Repetia:
— A amante é a filha!
O som da própria voz deu-lhe mêdo. Houve um silêncio na farmácia. Chamara aquêles homens de burros e ninguém reagira. Estavam todos espantados e êle muito mais. Cercado de caras sôfregas, não se mexia. Teve vontade de gritar-lhes: — “Vocês estão radiantes com o incesto. Satisfeitíssimos. Assim é o povo: — tem fome de sangue e excremento”. Mas não disse nada. Sentiu que, a partir daquele momento, não seria mais responsável nem pelas próprias palavras, nem pelos próprios atos. O farmacêutico, um feio esguio, com perfil violento de gato, o avental manchado de pomada, ainda perguntou-lhe:
— O senhor acha?
Olha em tôrno. Cata fósforos, cigarro. Ergue o rosto:
— Acho, perfeitamente, acho. E dai?
Acende o cigarro com a mão trêmula. Olhando aquelas caras próximas, ocorre-lhe a idéia de que não há nada mais obsceno do que o rosto humano. Continua, na sua violência contida, dirigindo-se a um sujeito de chinelos, que devia ser vizinho da farmácia:
— O senhor está espantado? Mas escuta: — eu sou promotor. Dr. Odorico Quintela — estou em Vale das Almas. Conhece, Vale das Almas? Pois bem: — eu seria muito burro, creia, seria muito burro se ainda me espantasse. Eu não me espanto mais. Diga-me, quê é um incesto?
Os outros já lhe faziam rapapés. Era tratado de doutor para cima. O farmacêutico arrisca — “Não é normal, doutor!” Dr. Odorico deixa escapar um “Ora!” sarcástico:
— Isso de pai que se apaixona pela filha ou irmão pela irmã, isso é meu metier, minha rotina, meu ganha-pão. Perceberam?
Ri, pesadamente. Em seguida, passa as costas da mão na bôca molhada. Ninguém diz nada. Num estado de tensão intolerável, começa a pensar absurdos: — “Só a cara é indecente. Do pescoço para baixo, podia-se andar nu!” Idéias, como se vê, sem nenhum cabimento. Ergue a voz, nítida, vibrante:
— Qualquer um — não faço exceção — qualquer um é capaz de coisas piores. Por exemplo: — eu! — e repete, furioso: — Eu sou capaz de coisas muito piores. Digamos que eu fôsse pai dessa menina, sim, dessa Engraçadinha, eu...
Pára. Olha um por um e balbucia: — “Passar bem”. Muito olhado, abandona a farmácia. Todos, ali, acharam, textualmente, que êle estava “fraco da memória”.
Foi assim, numa farmácia, entre remédios, que nasceu a fábula do incesto. O próprio Dr. Odorico, num exagêro irritado, afirmara que o povo precisa de “sangue e excremento”. Nem tanto, nem tanto.
Havia, porém, um perigo óbvio. A notícia de um incesto não pode andar em tôdas as mãos. Cada família tem suas trevas interiores, que é preciso não provocar. De mais a mais, o amor abjeto atrai os espíritos fracos, as mentes não formadas. Por enquanto, havia uma só Engraçadinha. E se, de repente, por um impulso de imitação, começassem a aparecer outras, e mais outras, muitas Engraçadinhas? Coincidiu que, naquela altura, um funcionário do Tesouro, senhor já, dos seus quarenta e poucos metesse uma bala na cabeça. Vejam bem: — uma bala na cabeça! Era pai também de uma filha única, cuja idade regulava com a de Engraçadinha. Houve uma relação entre os dois suicidas e as duas adolescentes? Quem poderá dizê-lo?
E, coisa curiosa ou lamentável, não sei: — as mulheres adoraram a fábula sórdida. Nos seus cochichos, as senhoras pareciam despir a menina e com que frívola crueldade! Dizia-se muito: — “Quase não tem seios. Os seios só agora estão nascendo!” Mentira, porque o busto de Engraçadinha fazia bastante volume. Parodiando o Dr. Odorico, poder-se-ia dizer que êsse mexerico universal era, justamente, a nostalgia de “sangue e excremento”.
Quarenta e oito horas depois do episódio da farmácia, um senhor gordo entra num bar. Toma um refrigerante, encaminha-se para o reservado dos homens. Lá, descobre na parede, escrita a lápis, uma quadrinha ignóbil. O nome de Engraçadinha estava ali com uma rima fácil. A impropriedade do local — e a miséria do poeta desconhecido — assombraram aquêle homem.
