sexta-feira, 21 de agosto de 2009

CAPÍTULO III


Repetia:
— A amante é a filha!
O som da própria voz deu-lhe mêdo. Houve um silêncio na farmácia. Chamara aquêles homens de burros e ninguém reagira. Estavam todos espanta­dos e êle muito mais. Cercado de caras sôfregas, não se mexia. Teve vontade de gritar-lhes: — “Vocês estão radiantes com o incesto. Satisfeitíssimos. Assim é o povo: — tem fome de sangue e excremento”. Mas não disse nada. Sentiu que, a partir daquele momento, não seria mais responsável nem pelas próprias pala­vras, nem pelos próprios atos. O farmacêutico, um feio esguio, com perfil violento de gato, o avental man­chado de pomada, ainda perguntou-lhe:
— O senhor acha?
Olha em tôrno. Cata fósforos, cigarro. Ergue o rosto:
— Acho, perfeitamente, acho. E dai?
Acende o cigarro com a mão trêmula. Olhando aquelas caras próximas, ocorre-lhe a idéia de que não há nada mais obsceno do que o rosto humano. Conti­nua, na sua violência contida, dirigindo-se a um su­jeito de chinelos, que devia ser vizinho da farmácia:
— O senhor está espantado? Mas escuta: — eu sou promotor. Dr. Odorico Quintela — estou em Vale das Almas. Conhece, Vale das Almas? Pois bem: — eu seria muito burro, creia, seria muito burro se ainda me espantasse. Eu não me espanto mais. Diga-me, quê é um incesto?
Os outros já lhe faziam rapapés. Era tratado de doutor para cima. O farmacêutico arrisca — “Não é normal, doutor!” Dr. Odorico deixa escapar um “Ora!” sarcástico:
— Isso de pai que se apaixona pela filha ou irmão pela irmã, isso é meu metier, minha rotina, meu ganha-pão. Perceberam?
Ri, pesadamente. Em seguida, passa as costas da mão na bôca molhada. Ninguém diz nada. Num estado de tensão intolerável, começa a pensar absurdos: — “Só a cara é indecente. Do pescoço para baixo, podia-se andar nu!” Idéias, como se vê, sem nenhum cabi­mento. Ergue a voz, nítida, vibrante:
— Qualquer um — não faço exceção — qualquer um é capaz de coisas piores. Por exemplo: — eu! — e repete, furioso: — Eu sou capaz de coisas muito piores. Digamos que eu fôsse pai dessa menina, sim, dessa Engraçadinha, eu...
Pára. Olha um por um e balbucia: — “Passar bem”. Muito olhado, abandona a farmácia. Todos, ali, acharam, textualmente, que êle estava “fraco da me­mória”.
Foi assim, numa farmácia, entre remédios, que nasceu a fábula do incesto. O próprio Dr. Odorico, num exagêro irritado, afirmara que o povo precisa de “sangue e excremento”. Nem tanto, nem tanto.
Havia, porém, um perigo óbvio. A notícia de um incesto não pode andar em tôdas as mãos. Cada fa­mília tem suas trevas interiores, que é preciso não pro­vocar. De mais a mais, o amor abjeto atrai os espíritos fracos, as mentes não formadas. Por enquanto, havia uma só Engraçadinha. E se, de repente, por um im­pulso de imitação, começassem a aparecer outras, e mais outras, muitas Engraçadinhas? Coincidiu que, naquela altura, um funcionário do Tesouro, senhor já, dos seus quarenta e poucos metesse uma bala na ca­beça. Vejam bem: — uma bala na cabeça! Era pai também de uma filha única, cuja idade regulava com a de Engraçadinha. Houve uma relação entre os dois suicidas e as duas adolescentes? Quem poderá dizê-lo?
E, coisa curiosa ou lamentável, não sei: — as mu­lheres adoraram a fábula sórdida. Nos seus cochichos, as senhoras pareciam despir a menina e com que frívola crueldade! Dizia-se muito: — “Quase não tem seios. Os seios só agora estão nascendo!” Mentira, porque o busto de Engraçadinha fazia bastante volume. Parodiando o Dr. Odorico, poder-se-ia dizer que êsse mexerico universal era, justamente, a nostalgia de “sangue e excremento”.
Quarenta e oito horas depois do episódio da far­mácia, um senhor gordo entra num bar. Toma um re­frigerante, encaminha-se para o reservado dos homens. Lá, descobre na parede, escrita a lápis, uma quadrinha ignóbil. O nome de Engraçadinha estava ali com uma rima fácil. A impropriedade do local — e a miséria do poeta desconhecido — assombraram aquêle homem.
Como eu ia dizendo: — o senhor gordo teve a pa­ciência de copiar a quadrinha, num papel que apanhou no bôlso. Saindo dali, êle tomou um táxi. Durante o caminho ia lendo e relendo os versos miseráveis. Já lhe parecia que estava num mundo de canalhas de ambos os sexos. E concluía para si mesmo, com uma satisfação profunda e gratuita: “Inclusive eu! Eu tam­bém sou um canalha!” Ali, sòzinho, teve um riso grosso, que fêz o chofer virar-se. O passageiro lia mais uma vez o papelucho infame.

