quinta-feira, 20 de agosto de 2009

CAPÍTULO II

— Amantes, nunca as teve!
Quem falava assim, com essa convicção profunda e mesmo agressiva, era o Dr. Odorico Quintela, promo­tor ainda obscuro, mas rapaz de muito talento. Êle não ia pedir a palavra, porque achava o morto “um medíocre”. Mas alguém não identificado o cutucara: — “Fala você agora! Fala, anda!” Êsse cochicho, ao pé de um túmulo, criara o problema. Fôra empurrado por um, e, em seguida, por muitos. Êle, que sofria de asma e era um humilde — talvez sua humildade fôsse de fundo asmático — êle pulou, com inesperada agili­dade, para a sepultura em frente. Chuviscava.
O caixão ia esperar mais um orador — o quinto — e uma senhora calcula: — “Vem por aí um toró brabo!” Dr. Odorico estava no cemitério por acaso, ou, melhor: — não estava por acaso. Desde que soubera cio suicídio, correu para ver o cadáver e ficou ao lado da família, sem arredar pé. Parecia um parente e foi, nessa falsa qualidade, que recebeu os pêsames do pró­prio Governador, o qual acrescentou: — “Grande per­da! Grande perda!” E ninguém podia imaginar que o Dr. Odorico não era parente, não era nada. Conhecia o morto de nome, de vista, e sempre o abominara. De fato, olhava com ressentimento de promotor, de vago promotor de Vale das Almas, aquêle sujeito que tinha tudo: — o poder, o dinheiro, a filha, e que filha!
Fizera quarto ao defunto, numa vigília de falso parente e de falso amigo. E, não satisfeito, acompa­nhara o entêrro. No cemitério, continuavam a pergun­tar: — “O senhor é parente?” Resmungava: — “Mais ou menos”. Sòlidamente desconhecido do morto, es­tava ali por causa da filha. Aquela menina o atraía como uma fatalidade. Vira Engraçadinha umas duas ou três vêzes, ao lado do pai. Tanto bastara para a sua imaginação de inibido, de solitário. Ao chegar ao cemitério, colocara-se, imediatamente, atrás da peque­na. O noivo, um tal de Zózimo, a enleava. O Governa­dor, que era outra nulidade, segurou numa das alças. Todos então — uma duas mil pessoas — foram ca­minhando. Aqui e ali, uns ciprestes meio tristes. Che­gam junto à sepultura e começam os oradores.
Quando desceu o quarto orador, que devia ser o último, foi cutucado, inesperadamente. E como estava num cemitério, à beira de um túmulo, no meio de ou­tros túmulos, o simples empurrão pareceu-lhe como que sobrenatural. Ouvira também uma voz desconhecida a incitá-lo. Houve um fluxo e refluxo de gente. Por um instante deixou de caminhar pelos próprios meios. Sentiu-se flutuar. No segundo em que o cutu­caram, êle, sem tirar os olhos de Engraçadinha, ima­ginava, com uma dor surda: — “Mas que peitinhos!” Usava, para si mesmo, o diminutivo de “peitinho” e começava a transpirar. Quando se viu em cima de uma sepultura e olhou aquela ondulação de caras à sua frente, teve um esgar de chôro. Mas ah! Aquêle homem que apodrecia virtualmente numa promotoria vagabunda agigantou-se. Era manso e deixou de sê-lo. Quem sabe se não estava ali a sonhada oportunidade de projetar-se? Tomou-se dessa agressividade que há no fundo de qualquer tímido. Abria os braços, dava berros ou cerrava os punhos. Estavam, presentes, des­de o Governador, para quem um oficial de gabinete acabava de abrir o guarda-chuva; demais autoridades civis e militares, amigos, parentes, populares e a filha (a filha única, com