— Amantes, nunca as teve!
Quem falava assim, com essa convicção profunda e mesmo agressiva, era o Dr. Odorico Quintela, promotor ainda obscuro, mas rapaz de muito talento. Êle não ia pedir a palavra, porque achava o morto “um medíocre”. Mas alguém não identificado o cutucara: — “Fala você agora! Fala, anda!” Êsse cochicho, ao pé de um túmulo, criara o problema. Fôra empurrado por um, e, em seguida, por muitos. Êle, que sofria de asma e era um humilde — talvez sua humildade fôsse de fundo asmático — êle pulou, com inesperada agilidade, para a sepultura em frente. Chuviscava.
O caixão ia esperar mais um orador — o quinto — e uma senhora calcula: — “Vem por aí um toró brabo!” Dr. Odorico estava no cemitério por acaso, ou, melhor: — não estava por acaso. Desde que soubera cio suicídio, correu para ver o cadáver e ficou ao lado da família, sem arredar pé. Parecia um parente e foi, nessa falsa qualidade, que recebeu os pêsames do próprio Governador, o qual acrescentou: — “Grande perda! Grande perda!” E ninguém podia imaginar que o Dr. Odorico não era parente, não era nada. Conhecia o morto de nome, de vista, e sempre o abominara. De fato, olhava com ressentimento de promotor, de vago promotor de Vale das Almas, aquêle sujeito que tinha tudo: — o poder, o dinheiro, a filha, e que filha!
Fizera quarto ao defunto, numa vigília de falso parente e de falso amigo. E, não satisfeito, acompanhara o entêrro. No cemitério, continuavam a perguntar: — “O senhor é parente?” Resmungava: — “Mais ou menos”. Sòlidamente desconhecido do morto, estava ali por causa da filha. Aquela menina o atraía como uma fatalidade. Vira Engraçadinha umas duas ou três vêzes, ao lado do pai. Tanto bastara para a sua imaginação de inibido, de solitário. Ao chegar ao cemitério, colocara-se, imediatamente, atrás da pequena. O noivo, um tal de Zózimo, a enleava. O Governador, que era outra nulidade, segurou numa das alças. Todos então — uma duas mil pessoas — foram caminhando. Aqui e ali, uns ciprestes meio tristes. Chegam junto à sepultura e começam os oradores.
Quando desceu o quarto orador, que devia ser o último, foi cutucado, inesperadamente. E como estava num cemitério, à beira de um túmulo, no meio de outros túmulos, o simples empurrão pareceu-lhe como que sobrenatural. Ouvira também uma voz desconhecida a incitá-lo. Houve um fluxo e refluxo de gente. Por um instante deixou de caminhar pelos próprios meios. Sentiu-se flutuar. No segundo em que o cutucaram, êle, sem tirar os olhos de Engraçadinha, imaginava, com uma dor surda: — “Mas que peitinhos!” Usava, para si mesmo, o diminutivo de “peitinho” e começava a transpirar. Quando se viu em cima de uma sepultura e olhou aquela ondulação de caras à sua frente, teve um esgar de chôro. Mas ah! Aquêle homem que apodrecia virtualmente numa promotoria vagabunda agigantou-se. Era manso e deixou de sê-lo. Quem sabe se não estava ali a sonhada oportunidade de projetar-se? Tomou-se dessa agressividade que há no fundo de qualquer tímido. Abria os braços, dava berros ou cerrava os punhos. Estavam, presentes, desde o Governador, para quem um oficial de gabinete acabava de abrir o guarda-chuva; demais autoridades civis e militares, amigos, parentes, populares e a filha (a filha única, com a bêsta do noivo ao lado!). A princípio, houve uma irritação e quase um murmúrio contra êsse orador inesperado e abusivo. Todo mundo queria ir para casa. Mas Dr. Odorico acabou empolgando o auditório e a si mesmo. O Governador baixa a voz: — “Quem é êsse rapaz?” O oficial de gabinete sentiu-se vencido, porque não sabia. O promotor, porém, só pensava em Engraçadinha. Ia no meio do discurso, quando lhe ocorre uma hipótese assustadora: — “E se, de repente, eu mudo de assunto e começo a elogiar os peitinhos dessa menina?” Imaginava o espanto da multidão, o terror das autoridades. Houve um instante em que lhe veio a tentação, quase diabólica, de parar tudo e recomeçar o discurso em têrmos de um erotismo hediondo. Diria, então: — “Meus senhores e minhas senhoras! Não é nado disso! O que interessa são os peitinhos da nossa Engraçadinha! Amigos, orai por êsses dois seios pequeninos!”