Como eu ia dizendo: — o senhor gordo teve a paciência de copiar a quadrinha, num papel que apanhou no bôlso. Saindo dali, êle tomou um táxi. Durante o caminho ia lendo e relendo os versos miseráveis. Já lhe parecia que estava num mundo de canalhas de ambos os sexos. E concluía para si mesmo, com uma satisfação profunda e gratuita: “Inclusive eu! Eu também sou um canalha!” Ali, sòzinho, teve um riso grosso, que fêz o chofer virar-se. O passageiro lia mais uma vez o papelucho infame.
* * *
Disse para o chofer:
— Aqui.
Saltou na residência do Dr. Arnaldo. Era uma casa de 1900 — construída ao tempo da febre amarela e da vacina obrigatória (o falecido não admitia futurismos). As portas fechadas, as samambaias da varanda, as trepadeiras nas grades, tudo tinha um certo sabor de morte ou, digamos, um aroma de entêrro recente. O caixão do eminente pessedista saíra dali.
O gordo já pagou ao chofer e sobe a escada de pedra. Naquela casa, o passado estava em tôda a parte, as camas, os espelhos, os quartos conservaram a memória de partos, bodas e velórios. O homem entrou na sala grande de teto alto, com um quadro da Ceia numa parede e na outra, em frente, uma natureza morta. No chão, uma escarradeira de louça, com flôres desenhadas em relêvo. Ninguém se lembrara de acender a luz. Estavam presentes umas cinco parentas; num canto, ao lado do noivo, Engraçadinha. Os vestidos pretos — a noite já caía — aumentavam a penumbra da sala, Uma das senhoras vira-se para o recém-chegado :
— Até que enfim!
Aquêle homem de poderosa caixa torácica enche a sala com a sua voz de barítono: — “Tenho livro de ponto?” Saíra um momento, para comprar cigarros, e demorara-se quatro horas. Mas êle já anunciava:
— Tenho novidades.
Dá à mulher o papel dos versos — “Vê isso e passa adiante. Mas não deixa Engraçadinha ler”. Neste momento, bate o telefone. Engraçadinha atende; chama:
— Tio Nonô.
O gordo vai atender. Estupefata, a tia Zezé lê aquilo e a princípio não entendia nada. Relê; pouco a pouco, vai compreendendo. A obscenidade a ofende como uma agressão física. Passa adiante. Agora é a vez de Tia Ceci, uma velhinha miúda e nostálgica. Olha a quadrinha indecente e logo a enxota de si. Em seguida, apanha o rosário que lhe escarre dos joelhos e percorre as contas com os dedos febris. A tia Zezé espia o marido ao telefone na outra extremidade da sala: vira-se para as outras, num rompante:
— Eu odeio este homem! — e repete, trincando os dentes: — Odeio!
Já a quadrinha da privada andou de mão em mão. Engraçadinha ainda perguntou: — “Deixa eu ver?” Houve uma negativa assustada: — “Você não!” Tia Ceci agarra-se novamente, ao rosário, num pânico de mulher jamais tocada — virgem do bêrço ao túmulo. E, súbito, rompe, à entrada do corredor, um riso inesperado e selvagem, uma dessas gargalhadas vitais. Era Tio Nonô que, no telefone, explodia na sua ferocidade jocunda. Tia Zezé ergue-se, fora de si:
— Eu não agüento mais! não posso!
Com uma das mãos, cobre o rosto. Antes de desligar, tio Nonô ainda bramia, arredondando a voz de barítono, numa modéstia triunfal:
— Eu não como ninguém! Eu não como ninguém!
Tia Zezé senta-se: — “Não respeita nem a morte!” Tinha uma dilatação e as contrariedades a sufocavam. Já o gordo do pescoço grosso e bovino punha o fone no gancho. Por um momento, tira o lenço e enxuga na testa, em tôda a cara e na nuca, o suor grosso como óleo. Enfia o lenço no bôlso traseiro da calça. Ainda arquejava da gargalhada recente. Uma outra procurava aquietar tia Zezé: — “Não liga!” Mas, quando o marido se aproxima, fica de nôvo, fora de si:
— Foi você que escreveu isso?
Êle perdeu a paciência:
— Está de porre mulher? — Pausa e vira-se para as demais; exagera: — Isso está em tôdas as paredes da cidade! E agora?