a bêsta do noivo ao lado!). A prin­cípio, houve uma irritação e quase um murmúrio con­tra êsse orador inesperado e abusivo. Todo mundo queria ir para casa. Mas Dr. Odorico acabou empol­gando o auditório e a si mesmo. O Governador baixa a voz: — “Quem é êsse rapaz?” O oficial de gabinete sentiu-se vencido, porque não sabia. O promotor, porém, só pensava em Engraçadinha. Ia no meio do discurso, quando lhe ocorre uma hipótese assustadora: — “E se, de repente, eu mudo de assunto e começo a elogiar os peitinhos dessa menina?” Imaginava o es­panto da multidão, o terror das autoridades. Houve um instante em que lhe veio a tentação, quase diabólica, de parar tudo e recomeçar o discurso em têrmos de um erotismo hediondo. Diria, então: — “Meus senho­res e minhas senhoras! Não é nado disso! O que inte­ressa são os peitinhos da nossa Engraçadinha! Amigos, orai por êsses dois seios pequeninos!”
Sentiu-se no limiar da loucura. Mas, coisa curio­sa! Não teve mêdo de ficar louco, e, pelo contrário: — desejou a loucura como uma solução. Súbito, estaca. A menina começa a chorar com uma violência inesperada. O noivo, o tal Zózimo, aperta Engraça­dinha de encontro ao peito. O orador já não se lembra do que dizia antes. Repete, furioso:
— Amantes, nunca as teve!
A consciência de que já dissera isso acabou de enfurecê-lo.
Aponta para Engraçadinha:
— Vejam esta imagem! Guardem esta fisionomia!
Queria dizer, nos ardores de sua retórica, que En­graçadinha era o amor do morto. Amor puro, sublime. Com as feições contraídas num espasmo maior, voci­ferava :
— Nunca um pai amou tanto uma filha! Deus sabe que foi êste o maior amor da terra!
A eloqüência tem suas ciladas imprevisíveis. É óbvio que o obscuro promotor de Vale das Almas fala­va num “amor elevado” ou, para repetir a sua expres­são: “sublime”. Todavia, quarenta e oito horas de­pois, o povo queria interpretar um simples e irrespon­sável efeito retórico como uma lúgubre insinuação.
Caiu, finalmente, a tempestade. E, por um mo­mento, a multidão não soube o que fazer. Olhava-se em tôrno como se pudesse existir, num cemitério, tol­dos, marquises. Surgiram, màgicamente, alguns guar­da-chuvas. Logo, porém, a ventania virou um deles pelo avêsso. Risos. Corre-corre. Num mausoléu próxi­mo, um anjo de mármore, flechado nas costas, recebia a chuva na cara e em todo o corpo nu. Houve uma debandada um tanto desrespeitosa. Parecia uma tem­pestade exagerada de fita de cinema, com relâmpagos de estúdio e jorros artificiais de mangueira. Senhoras corriam, torciam mas pedras os saltos altos. Está claro que a fuga não foi total. Parentes, amigos íntimos, os admiradores mais fanáticos permaneceram. Havia, agora, porém, uma certa urgência irritada. Colocaram o caixão nas correntes. O Governador já se retirara acompanhado das outras autoridades. Era o fim. En­graçadinha ainda sacudiu algumas pétalas no interior do túmulo. O noivo sussurrava-lhe:
— Você vai se resfriar!
Perto, o promotor pensava: — “O vestido colado nas coxas!” Quando Engraçadinha saiu, levada pelo noivo (um cretino), pelos tios, primos, Dr. Odorico disse para si mesmo, sem violência, olhando-a até su­mir: — “Merece um crime sexual”... Depois, enfiando o sapato nas pôças dágua, veio caminhando, cada vez mais perdido. A chuva varrera a apoteose fúne­bre nunca vista.