Sentiu-se no limiar da loucura. Mas, coisa curiosa! Não teve mêdo de ficar louco, e, pelo contrário: — desejou a loucura como uma solução. Súbito, estaca. A menina começa a chorar com uma violência inesperada. O noivo, o tal Zózimo, aperta Engraçadinha de encontro ao peito. O orador já não se lembra do que dizia antes. Repete, furioso:
— Amantes, nunca as teve!
A consciência de que já dissera isso acabou de enfurecê-lo.
Aponta para Engraçadinha:
— Vejam esta imagem! Guardem esta fisionomia!
Queria dizer, nos ardores de sua retórica, que Engraçadinha era o amor do morto. Amor puro, sublime. Com as feições contraídas num espasmo maior, vociferava :
— Nunca um pai amou tanto uma filha! Deus sabe que foi êste o maior amor da terra!
A eloqüência tem suas ciladas imprevisíveis. É óbvio que o obscuro promotor de Vale das Almas falava num “amor elevado” ou, para repetir a sua expressão: “sublime”. Todavia, quarenta e oito horas depois, o povo queria interpretar um simples e irresponsável efeito retórico como uma lúgubre insinuação.
Caiu, finalmente, a tempestade. E, por um momento, a multidão não soube o que fazer. Olhava-se em tôrno como se pudesse existir, num cemitério, toldos, marquises. Surgiram, màgicamente, alguns guarda-chuvas. Logo, porém, a ventania virou um deles pelo avêsso. Risos. Corre-corre. Num mausoléu próximo, um anjo de mármore, flechado nas costas, recebia a chuva na cara e em todo o corpo nu. Houve uma debandada um tanto desrespeitosa. Parecia uma tempestade exagerada de fita de cinema, com relâmpagos de estúdio e jorros artificiais de mangueira. Senhoras corriam, torciam mas pedras os saltos altos. Está claro que a fuga não foi total. Parentes, amigos íntimos, os admiradores mais fanáticos permaneceram. Havia, agora, porém, uma certa urgência irritada. Colocaram o caixão nas correntes. O Governador já se retirara acompanhado das outras autoridades. Era o fim. Engraçadinha ainda sacudiu algumas pétalas no interior do túmulo. O noivo sussurrava-lhe:
— Você vai se resfriar!
Perto, o promotor pensava: — “O vestido colado nas coxas!” Quando Engraçadinha saiu, levada pelo noivo (um cretino), pelos tios, primos, Dr. Odorico disse para si mesmo, sem violência, olhando-a até sumir: — “Merece um crime sexual”... Depois, enfiando o sapato nas pôças dágua, veio caminhando, cada vez mais perdido. A chuva varrera a apoteose fúnebre nunca vista.
* * *
Nada mais comprometido do que a memória dos suicidas. “Matou-se por que?” é o que todos perguntam. Há os motivos conhecidos e, além desses, outros mais outros, ainda outros. Acontece que, no caso do Dr. Arnaldo, não havia motivos, nem conhecidos, nem desconhecidos. Diante de um fato brutal e sem explicação, o povo de Vitória e de todo o Espírito Santo ficou, a princípio, estatelado. Um dos amigos mais chegados do prócer pessedista disse e repetiu:
— Foi um êrro! Um êrro!
