segunda-feira, 24 de agosto de 2009

CAPÍTULO V

Quase grita:
— Meu pai?
Olha, de lado, a mão quente e fôfa que ainda a segura. Repete, como se falasse para si mesma: — “Meu pai?” Súbito, desprende-se com violência. Tio Nonô ergue-se também. Engraçadinha recua diante do gordo. Êste pergunta, de nôvo, avançando:
— Foi ou não foi teu pai?
Engraçadinha estaca. Põe as mãos para trás e olha o tio agora sem mêdo. E, de repente, gira, sôbre si mesma, numa pirueta de ágil e alegre infantilidade. Soou falso aquêle movimento frívolo, em princípio de gravidez. Desesperado, estrangula a voz (Que vontade de dar-lhe um tapa na bôca):
— Responde!
E ela:
— Quem sabe?
De perfil para êle, ergue o rosto. Foi a petulância, o desafio que o enfureceu. Balbucia, com os beiços tre­mendo: — “Sim ou não. Fala ou te arrebento!” Estão frente a frente. Ela começa a chorar:
— Pois foi meu pai, pronto!
Quase sem voz, o tio arqueja:
— Teu pai?
Não entende, ou, por outra: entende muito bem. Imaginava: — “Era um casto. Eis aí o resultado da castidade”. Riu-se dos que são fisicamente puros. Re­petia, agora exultante: — “O desejo do puro é hedion­do”. Vira-se para a sobrinha que, sentada, continua chorando:
— Te deu a surra por quê?
Levanta o olhar.
— Ciúmes.
E êle:
— Do teu noivo?
Corrigiu:
— De todos. Também do meu noivo e até do se­nhor.
— De mim? E por quê de mim? A trôco de quê? — Repetia a pergunta: — Ciúmes de mim?
Ciciou, como se alguém pudesse ouvi-los:
— Êle achava que o senhor queria alguma coisa comigo.
Sem tirar os olhos da menina, bradou:
— Mas então o homem estava louco! Maluco!
Ergueu-se, novamente furioso: e uma coisa o es­panta: estava enojado! — “Eu não devo ser tão canalha, porque...” De fato, sofria como nunca e êste so­frimento lhe fazia um certo bem. Repetia para si mes­mo: — “Sou menos sórdido do que pensava”. Não sabe o que fazer, o que pensar. “Essa pequena esconde o quê?” Perguntava a si mesmo. Fêz-lhe o última per­gunta (foi uma curiosidade vil):
— Êle usou violência?
E a pequena:
— Como?
Sacudiu a cabeça:
— Nada.
Enxugou o suor das mãos. De nôvo, sentiu no olhar da pequena, no sorriso e até na maneira de sen­tar-se, de separar os joelhos — sentiu o instinto da prostituta. Tinha uma bôca de mulher que sabe beijar, que sabe molhar o beijo. Parecia amoral como uma planta ou um bichinho de avenca. Êle passa as costas da mão nos beiços: — “Não sabe o que fêz”, conclui. Numa surda cólera, ergue-se:
— Tua tia precisa saber disso!
Encaminhou-se para a porta. Engraçadinha corre atrás, barra-lhe a passagem.
— Não!
Com uma energia selvagem, diz-lhe: — “Não meta mulher nisso!” Exasperado, empurrou-a. Ela bate com o pé, esganiçando a voz em grito: — “Não quero!” Mas êle já saía pelo corredor, numa alucinação. Ia buscar a mulher, a cretina da mulher. No meio do corredor, pára um momento: — “Quando ela disse que o pai tinha ciúmes de mim — olhou como se... Tinha saliva nos cantos da bôca...” Perguntava a si mesmo: — “Seria uma insinuação ou quê?”

