terça-feira, 25 de agosto de 2009

CAPÍTULO VI

Caminhando no corredor — seguido do gordo e de tia Zezé — o Irmão Fidélis imaginava a miséria do deputado morto. Parecia ver o velho sátiro altas horas, andando pela casa: descalço, as ceroulas de amarrar nas canelas, o lábio caído, a pupila ardente. E uma curiosidade o ralava: — teria havido ‘luta, resistência, talvez um grito abafado? Admitia também que o po­lítico tivesse tapado com a mão a bôca da pequena. Quando o Irmão Fidélis, no fundo do corredor, torce o trinco e abre a porta da biblioteca, tem a surpresa: — não havia lá ninguém. Vira-se para o gordo e a tia Zezé:
— Quede?
E o tio Nonô, espiando por cima do seu ombro:
— Ué!
Engraçadinha estava ali agora mesmo e já sumi­ra? Tia Zezé volta para o corredor e chama aflita:
— Engraçadinha! Engraçadinha!
Calado, o rosto bem erguido, o Irmão Fidélis tinha na cabeça duas figuras dessemelhantes e mesmo con­traditórias: — de um lado, o “fauno legislativo” (se­gundo outra expressão feliz e sarcástica que lhe ocor­rera), e de outro lado, Jackson Figueiredo. Ora pensa­va num, ora noutro, ora no incesto, ora na gafe. No pânico de ficar mal junto ao Reitor, já se contradizia frontalmente: — “O Jackson era um líder, afinal de contas. Tinha uma agressividade que falta ao Tristão”. Enquanto tia Zezé procurava Engraçadinha, tio Nonô vira-se para o Irmão e o acomete, com a sua feroci­dade jocunda:
— Lá no cemitério, disseram que o meu cunhado era um grande homem! Eis o grande homem! — Mos­trava o riso bestial para o outro: — Por isso é que eu não acredito em herói, não acredito em ninguém!
Irmãos Fidélis jamais gostara de tio Nonô e agora menos do que nunca. Odiou-o com tôda a violência. Mas, por fora, não se deu por achado e parecia ouvi-lo com uma fraternal deferência. Na medida de sua raiva, tornou-se ainda mais suave e de uma humilda­de ainda mais afetada. O gordo continuava, com a boca encharcada de saliva:
— Quando vejo uma estátua eqüestre, acho que o herói é que devia ser o cavalo! — E repetia, para exas­perar o Irmão Fidélis: — O homenageado é que devia testar por baixo, de quatro, montado!
O Irmão sorria apenas, como se aquilo fôsse um paradoxo cordial e inofensivo. Mas havia uma alusão à besta do Dr. Arnaldo. Subitamente sério, mas sem perder a doçura, objetou:
— A um morto se perdoa.
Foi só. Por trás do jeito manso, porém, êle se ima­ginava de pedra na mão, batendo na cabeça daquele monstro, até afundar-lhe a testa, destruir-lhe tôda a cara. Felizmente, tia Zezé aparecia; e chamava alguém, atrás de si:
— Vem, Engraçadinha, vem. Entra.

* * *

Eis o que acontecera na biblioteca: — tio Nonô saíra, como vimos. Sòzinha, a pequena torce a ponta do nariz entre o indicador e o polegar; espreme uma espinha, ainda pequenina, que estava nascendo e que começava a doer um pouquinho. Pensava: — “Ah, se o tio soubesse!” Mas ninguém sabia de nada.
Por fim, a pequena ergue-se e decide: “Não digo nada a tia Zezé”. Não gostava da pobre senhora e quando a via por perto, pensava na sua irritação: — “Tem morrinha”. De fato, tia Zezé, já de certa idade, quase não se perfumava. O uso do perfume parecia-lhe uma confissão de temperamento voluptuoso. Cri­ticava uma amiga, bem mais môça, que passava água de colônia nos braços e, até, nos seios. Mas Engraça­dinha, com o egoísmo e as incompreensões normais dos seus 18 anos, não gostava de “gente velha”. E quando tia Zezé vinha com suas idéias de outra geração, a menina saía resmungando, para si mesma: — “Essa chata!” Pouco depois que tio Nonô saiu da bi­blioteca, Engraçadinha vai para o quarto, que era na segunda porta do corredor, à direita. Entra lá e tran­ca-se. Só não quer pensar em Sílvio. (Nunca mais pen­sar em Sílvio). E, no quarto, coloca-se diante do es­pelho. Primeiro fica de perfil; depois, de frente. E, por último, com um sorriso muito leve e um olhou inten­cionalmente doce — como se tivesse um flerte consigo mesma — ela vai erguendo a sáia, devagarinho. Olha, então, numa curiosidade meio atônita, as próprias coxas. Tem um movimento lindo de cabeça, como uma espanhola de balé. Às vêzes, ela, Letícia e as coleguinhas comparavam as cosas entre si e Engraçadinha ganhava, longe. Vendo-a assim, alguém acharia que tôda mulher bonita é um pouco a namorada lésbica de si mesma. Certa vez, na rua, um moreno escuro, de beiços pesados, atirou-lhe o galanteio:
— Gostosa!
Em casa ligou rápido para Letícia. Contou-lhe: — “Imagina! Fui chamada de gostosa!” Tinha certeza que a outra não lhe chegava aos pés. Aliás, por onde passa­va, Engraçadinha ia sentindo, em tôrno, a efervescên­cia do desejo anônimo e geral. Ficava prestando aten­ção; pensava: — “Aquêle está me olhando”. Quando passava por um espêlho, olhava-se, meio de perfil, para si mesma. Nada a excitava mais do que a própria imagem. E, agora, já pensava em tirar tudo, para ver a nudez começar nos pés e subir pelas pernas, pelos quadris, pelo ventre. Começava a desabotoar nas costas. Súbito, batem na porta. Vira-se, de lábios cerrados. Tia Zezé a chama e Engraçadinha tem vontade não sei de quê. Oh, que chateação, meu Deus! Tia Zezé mexe no trinco: — “Abre! Abre!” E a menina para si mes­ma: — “Ih, não sei porque gente velha não morre!” Abre a porta com violência:
— Que troço chato!
Tia Zezé entra. Não acredita ou, por outra, não queria acreditar. Como tôda pessoa nervosa, não podia suportar a dúvida, precisava de certezas frenéticas, e que lhe fôssem convenientes. Sua atual “certeza frené­tica” era a inocência da sobrinha. Mas, ao ver a peque­na, — sentiu novamente a dúvida na carne e na alma; baixou a voz:
— Se houver alguma coisa — e se você está... — não quis dizer “grávida”; e continua: — Você nega, ouviu. Nega até o fim!
Deu moxoxo:
— Ih, titia! Sei lá do que é que a senhora está falando!
Já com palpitações, a velha puxa Engraçadinha:
— Vem comigo, vem!
A garôta ia repetindo:
— Gozado! Todo o mundo, hoje, cismou com a minha cara!