Até o momento de estourar os miolos o Dr. Arnaldo era o político mais popular do Estado. Seria fatalmente Governador e muitos arriscavam o vaticínio da Presidência da República. Dizia-se, com certo humor respeitoso, que era popular até entre os vira-latas que, na rua, vinham lamber-lhe as botinas. É certo que não lhe conheciam atos, projetos ou medidas de bem público que justificassem tal projeção. Os descontentes rosnavam, com amarga objetividade: — “Nunca fêz nada! Nunca tapou um buraco!” E, por coincidência, havia na sua rua, bem na esquina, um buraco escandaloso, uma cratera imensa e eu quase dizia cínica. Mas o Dr. Arnaldo — é preciso que se note — tinha, se assim posso dizer, o gênio do cumprimento. Político nato, com uma sagacidade extraordinária, era o homem público que mais cumprimentava no Espírito Santo. Saudava conhecidos, desconhecidos, e, digo mesmo: — saudava, de preferência e com maior efusão, os desconhecidos. Tal cordialidade pode parecer apenas uma dessas virtudes médias. Mas não se faz uma sociedade com heroísmos e com heróis. Seria intolerável uma sociedade em que todos fôssem heróis, em que o cobrador da luz o fôsse e assim o vizinho, o guarda-noturno, o literato, o ciclista, o padeiro. E embora tivesse feito muito pouco ou mesmo nada, o fato é que o povo o amava.
Mas o povo tem seus abismos, que convém não mexer, nem açular. Aquêle suicídio revolveu, justamente, essas profundezas escuras e vorazes. O curioso é que foi um incidente mínimo ou, por outra, uma indiscrição inocente que traumatizou a opinião pública. Eis o episódio: — na volta do cemitério, o médico da família teria dito a alguém:
— Imagina você o que eu descobri na cama do Dr. Arnaldo, debaixo do travesseiro? Faz uma idéia?
O outro não fazia idéia nenhuma. Então o médico contou que encontrara, lá, o livro “Nossa Vida Sexual”, de um autor alemão. Era uma confidência ou, se preferirem, uma inconfidência sem importância. Podia-se estranhar que, tendo na sua biblioteca, os clássicos fabulosos, os Tito Lívios, os Horácios, os Calderons, os Lope de Vegas, o suicida optasse para uma leitura mais moderna. A indiscrição soltou, na rua, os abismos da alma popular. Cada um de nós, individualmente, pode não ter o sexo na cabeça; mas o povo o tem. O pobre para sobreviver precisa da pornografia. De um momento para outro, aquêle livro de divulgação, limpamento didático, nobremente científico, parecia mais uma parede rasbiscada de privada.
Senhoras diziam entre si, num horror cochichado:
— “Nossa vida Sexual!” Então, aconteceu esta coisa atroz — uma cidade ou, mais do que isso, um Estado inteiro passou a especular sôbre o suicídio. Impossível discriminar o fato objetivo da maledicência fantasista e vil. O homem acatava de ser enterrado e já se improvisava todo um folclore erótico a respeito. Por exemplo: — uma criada veio dizer que o morto nunca mandara para a lavadeira a sua roupa interior. As suas peças íntimas, êle, em pessoa, as destruía ou pior: — as incinerava! No fundo da casa, e sem que ninguém visse, queimava, dia após dia, num rito abjeto as camisas e ceroulas. Por que, a trôco de quê? Era o que ninguém saberia jamais. O povo não teve pena de nada. Até sua barbicha em ponta, evocativa de Pasteur, sugeriu a idéia de um bode, por, assim dizer, sobrenatural. Eis a verdade: — o grande homem da véspera não está livre de ser o bode do dia seguinte, um bode de chifres anelados e ornamentais.
E, no entanto, havia uma falha nessa lenda sexual: faltava uma mulher. Não se conhecia uma figura feminina na vida do Dr. Arnaldo. Por onde andaria a amante ou, pluralizando, por onde andariam as amantes do ilustre pessedista? Foi então que surgiu, outra vez, o Dr. Odorico Quintela. Aliás, desde o suicídio, que êle não deixava Vitória. Descurava da promotoria, não aparecia lá. Engraçadinha não lhe saia da cabeça. Às vêzes, no seu quarto de solitário, resmungava para si mesmo: — “O único bode sou eu!” E, um dia, entrando numa farmácia para comprar um comprimido, viu uns sujeitos discutindo; sôbre o suicídio. Súbito, deu-lhe um ódio meio vesgo, uma dessas raivas obtusas. Atirava patadas no chão. — “Vocês são burros! O que é que vocês têm nessa cabeça? Pois eu sei, eu!” Percorreu, uma por uma, aquelas caras atônitas. E largou o berro triunfal:
— A filha!
