sábado, 22 de agosto de 2009

CAPÍTULO IV

— Irmão, telefone!
Estremeceu:
— Pra mim?
Repetiram:
— Telefone.
Tudo assustava o Irmão Fidélis, tudo o fazia sofrer. Vira-se para os demais:
— Com licença.
Tinha sempre o ar de quem pede perdão por uma falta imaginária. Abandonou a sala da reitoria; ia confuso e dilacerado. Há poucos instantes, conversan­do com os outros irmãos — inclusive o Reitor — dei­xara escapar, por um desses lapsos fatais, uma gafe abominável. O assunto era, ainda e sempre, a paixão incestuosa que, segundo o povo, teria levado o Dr. Ar­naldo ao suicídio. Ninguém, ali, admitia a hipótese ou pelo menos: — não a admitia da bôca para fora. Dr. Arnaldo sempre fôra um homem de fé. Era visto, nas procissões, de cabeça descoberta, empunhando um círio.
Durante a conversa, alguém se lembra de dizer que o Jackson Figueiredo estava fazendo falta ao Brasil — uma falta imensa e desesperadora. Então, entre uma fala e outra, o Irmão Fidélis declara brus­camente :
— Acho o Jackson Figueiredo um pateta.
Foi só. Instantaneamente, sentiu a inconveniência brutal. Atônito, ainda fêz um gesto, como se quisesse recolher a gafe, reavê-la, torná-la sem efeito. Cercado de silêncio por todos os lados, envolvido por aqueles batinas inapeláveis, chegou a pensar numa retratação suicida: — “O pateta sou eu”, diria. Mas calou-se. Olhava para um, para outro — e, sobretudo para o Reitor — com um esgar de chôro. Perguntava de si para si: — “Mas o que é que eu tenho com o Jackson Figueiredo?” O Reitor, em voz baixa, com uma doçura alarmante, insinuando uma ironia muito tênue, e olhando para o teto, pergunta:
— O Irmão acha isso? Tem certeza? E por que pateta? O Irmão sabe o que está dizendo? Quem so­mos nós para julgar um Jackson Figueiredo?
Esgazeou os olhos para o Reitor. Aquêle homem podia enxotá-lo, escorraçá-lo. Irmão Fidélis estava, ali, no Colégio S. Gregório — o mais importante do Estado — há dois meses, dando aulas. Quase não falava e só abria a bôca para concordar. E, de repente, diz aquela coisa e sobre quem? O Jackson! O Irmão Osmar põe mais lenha na fogueira:
— Ou o pateta é o Irmão?
Irmão Fidélis decide: — “Haja o que houver, não darei nada! Nada!” Trincou os dentes e repetiu para si mesmo, na sua pusilanimidade feroz: — “Ninguém me arranca uma palavra!” Súbito, chamam-no ao te­lefone. Pede licença, retira-se quase correndo. Geral­mente, tinha mêdo do telefone. Achava que um cha­mado telefônico é uma janela aberta para o infinito. Atravessando o corredor, ia pensando: — “Bonito, se me põem na rua!” Parecia-lhe, além do mais, que o afogado não é um morto comum; e o Jackson Figuei­redo morrera no mar. “Deus prefere os afogados”. Atende com voz estrangulada: — “Alô!” Do outro lado da linha, uma voz feminina se esganiça tôda:
— Irmão Fidélis?
Balbucia:
— Quem fala?
E a mulher:
— Pelo amor de Deus, venha Irmão Fidélis! Olha: — apanha um táxi! Nós pagamos aqui. Mas venha! — E soluçava: — venha!
Irmão Fidélis a reconhecia, por fim: — era D. Zezé, a irmã do Dr. Arnaldo, tia de Engraçadinha. Faz espanto: — “Mas que foi que houve?” E ela, fora de si:
— Só falando pessoalmente. Mas não demore! Es­tou esperando!
Êle desliga. Acha intolerável essa mulher que es­lava sempre a um milímetro da histeria. Caminhando lentamente, pensava na gafe: — “O Jackson é um blefe, um bôbo. Não fêz nada, não deixou nada. Es­creveu um romance que é uma vergonha. Mas, que tenho eu com isso?” Naquele momento, o suicídio do Dr. Arnaldo doeu-lhe fisicamente como uma nevralgia. O velho prometera-lhe um lugar na chapa do partido para as próximas eleições: — “Indico seu nome”. E, súbito, o homem mete uma bala na cabeça. Ao rece­ber a notícia, limão Fidélis cerram os dentes para não explodir: — “Ah, cretino! Bestalhão! Palhaço!” Como diz o povo, a morte tira-lhe o pão da bôca.