A própria tia Zezé está muda. Olha o marido com um esgar de nôjo. Intimamente, porém, não consegue evitar diante dêsse homem uma certa sensação de deslumbramento. Êle é todo barriga, ou mais: — tem uns quadris imensos. De vez em quando, precisa pôr-se de perfil para atravessar as portas. Os dois se olham. Tio Nonô aponte para Engraçadinha:
— Aquela menina. Ainda não tem nem alma. Mas até aí morreu o Neves. A alma vem com o tempo. O pior é que já está na bôca do povo.
Engraçadinha não se move. Pelo contrário: — conserva um jeito, digamos, meio alado. O tio quer sacudi-la. — “Antigamente, eu só via em paredes de mictório nome de político, deputado. De menina de família, é a primeira vez!” Insistia: — “Nunca vi nome de menina de família!” Súbito, tia Zezé começa a gritar:
— E você acredita? Responde! Você acredita? — Esganiçava a voz: — Acredita nessa quadrinha?
Não deu resposta imediata. Andou de uma extremidade a outra da sala. Responde com outra pergunta:
— Quero que vocês me digam, ou me expliquem o seguinte: — por que é que, na véspera do pai morrer, Engraçadinha levou uma surra. De bengala. Não levou uma surra? De bengala? Pois é, levou? E por quê?
A mulher baixa a cabeça, chora. Tio Nonô aproxima-se de Engraçadinha, inclina-se: — “Por quê? Apanhaste, por quê?” Nenhuma resposta. O gordo olhou em torno: — “Tem muita gente aqui. Vamos conversar na biblioteca”. Em silêncio, com inesperada docilidade, Engraçadinha o acompanha. Tio Nonô vai na frente, pensando: — “Essa menina não reage. É linda e parva. Mas, e a surra?” Um pai que nunca tinha batido e, súbito, ia espanca de bengala! Na biblioteca, tio Nonô fecha a porta. Aquêle gordo também a assustava. Êle ria de uma maneira total; havia, sim, na sua gargalhada uma plenitude quase obscena. Respira fundo e começa:
— Você quase não fala. Fala agora. Parece que esconde alguma coisa. O que é que você esconde?
Desviando a vista, e com enleio muito leve, disse:
— Estou grávida...
O tio inflama as narinas como se fôsse ventar fogo.
— A amante é a filha!
O som da própria voz deu-lhe mêdo. Houve um silêncio na farmácia. Chamara aquêles homens de burros e ninguém reagira. Estavam todos espantados e êle muito mais. Cercado de caras sôfregas, não se mexia. Teve vontade de gritar-lhes: — “Vocês estão radiantes com o incesto. Satisfeitíssimos. Assim é o povo: — tem fome de sangue e excremento”. Mas não disse nada. Sentiu que, a partir daquele momento, não seria mais responsável nem pelas próprias palavras, nem pelos próprios atos. O farmacêutico, um feio esguio, com perfil violento de gato, o avental manchado de pomada, ainda perguntou-lhe:
— O senhor acha?
Olha em tôrno. Cata fósforos, cigarro. Ergue o rosto:
— Acho, perfeitamente, acho. E dai?
Acende o cigarro com a mão trêmula. Olhando aquelas caras próximas, ocorre-lhe a idéia de que não há nada mais obsceno do que o rosto humano. Continua, na sua violência contida, dirigindo-se a um sujeito de chinelos, que devia ser vizinho da farmácia:
— O senhor está espantado? Mas escuta: — eu sou promotor. Dr. Odorico Quintela — estou em Vale das Almas. Conhece, Vale das Almas? Pois bem: — eu seria muito burro, creia, seria muito burro se ainda me espantasse. Eu não me espanto mais. Diga-me, quê é um incesto?
Os outros já lhe faziam rapapés. Era tratado de doutor para cima. O farmacêutico arrisca — “Não é normal, doutor!” Dr. Odorico deixa escapar um “Ora!” sarcástico:
— Isso de pai que se apaixona pela filha ou irmão pela irmã, isso é meu metier, minha rotina, meu ganha-pão. Perceberam?
Ri, pesadamente. Em seguida, passa as costas da mão na bôca molhada. Ninguém diz nada. Num estado de tensão intolerável, começa a pensar absurdos: — “Só a cara é indecente. Do pescoço para baixo, podia-se andar nu!” Idéias, como se vê, sem nenhum cabimento. Ergue a voz, nítida, vibrante:
— Qualquer um — não faço exceção — qualquer um é capaz de coisas piores. Por exemplo: — eu! — e repete, furioso: — Eu sou capaz de coisas muito piores. Digamos que eu fôsse pai dessa menina, sim, dessa Engraçadinha, eu...