Quem falava assim, com essa convicção profunda e mesmo agressiva, era o Dr. Odorico Quintela, promotor ainda obscuro, mas rapaz de muito talento. Êle não ia pedir a palavra, porque achava o morto “um medíocre”. Mas alguém não identificado o cutucara: — “Fala você agora! Fala, anda!” Êsse cochicho, ao pé de um túmulo, criara o problema. Fôra empurrado por um, e, em seguida, por muitos. Êle, que sofria de asma e era um humilde — talvez sua humildade fôsse de fundo asmático — êle pulou, com inesperada agilidade, para a sepultura em frente. Chuviscava.
O caixão ia esperar mais um orador — o quinto — e uma senhora calcula: — “Vem por aí um toró brabo!” Dr. Odorico estava no cemitério por acaso, ou, melhor: — não estava por acaso. Desde que soubera cio suicídio, correu para ver o cadáver e ficou ao lado da família, sem arredar pé. Parecia um parente e foi, nessa falsa qualidade, que recebeu os pêsames do próprio Governador, o qual acrescentou: — “Grande perda! Grande perda!” E ninguém podia imaginar que o Dr. Odorico não era parente, não era nada. Conhecia o morto de nome, de vista, e sempre o abominara. De fato, olhava com ressentimento de promotor, de vago promotor de Vale das Almas, aquêle sujeito que tinha tudo: — o poder, o dinheiro, a filha, e que filha!
Fizera quarto ao defunto, numa vigília de falso parente e de falso amigo. E, não satisfeito, acompanhara o entêrro. No cemitério, continuavam a perguntar: — “O senhor é parente?” Resmungava: — “Mais ou menos”. Sòlidamente desconhecido do morto, estava ali por causa da filha. Aquela menina o atraía como uma fatalidade. Vira Engraçadinha umas duas ou três vêzes, ao lado do pai. Tanto bastara para a sua imaginação de inibido, de solitário. Ao chegar ao cemitério, colocara-se, imediatamente, atrás da pequena. O noivo, um tal de Zózimo, a enleava. O Governador, que era outra nulidade, segurou numa das alças. Todos então — uma duas mil pessoas — foram caminhando. Aqui e ali, uns ciprestes meio tristes. Chegam junto à sepultura e começam os oradores.
Quando desceu o quarto orador, que devia ser o último, foi cutucado, inesperadamente. E como estava num cemitério, à beira de um túmulo, no meio de outros túmulos, o simples empurrão pareceu-lhe como que sobrenatural. Ouvira também uma voz desconhecida a incitá-lo. Houve um fluxo e refluxo de gente. Por um instante deixou de caminhar pelos próprios meios. Sentiu-se flutuar. No segundo em que o cutucaram, êle, sem tirar os olhos de Engraçadinha, imaginava, com uma dor surda: — “Mas que peitinhos!” Usava, para si mesmo, o diminutivo de “peitinho” e começava a transpirar. Quando se viu em cima de uma sepultura e olhou aquela ondulação de caras à sua frente, teve um esgar de chôro. Mas ah! Aquêle homem que apodrecia virtualmente numa promotoria vagabunda agigantou-se. Era manso e deixou de sê-lo. Quem sabe se não estava ali a sonhada oportunidade de projetar-se? Tomou-se dessa agressividade que há no fundo de qualquer tímido. Abria os braços, dava berros ou cerrava os punhos. Estavam, presentes, desde o Governador, para quem um oficial de gabinete acabava de abrir o guarda-chuva; demais autoridades civis e militares, amigos, parentes, populares e a filha (a filha única, com a bêsta do noivo ao lado!). A princípio, houve uma irritação e quase um murmúrio contra êsse orador inesperado e abusivo. Todo mundo queria ir para casa. Mas Dr. Odorico acabou empolgando o auditório e a si mesmo. O Governador baixa a voz: — “Quem é êsse rapaz?” O oficial de gabinete sentiu-se vencido, porque não sabia. O promotor, porém, só pensava em Engraçadinha. Ia no meio do discurso, quando lhe ocorre uma hipótese assustadora: — “E se, de repente, eu mudo de assunto e começo a elogiar os peitinhos dessa menina?” Imaginava o espanto da multidão, o terror das autoridades. Houve um instante em que lhe veio a tentação, quase diabólica, de parar tudo e recomeçar o discurso em têrmos de um erotismo hediondo. Diria, então: — “Meus senhores e minhas senhoras! Não é nado disso! O que interessa são os peitinhos da nossa Engraçadinha! Amigos, orai por êsses dois seios pequeninos!”