* * *

O Irmão Fidélis entrou sem bater na casa de En­graçadinha. Vinha amargo, pagara o carro e resmun­gava: — “Não vou cobrar o táxi, claro”. Ao vê-lo, tia Zezé arremessou-se:
— Até que enfim!
E êle, doce, ainda pensando em Jackson Figuei­redo :
— Como vai a senhora, D. Maria José?
Tia Zezé respirou fundo:
— Vou me separar, Irmão Fidélis! Desta vez, ah, vou!
Chorava. Em silêncio, êle a contemplava com a sua bondade compreensiva; suspira também: — “Vir­tude é sacrifício!” — Desde a morte do Dr. Arnaldo, que o Irmão Fidélis se dedicava, com astuta obstina­ção, a dominar essa mulher. Sabia que uma histérica, uma desequilibrada, podia ser-lhe útil. As neuróticas espalham o terror e são militantes e irresistíveis. An­tes de atendê-la, saiu cumprimentando as pessoas pre­sentes, uma por uma, e parou com uma cordialidade especial e mesmo terna junto de tia Ceci; “Ah, como está?” Ouvira dizer que a velhinha só tomava banho de bacia, banho de assento. Tia Ceci apanhou, sôfrega, a mão dêle e a beijou. Cumprimentou Zózimo também. Êste não retribuiu porque cochilava na cadeira. Final­mente, êle se encaminhou para a tia Zezé, que se assoava. Tôdas, ali, o consideravam uma espécie de santo. Êle falava manso, falava macio, e uma alegria muito pura parecia embelezar o seu rosto. Inclina-se diante de tia Zezé:
— Estou à sua inteira disposição.
Levou-o para a varanda. Abriu o coração: — “Te­nho nojo dêsse homem, nojo. O senhor sabe o que é o nojo? Vou lhe dizer mais: — Deus me perdoe, mas se meu marido morresse...” Irmão Fidélis interrompe: — “A senhora está exaltada. Mas isso passa, pode crer que passa”. Pouco a pouco, ela foi-se acalmando. Sus­pira: — “Ah, Irmão Fidélis, que seria de mim sem o senhor?” De fato, aquêle homem dava-lhe uma sensa­ção de presença consoladora e solidária. Disse mesmo: — “Só o senhor me compreende”. Por fim, êle dá-lhe o conselho:
— Olha, faz o seguinte: — Quando a senhora es­tiver muito zangada com o seu marido, encha a bôca de água. Mas não engula. Conserve a água na bôca e deixe seu marido falar.
Meio aturdida, perguntou: — “Que mais?” Irmão Fidélis teve um riso bom: — “O rosto é óbvio. Com a bôca cheia, a senhoria não pode responder e assim não haverá discussão. Entende agora? Nem discussão, nem briga, por falta de adversário”. E insistia, com a voz velada em doçura: — “O seu marido não é per­feito. Ninguém é perfeito. Mas tem suas qualidades”. Tia Zezé ouvia cada palavra com uma fisionomia atô­nita e com uma voluptuosidade, digamos assim, ma­terial. Sentia nascer ou renascer em si, no mais intimo do seu ser, uma onda de indulgência para com o ma­rido. Sussurra, como que o adorando:
— O senhor tem razão. Tem sempre razão.
Nôvo sorriso.
“Não exageremos!” E pensava — “Precisa estômago para aguentar essa mulher!” Neste momento, ouve-se um barulho. Tio Nonô invadiu a sala, como se a inundasse com os seus quadris, a sua barriga. Apro­ximou-se com um riso ofegante. Estava certo de que a sobrinha era uma prostituta instintiva. Por um mo­mento, mas só por um momento, o rosto do Irmão Fi­délis foi uma máscara cruel, de uma malignidade implacável. Também o tio Nonô vacila, pois não espe­rava encontrá-lo. E pensa: — “Êsse urubu aqui!” Sem o dar a perceber, Irmão Fidélis tinha-lhe ódio. Mas já lhe estendia a mão, num exagero de cordialidade:
— O amigo vai bem?
Tio Nonô vira-lhe as costas e se dirige à mulher:
— Êle pode ouvir?
Replicou, como uma fanática: — “Tudo!” Então, o gordo fala para os dois:
— Ouve essa! E também o senhor! Isso que an­dam dizendo pela cidade, e que você leu na quadrinha — é verdade, ouviu? É verdade! Foi aquêle cachorro, o crápula do teu irmão! Engraçadinha me contou isso assim, assim!
Diante do gordo, a mulher não se mexia, petrifi­cada de assombro. E outro que sofreu foi o Irmão Fi­délis. Aquilo doeu-lhe até nos maxilares. Teve vontade de soltar palavrões. Repetia para si mesmo: — “É então verdade e o cretino não me contou nada, nunca me fêz uma insinuação! Gostava da filha e eu não sabia, nem podia imaginar. Ah, se eu soubesse! Teria sugerido com jeitinho, claro, com tato, uma autoriza­ção não expressa, mas que a besta entendesse. Diria, por exemplo, que ninguém manda nos próprios senti­mentos. Eu ficaria de posse do segrêdo, seríamos cúm­plices, nós dois!” O Irmão Fidélis só acreditava na fi­delidade entre cúmplices; repetia, na sua frustração: — “Só o cúmplices é fiel!” Mas o Dr. Arnaldo, em vez da cumplicidade, preferira uma bala na cabeça. Naquele momento, tia Zezé voltava a si murmurando: — “Não acredito, não pode ser”. Então, o Irmão Fi­délis tem uma ardente inspiração; ergue a voz:
— Mas se isso é verdade, então mais do que nunca essa menina precisa de nós! Precisa de Deus! Vamos salvá-la!
O que aconteceu depois foi indescritível. O Irmão Fidélis ia, na frente, a fronte alta de fanático, levando, de roldão, o gordo e tia Zezé.

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