* * *

Nada mais comprometido do que a memória dos suicidas. “Matou-se por que?” é o que todos pergun­tam. Há os motivos conhecidos e, além desses, outros mais outros, ainda outros. Acontece que, no caso do Dr. Arnaldo, não havia motivos, nem conhecidos, nem desconhecidos. Diante de um fato brutal e sem expli­cação, o povo de Vitória e de todo o Espírito Santo ficou, a princípio, estatelado. Um dos amigos mais chegados do prócer pessedista disse e repetiu:
— Foi um êrro! Um êrro!
Até o momento de estourar os miolos o Dr. Ar­naldo era o político mais popular do Estado. Seria fatalmente Governador e muitos arriscavam o vaticínio da Presidência da República. Dizia-se, com certo humor respeitoso, que era popular até entre os vira-latas que, na rua, vinham lamber-lhe as botinas. É certo que não lhe conheciam atos, projetos ou medi­das de bem público que justificassem tal projeção. Os descontentes rosnavam, com amarga objetividade: — “Nunca fêz nada! Nunca tapou um buraco!” E, por coincidência, havia na sua rua, bem na esquina, um buraco escandaloso, uma cratera imensa e eu quase dizia cínica. Mas o Dr. Arnaldo — é preciso que se note — tinha, se assim posso dizer, o gênio do cum­primento. Político nato, com uma sagacidade extraordinária, era o homem público que mais cumprimen­tava no Espírito Santo. Saudava conhecidos, desconhe­cidos, e, digo mesmo: — saudava, de preferência e com maior efusão, os desconhecidos. Tal cordialida­de pode parecer apenas uma dessas virtudes médias. Mas não se faz uma sociedade com heroísmos e com heróis. Seria intolerável uma sociedade em que todos fôssem heróis, em que o cobrador da luz o fôsse e assim o vizinho, o guarda-noturno, o literato, o ciclis­ta, o padeiro. E embora tivesse feito muito pouco ou mesmo nada, o fato é que o povo o amava.
Mas o povo tem seus abismos, que convém não mexer, nem açular. Aquêle suicídio revolveu, justa­mente, essas profundezas escuras e vorazes. O curioso é que foi um incidente mínimo ou, por outra, uma in­discrição inocente que traumatizou a opinião pública. Eis o episódio: — na volta do cemitério, o médico da família teria dito a alguém:
— Imagina você o que eu descobri na cama do Dr. Arnaldo, debaixo do travesseiro? Faz uma idéia?
O outro não fazia idéia nenhuma. Então o médico contou que encontrara, lá, o livro “Nossa Vida Sexual”, de um autor alemão. Era uma confidência ou, se preferirem, uma inconfidência sem importância. Podia-se estranhar que, tendo na sua biblioteca, os clássicos fabulosos, os Tito Lívios, os Horácios, os Calderons, os Lope de Vegas, o suicida optasse para uma leitura mais moderna. A indiscrição soltou, na rua, os abismos da alma popular. Cada um de nós, individualmente, pode não ter o sexo na cabeça; mas o povo o tem. O pobre para sobreviver precisa da pornografia. De um momento para outro, aquêle livro de divulgação, limpamento didático, nobremente científi­co, parecia mais uma parede rasbiscada de privada.
Senhoras diziam entre si, num horror cochichado:
— “Nossa vida Sexual!” Então, aconteceu esta coisa atroz — uma cidade ou, mais do que isso, um Estado inteiro passou a especular sôbre o suicídio. Impossí­vel discriminar o fato objetivo da maledicência fantasista e vil. O homem acatava de ser enterrado e já se improvisava todo um folclore erótico a respeito. Por exemplo: — uma criada veio dizer que o morto nunca mandara para a lavadeira a sua roupa inte­rior. As suas peças íntimas, êle, em pessoa, as destruía ou pior: — as incinerava! No fundo da casa, e sem que ninguém visse, queimava, dia após dia, num rito abjeto as camisas e ceroulas. Por que, a trôco de quê? Era o que ninguém saberia jamais. O povo não teve pena de nada. Até sua barbicha em ponta, evocativa de Pasteur, sugeriu a idéia de um bode, por, assim dizer, sobrenatural. Eis a verdade: — o grande homem da véspera não está livre de ser o bode do dia seguinte, um bode de chifres anelados e ornamentais.
E, no entanto, havia uma falha nessa lenda sexual: faltava uma mulher. Não se conhecia uma figura feminina na vida do Dr. Arnaldo. Por onde andaria a amante ou, pluralizando, por onde andariam as amantes do ilustre pessedista? Foi então que surgiu, outra vez, o Dr. Odorico Quintela. Aliás, desde o sui­cídio, que êle não deixava Vitória. Descurava da promotoria, não aparecia lá. Engraçadinha não lhe saia da cabeça. Às vêzes, no seu quarto de solitário, res­mungava para si mesmo: — “O único bode sou eu!” E, um dia, entrando numa farmácia para comprar um comprimido, viu uns sujeitos discutindo; sôbre o suicídio. Súbito, deu-lhe um ódio meio vesgo, uma dessas raivas obtusas. Atirava patadas no chão. — “Vocês são burros! O que é que vocês têm nessa cabeça? Pois eu sei, eu!” Percorreu, uma por uma, aquelas caras atônitas. E largou o berro triunfal:
— A filha!

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