Sentiu-se no limiar da loucura. Mas, coisa curiosa! Não teve mêdo de ficar louco, e, pelo contrário: — desejou a loucura como uma solução. Súbito, estaca. A menina começa a chorar com uma violência inesperada. O noivo, o tal Zózimo, aperta Engraçadinha de encontro ao peito. O orador já não se lembra do que dizia antes. Repete, furioso:
— Amantes, nunca as teve!
A consciência de que já dissera isso acabou de enfurecê-lo.
Aponta para Engraçadinha:
— Vejam esta imagem! Guardem esta fisionomia!
Queria dizer, nos ardores de sua retórica, que Engraçadinha era o amor do morto. Amor puro, sublime. Com as feições contraídas num espasmo maior, vociferava :
— Nunca um pai amou tanto uma filha! Deus sabe que foi êste o maior amor da terra!
A eloqüência tem suas ciladas imprevisíveis. É óbvio que o obscuro promotor de Vale das Almas falava num “amor elevado” ou, para repetir a sua expressão: “sublime”. Todavia, quarenta e oito horas depois, o povo queria interpretar um simples e irresponsável efeito retórico como uma lúgubre insinuação.
Caiu, finalmente, a tempestade. E, por um momento, a multidão não soube o que fazer. Olhava-se em tôrno como se pudesse existir, num cemitério, toldos, marquises. Surgiram, màgicamente, alguns guarda-chuvas. Logo, porém, a ventania virou um deles pelo avêsso. Risos. Corre-corre. Num mausoléu próximo, um anjo de mármore, flechado nas costas, recebia a chuva na cara e em todo o corpo nu. Houve uma debandada um tanto desrespeitosa. Parecia uma tempestade exagerada de fita de cinema, com relâmpagos de estúdio e jorros artificiais de mangueira. Senhoras corriam, torciam mas pedras os saltos altos. Está claro que a fuga não foi total. Parentes, amigos íntimos, os admiradores mais fanáticos permaneceram. Havia, agora, porém, uma certa urgência irritada. Colocaram o caixão nas correntes. O Governador já se retirara acompanhado das outras autoridades. Era o fim. Engraçadinha ainda sacudiu algumas pétalas no interior do túmulo. O noivo sussurrava-lhe:
— Você vai se resfriar!
Perto, o promotor pensava: — “O vestido colado nas coxas!” Quando Engraçadinha saiu, levada pelo noivo (um cretino), pelos tios, primos, Dr. Odorico disse para si mesmo, sem violência, olhando-a até sumir: — “Merece um crime sexual”... Depois, enfiando o sapato nas pôças dágua, veio caminhando, cada vez mais perdido. A chuva varrera a apoteose fúnebre nunca vista.
* * *
Nada mais comprometido do que a memória dos suicidas. “Matou-se por que?” é o que todos perguntam. Há os motivos conhecidos e, além desses, outros mais outros, ainda outros. Acontece que, no caso do Dr. Arnaldo, não havia motivos, nem conhecidos, nem desconhecidos. Diante de um fato brutal e sem explicação, o povo de Vitória e de todo o Espírito Santo ficou, a princípio, estatelado. Um dos amigos mais chegados do prócer pessedista disse e repetiu:
— Foi um êrro! Um êrro!