* * *

Assim que o Irmão Fidélis sai, para atender o te­lefone, o Irmão Osmar baixa a voz para o Reitor:
— Pederasta.
— Quem?
— O Irmão Fidélis.
O Reitor, recostado na cadeira, as duas mãos en­trelaçadas em cima do ventre, suspira:
— Eu desconfiava.
Irmão Osmar continua, enquanto o Reitor volta o olhar para o teto. No momento em que o outro ia, tal­vez, citar os fatos ou, pelo menos, apresentar teste­munhos idôneos, o Irmão Fidélis, de volta, aparece na porta. Calam-se e o recém-chegado, no seu desespêro, deduz, com uma contração do estômago: “Estavam fa­lando de mim”. Mas sua indignação maior não era contra os dois, mas contra o outro, o cretino, que se matara. Abaixa-se para falar com o Reitor:
— Da casa do Dr. Arnaldo, telefonaram. Pedem com urgência a minha presença.
Com uma cintilação nos olhos azuis — era de ori­gem alemã — o Reitor diz, sem desfitá-lo:
— Pode ir, mas cuidado, meu filho, cuidado! Você é muito impulsivo!
Gagueja:
— De fato, foi uma leviandade. E quem sou eu para julgar um homem...
O Reitor interrompe, incisivo: — “Um espírito!” Rápido, confirma:
— Exato. Um espírito como Jackson Figueiredo? Não testou à altura: e aquilo me escapou, nem sei como. Mas o senhor pode ficar certo e eu prometo...
Saiu, de lá, com o rosto em fogo. Ia, porém, mais aliviado, quase recuperado. Humilhara-se de uma ma­neira satisfatória e oportuna. Imagina: — “O homem gostou”. Na porta do colégio, apanha o primeiro táxi e avisa ao chofer: — “Não precisa correr”. Pouco adiante, quando o carro passava por um muro, teve uma surpresa: — via, lá, escrito a carvão, de ponta a ponta, o nome “Engraçadinha”. Vira-se no assen­to, achando aquilo espantoso. Pela primeira vez, de fato, o nome de uma menina, direita, de família, apa­recia nas paredes como se fôra propaganda eleitoral. E o Irmão Fidélis achou graça numa hipótese que lhe ocorreu: — talvez, um dia, surgissem, no mesmo muro, dois nomes. De um lado, “Engraçadinha”, de outro lado, “Prestes”, ou seja: — o Sexo e a Revolução. Riu, baixinho, considerando que acabava de fazer um acha­do feliz, inteligente. Fôsse como fôsse ali estava, na­quele muro, o apêlo de uma colossal luxúria popular.

* * *

Sim, para o tio Nonô, aquilo foi o maior espanto de tôda a sua vida. Engraçadinha sempre lhe parecera “linda e parva”. Vivia repetindo a frase já referida: — “Essa menina ainda não tem alma”, acrescentando a título de compensação: — “A alma vem depois”, intimamente, porém, achava que, daí a duzentos anos, ela continuaria sem alma do mesmo jeito e cada vez mais espêssa. Com a sua expiração tumultuoso de gor­do repetia:
— Grávida?
Fêz que sim com um movimento de cabeça.
Tio Nonô não diz, mas pensa: — “Estou besta! Com a minha cara no chão!” Passa a mão pela ca­beça. Levanta-se, abre os braços:
— Mas não é possível! Eu não acredito! Pára diante da menina: — Mas escuta cá: — você sabe o que é isso? De mais a mais, eu não creio que teu noivo...
Interrompe:
— Não foi o meu noivo.
O desesperador era o jeitinho doce, era a leve, muito leve, quase imperceptível vaidade, com que ela falava. A princípio, o gordo não entendeu, ou, então: — precisou realizar mentalmente o fato: — “Não foi teu noivo?” Êle começa a querer rir. A gargalhada es­tava se formando. Senta-se:
— Mas, se não foi teu noivo...
Os dois se olham. Engraçadinha perdeu a expres­são da menina que ainda não é nem adolescente. Tem um olhar inesperado e duro, que o confunde ainda mais. Êle pensa, ao mesmo tempo que a olha, numa curiosidade atormentada: — “Está com um quê de prostituta”. E, então, sua mente começa a ser traba­lhada pela grande suspeita. Baixa a voz:
— Quem foi o cara?
Fêz um ar de menininha (que cínica):
— Não sei.
Ao mesmo tempo que apanha o pulso da menina, o gordo arqueja no riso de angústia e de ódio:
— Conta pra mim: Foi teu pai? Diz! Foi?
Aperta o braço da sobrinha. E pensa: — “Eu não sou tão cínico, porque odeio. Não sei a quem, mas odeio”. Êle achava que o ódio é próprio dos simples, dos puros.

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