domingo, 2 de agosto de 2009

A FRALDINHA AMEAÇADORA

Bateu o telefone para a casa da menina:
— Por obséquio. Abigail está?
Veio a resposta sucinta, inapelável.
— Viajou.
Disfarçou a angústia: “Sabe quando volta?”. E a pessoa:
— Não sei informar.
Desligando o telefone, ele não teve dúvida: aquilo não era viagem, não era nada, era fuga, fuga desesperada, talvez defini­tiva. E, então, apertando a cabeça entre as mãos, ele chorou al­to, chorou forte. Na boca da velhice, com mais de quarenta anos, casado, pai de filhos, apaixonara-se por uma menina de dezes­sete anos. E esse amor de grisalho por uma adolescente foi, pa­ra ele, um contínuo dilaceramento.
Médico, largou a clínica. Despachava os clientes, com a se­guinte franqueza: “Não sei receitar nem Melhorai”. E o pior de tudo, o patético, é que a menina retribuiu, com a violência de um primeiro amor. Houve alguns beijos, e a pequena, que vi­nha de um colégio interno, suspirava fechando os olhos:
— Eu não sabia que beijo era tão bom.

HISTÓRIA DE AMOR

Quando começara aquilo? Um mês atrás, Abigail aparecera no seu consultório com Eleonor, uma cordialíssima solteirona que era uma antiga cliente de Genival. Bastou um primeiro olhar e pronto. Pensou, com o coração batendo mais forte: “Vou me apaixonar por essa pequena”. A sala de espera estava apinhada de clientes, a maioria dos quais de hora marcada. E, então, Genival tratou de reter Abigail, de envolvê-la como se esse primeiro encontro fosse também o último. O caso clínico da garota era o mais banal, e, por assim dizer, inexistente. Mas Abigail só saiu de lá duas horas depois. Quando elas se despediram, ele, trans­pirando de dor de cabeça, chamou a enfermeira: “Não atendo mais ninguém”. Sentou-se na cadeira giratória, apertou a cabe­ça entre as mãos e refletia: “Estou apaixonado”.
No dia seguinte, em pleno expediente do consultório, re­cebe um trote. Seu coração dispara, quando reconhece a voz: era Abigail. Passa quarenta e cinco minutos no telefone. Passa quarenta e cinco minutos na veemência e na inépcia de um ginasiano. Saiu do telefone e, ao atender um doente grave, bufa:
— Eu estou mais doente do que você!

DOENÇA

Durante quinze dias puderam esconder seu desesperado amor. Encontravam-se e passeavam nas horas menos suspeitas, quase sempre pela manhã. Ele, sôfrego, teorizava: “Uma mu­lher pode fazer o diabo às dez horas da manhã. Ninguém des­confia que se possa pecar tão cedo!”. Ria da própria pilhéria. Pelo espaço de duas semanas, viveu para essa paixão de quase velho. E, súbito, a família da pequena descobre tudo.
Abigail tinha um desses pais à antiga, duma cólera imensa e teatral. Primeira medida do velho: encerrar a pequena no quar­to. E avisou: “Você não me sai do quarto nem para comer!”.
Genival quase enlouquece. Telefonava cinqüenta vezes por dia, com uma obstinação de possesso. A princípio diziam: “Saiu”, ou “Não pode atender”. Por fim, o próprio pai de Abi­gail, com uma dignidade irresistível, ameaçou-o: “Dou-lhe um tiro!”. Como um miserando, Genival ia rondar a casa da pequena alta madrugada. Reconhecia, de si para si: “Sem essa pequena, eu não vivo!”. Resiste, sem telefonar, uns dez dias. No décimo primeiro, entra num café, liga para a casa de Abigail e sabe que ela “viajou”.
Sofreu tanto que chegou a pensar no suicídio. Súbito, ocorre-lhe um nome: Eleonor, a solteirona, que era sua amiga e de Abigail. Foi bater na porta de Eleonor. No começo, a outra resistiu. Mas acabou cedendo ante suas lágrimas de homem. Disse:
— Embarcou para o Canadá ontem.
Ele apanha a mão da solteirona e cobre de beijos, numa gra­tidão de louco.