Pára. Olha um por um e balbucia: — “Passar bem”. Muito olhado, abandona a farmácia. Todos, ali, acharam, textualmente, que êle estava “fraco da memória”.
Foi assim, numa farmácia, entre remédios, que nasceu a fábula do incesto. O próprio Dr. Odorico, num exagêro irritado, afirmara que o povo precisa de “sangue e excremento”. Nem tanto, nem tanto.
Havia, porém, um perigo óbvio. A notícia de um incesto não pode andar em tôdas as mãos. Cada família tem suas trevas interiores, que é preciso não provocar. De mais a mais, o amor abjeto atrai os espíritos fracos, as mentes não formadas. Por enquanto, havia uma só Engraçadinha. E se, de repente, por um impulso de imitação, começassem a aparecer outras, e mais outras, muitas Engraçadinhas? Coincidiu que, naquela altura, um funcionário do Tesouro, senhor já, dos seus quarenta e poucos metesse uma bala na cabeça. Vejam bem: — uma bala na cabeça! Era pai também de uma filha única, cuja idade regulava com a de Engraçadinha. Houve uma relação entre os dois suicidas e as duas adolescentes? Quem poderá dizê-lo?
E, coisa curiosa ou lamentável, não sei: — as mulheres adoraram a fábula sórdida. Nos seus cochichos, as senhoras pareciam despir a menina e com que frívola crueldade! Dizia-se muito: — “Quase não tem seios. Os seios só agora estão nascendo!” Mentira, porque o busto de Engraçadinha fazia bastante volume. Parodiando o Dr. Odorico, poder-se-ia dizer que êsse mexerico universal era, justamente, a nostalgia de “sangue e excremento”.
Quarenta e oito horas depois do episódio da farmácia, um senhor gordo entra num bar. Toma um refrigerante, encaminha-se para o reservado dos homens. Lá, descobre na parede, escrita a lápis, uma quadrinha ignóbil. O nome de Engraçadinha estava ali com uma rima fácil. A impropriedade do local — e a miséria do poeta desconhecido — assombraram aquêle homem.
Como eu ia dizendo: — o senhor gordo teve a paciência de copiar a quadrinha, num papel que apanhou no bôlso. Saindo dali, êle tomou um táxi. Durante o caminho ia lendo e relendo os versos miseráveis. Já lhe parecia que estava num mundo de canalhas de ambos os sexos. E concluía para si mesmo, com uma satisfação profunda e gratuita: “Inclusive eu! Eu também sou um canalha!” Ali, sòzinho, teve um riso grosso, que fêz o chofer virar-se. O passageiro lia mais uma vez o papelucho infame.
* * *
Disse para o chofer:
— Aqui.
Saltou na residência do Dr. Arnaldo. Era uma casa de 1900 — construída ao tempo da febre amarela e da vacina obrigatória (o falecido não admitia futurismos). As portas fechadas, as samambaias da varanda, as trepadeiras nas grades, tudo tinha um certo sabor de morte ou, digamos, um aroma de entêrro recente. O caixão do eminente pessedista saíra dali.
O gordo já pagou ao chofer e sobe a escada de pedra. Naquela casa, o passado estava em tôda a parte, as camas, os espelhos, os quartos conservaram a memória de partos, bodas e velórios. O homem entrou na sala grande de teto alto, com um quadro da Ceia numa parede e na outra, em frente, uma natureza morta. No chão, uma escarradeira de louça, com flôres desenhadas em relêvo. Ninguém se lembrara de acender a luz. Estavam presentes umas cinco parentas; num canto, ao lado do noivo, Engraçadinha. Os vestidos pretos — a noite já caía — aumentavam a penumbra da sala, Uma das senhoras vira-se para o recém-chegado :
— Até que enfim!
Aquêle homem de poderosa caixa torácica enche a sala com a sua voz de barítono: — “Tenho livro de ponto?” Saíra um momento, para comprar cigarros, e demorara-se quatro horas. Mas êle já anunciava:
— Tenho novidades.
Dá à mulher o papel dos versos — “Vê isso e passa adiante. Mas não deixa Engraçadinha ler”. Neste momento, bate o telefone. Engraçadinha atende; chama:
— Tio Nonô.