* * *

O Irmão Fidélis faz-lhe festa, como se ignorasse tudo:
— Como vai a nossa amiguinha?
Engraçadinha não esperava encontrá-lo ali. De pé atrás, nem retribui o cumprimento. Olha para o outro lado; e pensa: — “Tio Nonô contou pra todo o mundo, mas que se dane”. O gordo atravessou-se na frente do Irmão:
— Escuta, Engraçadinha: — repete, para êles, re­pete, o que você me disse!
Tia Zezé olha êsse marido. Fecha os olhos, amaldiçoando-o, interiormente: — “Canalha!” Nenhuma resposta de Engraçadinha. Tio Nonô levanta a voz, com um comêço de fúria:
— Eu estou falando! — E mais controlado: — Você não disse, aqui, ainda agora que estava grávida? — Ergue a voz: — Disse ou não disse?
Calada, os lábios cerrados, Engraçadinha lembra-se do crioulo, operário de uma obra, que a chamara de “Gostosa”. (Só não queria pensar em Sílvio). O crioulo tinha um cabelo farto debaixo do braço.
A hipótese de que, de repente, ela negasse tudo, enfureceu tio Nonô. Berra:
— Fala!
Súbito a pequena vira as costas para os três. Tia Zezé pede a Deus, com tôda a violência de sua fé, que Engraçadinha negasse até morrer. Em pé, crispada, faz uma promessa: — Se Engraçadinha negasse, ela, tia Zezé ofereceria um círio do tamanho de um homem, a S. Francisco do Canindé. Tio Nonô está fora de si: — “Ah sem-vergonha!” Agarra a Sobrinha pelo braço. Então, ouve-se a voz, fina, mas vibrante, do Irmão Fidélis:
— Um momento!
Erguia uma das mãos, como se quisesse pacificar aquelas almas. Tio Nonô, meio confuso, volta-se. Numa afetação ainda maior de humildade, Irmão Fi­délis começa:
— Eu queria falar, a sós, com a nossa amiguinha. Vocês me dão licença? Tenho certeza que a mim — fala para a menina — não é Engraçadinha? — a mim ela dirá.
Tio Nonô vacila. Irmão Fidélis leva-o para um can­to, cochicha a hipótese: — “Talvez seja mentira! Nessa idade, a virgem é meio delirante...” O outro tem um alegre e bestial espanto: — “Virgem grávida, Irmão?” Sempre em voz baixa, Irmão Fidélis explica: — “A gravidez talvez seja tão falsa como o incesto. E pode deixar, que eu arranco a confissão”. O gordo acabou saindo; mas bufava: — “Ou ela confirma ou... Vaqui­nha!” Tia Zezé o acompanha. Irmão Fidélis fecha a porta à chave. Por um momento, junto à porta, contem­pla Engraçadinha. Considerou que, de fato, a menina tinha uma maneira feia de sentar-se, separando muito os joelhos. Aproxima-se, então, e senta-se, de frente para a garota. Mas logo ergue-se. Achava que o homem sentado não alcança jamais a sua plenitude. Andando de um lado para outro, levanta a voz:
— Menina! O ser humano é incorruptível! Nada corrompe o ser humano! A corrupção é uma impossi­bilidade! Só existe o falso corrupto! O pior devasso é ainda um puro!
Dizia isso aos berros e com uma sinceridade que o apanhou de surprêsa.

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