* * *

Disse para o chofer:
— Aqui.
Saltou na residência do Dr. Arnaldo. Era uma casa de 1900 — construída ao tempo da febre amarela e da vacina obrigatória (o falecido não admitia futurismos). As portas fechadas, as samambaias da varan­da, as trepadeiras nas grades, tudo tinha um certo sabor de morte ou, digamos, um aroma de entêrro recente. O caixão do eminente pessedista saíra dali.
O gordo já pagou ao chofer e sobe a escada de pedra. Naquela casa, o passado estava em tôda a par­te, as camas, os espelhos, os quartos conservaram a me­mória de partos, bodas e velórios. O homem entrou na sala grande de teto alto, com um quadro da Ceia numa parede e na outra, em frente, uma natureza morta. No chão, uma escarradeira de louça, com flôres desenhadas em relêvo. Ninguém se lembrara de acen­der a luz. Estavam presentes umas cinco parentas; num canto, ao lado do noivo, Engraçadinha. Os vestidos pretos — a noite já caía — aumentavam a pe­numbra da sala, Uma das senhoras vira-se para o re­cém-chegado :
— Até que enfim!
Aquêle homem de poderosa caixa torácica enche a sala com a sua voz de barítono: — “Tenho livro de ponto?” Saíra um momento, para comprar cigarros, e demorara-se quatro horas. Mas êle já anunciava:
— Tenho novidades.
Dá à mulher o papel dos versos — “Vê isso e passa adiante. Mas não deixa Engraçadinha ler”. Neste mo­mento, bate o telefone. Engraçadinha atende; chama:
— Tio Nonô.
O gordo vai atender. Estupefata, a tia Zezé lê aqui­lo e a princípio não entendia nada. Relê; pouco a pouco, vai compreendendo. A obscenidade a ofende como uma agressão física. Passa adiante. Agora é a vez de Tia Ceci, uma velhinha miúda e nostálgica. Olha a quadrinha indecente e logo a enxota de si. Em se­guida, apanha o rosário que lhe escarre dos joelhos e percorre as contas com os dedos febris. A tia Zezé es­pia o marido ao telefone na outra extremidade da sala: vira-se para as outras, num rompante:
— Eu odeio este homem! — e repete, trincando os dentes: — Odeio!
Já a quadrinha da privada andou de mão em mão. Engraçadinha ainda perguntou: — “Deixa eu ver?” Houve uma negativa assustada: — “Você não!” Tia Ceci agarra-se novamente, ao rosário, num pânico de mulher jamais tocada — virgem do bêrço ao túmulo. E, súbito, rompe, à entrada do corredor, um riso ines­perado e selvagem, uma dessas gargalhadas vitais. Era Tio Nonô que, no telefone, explodia na sua ferocidade jocunda. Tia Zezé ergue-se, fora de si:
— Eu não agüento mais! não posso!
Com uma das mãos, cobre o rosto. Antes de desli­gar, tio Nonô ainda bramia, arredondando a voz de barítono, numa modéstia triunfal:
— Eu não como ninguém! Eu não como ninguém!
Tia Zezé senta-se: — “Não respeita nem a morte!” Tinha uma dilatação e as contrariedades a sufocavam. Já o gordo do pescoço grosso e bovino punha o fone no gancho. Por um momento, tira o lenço e enxuga na testa, em tôda a cara e na nuca, o suor grosso como óleo. Enfia o lenço no bôlso traseiro da calça. Ainda arquejava da gargalhada recente. Uma outra procura­va aquietar tia Zezé: — “Não liga!” Mas, quando o ma­rido se aproxima, fica de nôvo, fora de si:
— Foi você que escreveu isso?
Êle perdeu a paciência:
— Está de porre mulher? — Pausa e vira-se para as demais; exagera: — Isso está em tôdas as paredes da cidade! E agora?
A própria tia Zezé está muda. Olha o marido com um esgar de nôjo. Intimamente, porém, não consegue evitar diante dêsse homem uma certa sensação de deslumbramento. Êle é todo barriga, ou mais: — tem uns quadris imensos. De vez em quando, precisa pôr-se de perfil para atravessar as portas. Os dois se olham. Tio Nonô aponte para Engraçadinha:
— Aquela menina. Ainda não tem nem alma. Mas até aí morreu o Neves. A alma vem com o tempo. O pior é que já está na bôca do povo.
Engraçadinha não se move. Pelo contrário: — conserva um jeito, digamos, meio alado. O tio quer sacudi-la. — “Antigamente, eu só via em paredes de mictório nome de político, deputado. De menina de família, é a primeira vez!” Insistia: — “Nunca vi nome de menina de família!” Súbito, tia Zezé começa a gritar:
— E você acredita? Responde! Você acredita? — Esganiçava a voz: — Acredita nessa quadrinha?
Não deu resposta imediata. Andou de uma extre­midade a outra da sala. Responde com outra pergunta:
— Quero que vocês me digam, ou me expliquem o seguinte: — por que é que, na véspera do pai mor­rer, Engraçadinha levou uma surra. De bengala. Não levou uma surra? De bengala? Pois é, levou? E por quê?
A mulher baixa a cabeça, chora. Tio Nonô aproxima-se de Engraçadinha, inclina-se: — “Por quê? Apanhaste, por quê?” Nenhuma resposta. O gordo olhou em torno: — “Tem muita gente aqui. Vamos conversar na biblioteca”. Em silêncio, com inesperada docilidade, Engraçadinha o acompanha. Tio Nonô vai na frente, pensando: — “Essa menina não reage. É linda e parva. Mas, e a surra?” Um pai que nunca tinha batido e, súbito, ia espanca de bengala! Na biblioteca, tio Nonô fecha a porta. Aquêle gordo também a assustava. Êle ria de uma maneira total; havia, sim, na sua gargalhada uma plenitude quase obscena. Res­pira fundo e começa:
— Você quase não fala. Fala agora. Parece que esconde alguma coisa. O que é que você esconde?
Desviando a vista, e com enleio muito leve, disse:
— Estou grávida...
O tio inflama as narinas como se fôsse ventar fogo.

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