O gordo vai atender. Estupefata, a tia Zezé lê aquilo e a princípio não entendia nada. Relê; pouco a pouco, vai compreendendo. A obscenidade a ofende como uma agressão física. Passa adiante. Agora é a vez de Tia Ceci, uma velhinha miúda e nostálgica. Olha a quadrinha indecente e logo a enxota de si. Em seguida, apanha o rosário que lhe escarre dos joelhos e percorre as contas com os dedos febris. A tia Zezé espia o marido ao telefone na outra extremidade da sala: vira-se para as outras, num rompante:
— Eu odeio este homem! — e repete, trincando os dentes: — Odeio!
Já a quadrinha da privada andou de mão em mão. Engraçadinha ainda perguntou: — “Deixa eu ver?” Houve uma negativa assustada: — “Você não!” Tia Ceci agarra-se novamente, ao rosário, num pânico de mulher jamais tocada — virgem do bêrço ao túmulo. E, súbito, rompe, à entrada do corredor, um riso inesperado e selvagem, uma dessas gargalhadas vitais. Era Tio Nonô que, no telefone, explodia na sua ferocidade jocunda. Tia Zezé ergue-se, fora de si:
— Eu não agüento mais! não posso!
Com uma das mãos, cobre o rosto. Antes de desligar, tio Nonô ainda bramia, arredondando a voz de barítono, numa modéstia triunfal:
— Eu não como ninguém! Eu não como ninguém!
Tia Zezé senta-se: — “Não respeita nem a morte!” Tinha uma dilatação e as contrariedades a sufocavam. Já o gordo do pescoço grosso e bovino punha o fone no gancho. Por um momento, tira o lenço e enxuga na testa, em tôda a cara e na nuca, o suor grosso como óleo. Enfia o lenço no bôlso traseiro da calça. Ainda arquejava da gargalhada recente. Uma outra procurava aquietar tia Zezé: — “Não liga!” Mas, quando o marido se aproxima, fica de nôvo, fora de si:
— Foi você que escreveu isso?
Êle perdeu a paciência:
— Está de porre mulher? — Pausa e vira-se para as demais; exagera: — Isso está em tôdas as paredes da cidade! E agora?
A própria tia Zezé está muda. Olha o marido com um esgar de nôjo. Intimamente, porém, não consegue evitar diante dêsse homem uma certa sensação de deslumbramento. Êle é todo barriga, ou mais: — tem uns quadris imensos. De vez em quando, precisa pôr-se de perfil para atravessar as portas. Os dois se olham. Tio Nonô aponte para Engraçadinha:
— Aquela menina. Ainda não tem nem alma. Mas até aí morreu o Neves. A alma vem com o tempo. O pior é que já está na bôca do povo.
Engraçadinha não se move. Pelo contrário: — conserva um jeito, digamos, meio alado. O tio quer sacudi-la. — “Antigamente, eu só via em paredes de mictório nome de político, deputado. De menina de família, é a primeira vez!” Insistia: — “Nunca vi nome de menina de família!” Súbito, tia Zezé começa a gritar:
— E você acredita? Responde! Você acredita? — Esganiçava a voz: — Acredita nessa quadrinha?
Não deu resposta imediata. Andou de uma extremidade a outra da sala. Responde com outra pergunta:
— Quero que vocês me digam, ou me expliquem o seguinte: — por que é que, na véspera do pai morrer, Engraçadinha levou uma surra. De bengala. Não levou uma surra? De bengala? Pois é, levou? E por quê?
A mulher baixa a cabeça, chora. Tio Nonô aproxima-se de Engraçadinha, inclina-se: — “Por quê? Apanhaste, por quê?” Nenhuma resposta. O gordo olhou em torno: — “Tem muita gente aqui. Vamos conversar na biblioteca”. Em silêncio, com inesperada docilidade, Engraçadinha o acompanha. Tio Nonô vai na frente, pensando: — “Essa menina não reage. É linda e parva. Mas, e a surra?” Um pai que nunca tinha batido e, súbito, ia espanca de bengala! Na biblioteca, tio Nonô fecha a porta. Aquêle gordo também a assustava. Êle ria de uma maneira total; havia, sim, na sua gargalhada uma plenitude quase obscena. Respira fundo e começa:
— Você quase não fala. Fala agora. Parece que esconde alguma coisa. O que é que você esconde?
Desviando a vista, e com enleio muito leve, disse:
— Estou grávida...
O tio inflama as narinas como se fôsse ventar fogo.
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