Até o momento de estourar os miolos o Dr. Arnaldo era o político mais popular do Estado. Seria fatalmente Governador e muitos arriscavam o vaticínio da Presidência da República. Dizia-se, com certo humor respeitoso, que era popular até entre os vira-latas que, na rua, vinham lamber-lhe as botinas. É certo que não lhe conheciam atos, projetos ou medidas de bem público que justificassem tal projeção. Os descontentes rosnavam, com amarga objetividade: — “Nunca fêz nada! Nunca tapou um buraco!” E, por coincidência, havia na sua rua, bem na esquina, um buraco escandaloso, uma cratera imensa e eu quase dizia cínica. Mas o Dr. Arnaldo — é preciso que se note — tinha, se assim posso dizer, o gênio do cumprimento. Político nato, com uma sagacidade extraordinária, era o homem público que mais cumprimentava no Espírito Santo. Saudava conhecidos, desconhecidos, e, digo mesmo: — saudava, de preferência e com maior efusão, os desconhecidos. Tal cordialidade pode parecer apenas uma dessas virtudes médias. Mas não se faz uma sociedade com heroísmos e com heróis. Seria intolerável uma sociedade em que todos fôssem heróis, em que o cobrador da luz o fôsse e assim o vizinho, o guarda-noturno, o literato, o ciclista, o padeiro. E embora tivesse feito muito pouco ou mesmo nada, o fato é que o povo o amava.
Mas o povo tem seus abismos, que convém não mexer, nem açular. Aquêle suicídio revolveu, justamente, essas profundezas escuras e vorazes. O curioso é que foi um incidente mínimo ou, por outra, uma indiscrição inocente que traumatizou a opinião pública. Eis o episódio: — na volta do cemitério, o médico da família teria dito a alguém:
— Imagina você o que eu descobri na cama do Dr. Arnaldo, debaixo do travesseiro? Faz uma idéia?
O outro não fazia idéia nenhuma. Então o médico contou que encontrara, lá, o livro “Nossa Vida Sexual”, de um autor alemão. Era uma confidência ou, se preferirem, uma inconfidência sem importância. Podia-se estranhar que, tendo na sua biblioteca, os clássicos fabulosos, os Tito Lívios, os Horácios, os Calderons, os Lope de Vegas, o suicida optasse para uma leitura mais moderna. A indiscrição soltou, na rua, os abismos da alma popular. Cada um de nós, individualmente, pode não ter o sexo na cabeça; mas o povo o tem. O pobre para sobreviver precisa da pornografia. De um momento para outro, aquêle livro de divulgação, limpamento didático, nobremente científico, parecia mais uma parede rasbiscada de privada.
Senhoras diziam entre si, num horror cochichado:
— “Nossa vida Sexual!” Então, aconteceu esta coisa atroz — uma cidade ou, mais do que isso, um Estado inteiro passou a especular sôbre o suicídio. Impossível discriminar o fato objetivo da maledicência fantasista e vil. O homem acatava de ser enterrado e já se improvisava todo um folclore erótico a respeito. Por exemplo: — uma criada veio dizer que o morto nunca mandara para a lavadeira a sua roupa interior. As suas peças íntimas, êle, em pessoa, as destruía ou pior: — as incinerava! No fundo da casa, e sem que ninguém visse, queimava, dia após dia, num rito abjeto as camisas e ceroulas. Por que, a trôco de quê? Era o que ninguém saberia jamais. O povo não teve pena de nada. Até sua barbicha em ponta, evocativa de Pasteur, sugeriu a idéia de um bode, por, assim dizer, sobrenatural. Eis a verdade: — o grande homem da véspera não está livre de ser o bode do dia seguinte, um bode de chifres anelados e ornamentais.
E, no entanto, havia uma falha nessa lenda sexual: faltava uma mulher. Não se conhecia uma figura feminina na vida do Dr. Arnaldo. Por onde andaria a amante ou, pluralizando, por onde andariam as amantes do ilustre pessedista? Foi então que surgiu, outra vez, o Dr. Odorico Quintela. Aliás, desde o suicídio, que êle não deixava Vitória. Descurava da promotoria, não aparecia lá. Engraçadinha não lhe saia da cabeça. Às vêzes, no seu quarto de solitário, resmungava para si mesmo: — “O único bode sou eu!” E, um dia, entrando numa farmácia para comprar um comprimido, viu uns sujeitos discutindo; sôbre o suicídio. Súbito, deu-lhe um ódio meio vesgo, uma dessas raivas obtusas. Atirava patadas no chão. — “Vocês são burros! O que é que vocês têm nessa cabeça? Pois eu sei, eu!” Percorreu, uma por uma, aquelas caras atônitas. E largou o berro triunfal:
— A filha!
Nenhum comentário:
Postar um comentário