o desplante de interrogá-la. Andando de um lado para outro, D. En­graçadinha (era protestante) estava sempre fazendo alguma coisa — resmungava
— “Vocês” não me entendem.
“Vocês” era o marido. Usava o plural para humi­lhá-lo, talvez. E com os filhos, a mesma coisa. Chama­va cada um de “vocês”. E o marido, quando sóbrio, perguntava de si para si: — “Como é que eu fiz filhos nessa cara?” Precisava repetir para si mesmo como se quisesse adquirir uma certeza impossível: — “Já foi minha! no escuro, mas já foi minha!” No escuro, sim. Sempre de noite, jamais de dia. Podia repetir de si para si ou anunciar para todo mundo: — “Eu nunca a vi nua!” Era verdade. Nunca, nunca!

* * *

Êle costumava beber nos botecos mais inesperados e mais sórdidos. Evitava os bares de melhor aspecto o sobretudo, os de luz fluorescente. Não tolerava a luz fluorescente e preferia as lâmpadas antigas, amare­ladas e tristes. Bebia até encharcar-se, ora cerveja, ora cachaça. Ensopando-se de álcool em comunhão com bêbedos desconhecidos, “seu” Zózimo pensava no seu amor. Aliás, no ônibus, no lotação ou no trabalho, ocorria-lhe comumente evocar sua primeira noite com D. Engraçadinha. Ouvia ainda a voz da mulher:
— Fecha a luz.
Êsse amor nas trevas, como se fôssem dois cegos, era o seu ódio. Nunca a vira nua, nunca. Ou por outra: — já a vira, sim, uma única vez, por um segundo, uma fração de segundo, Ela estava no banheiro, tomando banho. Ah, êsse corpo molhado! Levanta-se devagar, os pés descalços. Êle próprio se sentia abjeto. Fora de si, de cócoras, quase de gatinhas, colara o ôlho no bu­raco da fechadura. Era o tempo em que as portas ainda tinham buracos de fechadura. Vira aquela nudez mo­lhada e total. Mas sentia uma tal pusilanimidade diante da mulher que não teve coragem de prolongar aqui­lo. Voltou para a cama, o coração aos pinotes. Meteu-se debaixo da coberta — tiritando de febre. E esperou. D. Engraçadinha vem do banheiro. Está com um quimono azul, já esgarçado nos cotovelos, “Seu” Zózimo empurra o lençol; balbucia o apêlo:
— Querida...
Afasta-se para dar-lhe espaço na cama. D. Engra­çadinha estaca; olha-o, espantada; e recua, murmu­rando:
— Você olhou!
Protesta.
— Não!
— Olhou, sim! Eu sei que olhou!
— Eu juro! Queres que eu jure? Dou-lhe minha palavra de honra!
Sentia-se mais abjeto do que nunca. Mas D. En­graçadinha não o odeia mais. O ódio extinguira-se no seu coração, até o último vestígio. Olha-o com um es­panto sem piedade. Diz, lenta, sem desfitá-lo:
— Você é um canalha. Você se casou comigo por­que é um canalha.
O pobre-diabo teve vontade de tapar os ouvidos. Pedia, por tudo, que ela parasse, que não dissesse uma palavra mais. O pior de tudo é que D. Engraçadinha falava sem paixão nenhuma, nenhuma. Estava com o quimono em cima da pela (e êle a vira sem nada, tão nua, pelo buraco da fechadura!). Com uma incons­ciente graça feminina ela enxuga a nuca, por debaixo dos cabelos molhados. Disse, nada irritada.
— Saia.
Passou por ela, de cabeça baixa. Ela o enxotava como quem afasta uma barata com o lado do pé.
Agora estavam ali, em Vaz Lôbo. “Seu” Zózimo foi espiar no corredor e especular, calcando o assoalho gasto: — “Aqui deve ter escorpião”. No banheiro e na cozinha, azulejos descolavam das paredes. D. En­graçadinha dá ordens aos sujeitos do caminhão:
— Olha: — põe isso aqui.
O homem, um crioulão, quase um “King-Kong”, colocou num canto o sofá esburacado. “Forte pra chuchu”, pensa Silene, passando as costas da mão na coriza, “Seu” Zózimo dá um pulo no quintal. Chão de cimento rachado, um pequeno tanque de lavar roupa, e, em cima, uma caixa d’água, onde iriam encontrar, mais tarde, uma ratazana morta boiando.
Bonita, sim, bem bonita. Assim era D. Engraçadi­nha. Pena é que não se cuidasse mais. “Para que?” perguntava ela. “Sou uma velha”, suspirava. Mas fôra linda, linda, e já aos 13 anos tinha um corpo de mulher. Pertencia a uma das melhores famílias do Es­pírito Santo. Em Vitória, àquele tempo, quem não conhecia o Dr. Arnaldo, ou seja, por extenso: Dr. Ar­naldo Pereira de Almeida, advogado e orador como poucos? Ganhara causas importantíssimas e acabou metendo-se na política. Na primeira eleição venceu longe. Mais um pouco e era o Presidente da Assembléia Legislativa. Já se falava no seu nome para Governador do Estado. Era, fisicamente, uma bela figura, com uma cabeleira meio heróica, que lembrava a de Pinheiro Machado ou de Carlos Gomes; e, num tempo em que não se usava mais bengalas, Dr. Arnaldo tinha uma, de castão de prata, que não abandonava nunca. Êsse homem era tão íntegro e emanava uma tal autoridade, que, certa feita, da própria tribuna da Câmara esta­dual não trepidou em declarar:
— Eu me casei virgem.
Era, não uma declaração de bens, mas, se assim se pode dizer, uma declaração de costumes. Suas pala­vras podiam dar margem a galhofas irresponsáveis. De fato, não se esperava essa confissão pessoal. Mas, em seguida, todos compreenderam o alcance do gesto. Quando Dr. Arnaldo desceu da tribuna, ainda excitado, foi abraçado, em silêncio, pelos colegas. Só houve, a rigor, uma excreção. Um deputado, por sinal um bandalho, um inescrupuloso, foi visto, pouco depois na sala de café, às gargalhadas: e dizia, então — “Mas êsse Arnaldo é uma besta! Oh, que animal!”
E, súbito, acontece o imprevisível. Uma tarde, o Dr. Arnaldo chega em casa. Parecia mais satisfeito do que nunca. Entra na biblioteca, tranca-se lá dentro. Pouco depois, ouviu-se um barulho, um estouro, que parecia uma bombinha junina, lá fora. Na hora do jantar, vão chamá-lo. Batem, e ninguém responde. In­sistem, e nada. Acabam arrombando. Eis o que acon­tecera: — Aquêle homem, que era um bem sucedido no lar, na sociedade, na religião, na política — metera uma bala na cabeça.

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