CANADÁ

Quando saiu da casa de Eleonor, levava, no bolso, um papelzinho com o endereço completo. A garota viajara sozinha; ia residir no Canadá com uma família conhecida. Aconteceu, en­tão, o seguinte: Genival passou o consultório adiante; vendeu o automóvel; e, uma semana depois, partia. Eleonor foi levá-lo ao aeroporto. E, lá, antes de entrar na fila de passageiros, Geni­val baixa a voz:
— Por essa pequena vou ao crime! Ao crime!
Eleonor não fez nenhum comentário. Doeu-lhe, porém, não ter inspirado, nunca, uma paixão assim.

RETORNO

Genival abandonara esposa, filhos, profissão. Para a mulher, foi o mais lacônico possível: “Não sei quando volto, nem se vol­to”. Ela, que era uma senhora de brio, ergueu o rosto, impassí­vel, inescrutável: “Perfeitamente”. E ninguém soube, a não ser Eleonor, que ele estava no Canadá, enlouquecido de amor.
Três meses depois, na avenida, a solteirona dá com Geni­val na esquina de São José, colocando um cigarro na piteira. Aproxima-se, espantadíssima:
— Voltou?
E ele, remoçado, com uma alegria sã no olhar e no sorriso, exclama: “Olá! Como vai essa figura?”. Explicou que chegara há um mês e que recomeçara a clínica. Atônita, a solteirona in­daga: “E aquele caso?”. Riu de novo, recuperado:
— Aquilo acabou.
Em pé, na calçada, a solteirona não soube o que dizer, o que pensar. Ela, que não inspirava sentimentos nem efêmeros, nem profundos, sofria com a morte do amor alheio. Despediu-se do médico. E, subitamente, a criatura humana parecia-lhe vil. Durante algum tempo, ainda pensou no caso. E já o esquecia, quando de repente batem na porta. Vai abrir e recua, num as­sombro ainda maior: era Abigail. Antes de entrar, antes mesmo de um cumprimento, a pequena soluça:
— Vou ter neném, meu Deus!

FUGITIVA

Muda, taciturna, a solteirona ouviu toda a história. Genival surpreendera Abigail em pleno Canadá. Tudo que parecia tão difícil no Brasil tornou-se monstruosamente fácil no estrangei­ro. Ela ainda perguntou, por entre lágrimas: “Tu não me abandonarás nunca?”. Genival prometeu, num desvario: “Nunca!”. Mas a primeira tarde que passaram juntos foi também a derra­deira. Eleonor balbuciou:
— Por quê?
E Abigail, assoando-se no lencinho: “Não sei. Ele não quis mais”. E, de fato, Genival se desinteressava, num tédio súbito, irresistível e mortal. Dois dias depois, sem uma palavra, um bi­lhete, um recado, embarcava para o Brasil.
Um mês e meio depois, Abigail vai ao médico. Soube que ia ser mãe. Enquanto pôde esconder seu estado, muito bem. Mas chegou um momento em que a coisa se tornou evidente. Fora de si, fugira para o Brasil. Agarrou-se à solteirona:
— Ninguém sabe que eu voltei. Se papai descobrir, me mata!
Eleonor pousou a mão na sua cabeça:
— Ninguém saberá. E vamos fazer o seguinte: você fica aqui, e quando o guri nascer eu tomo conta.

O MENINO

Assim se fez. E é justo que se diga: Eleonor foi incompará­vel. Durante vários meses, desvelou-se ao lado da amiga mais moça. Por vezes, Abigail perdia a cabeça, sem compreender o abandono de Genival: “Por quê?”. E ela própria respondia: “Com certeza me achou sem graça, inexperiente, muito crian­ça!”. Chorava tanto que, um dia, a solteirona perdeu a paciên­cia; foi, até, grosseira:
— Ora, não amola! Você teve muita sorte! Eu, nunca — ou­viu? —, nunca tive ninguém que gostasse de mim. Nem soltei­ro, nem casado, nem viúvo — ninguém! — Pausa e continua, ofegante: — Tenho inveja de ti. E te digo mais: eu daria tudo para ter um filho, para ser mãe!
Passou. Até que, um mês após, nasce a criança. A solteirona debruçou-se para ver o garoto, como se ele fosse um menino-deus. Dizia, com um olhar de fanática: “Que vontade de apertar, de morder, meu Deus!”. Quanto a Abigail, espiava só, assustada com esse filho ilegítimo e lindo, que varava as noites, cho­rando, com dor de barriguinha. Mas, enfim, agora que tinha o corpo antigo, a cintura de menina solteira, Abigail suspirou:
— Já posso aparecer à minha família. Você vai ficando com a criança e eu passo aqui, de vez em quando.

SOLTEIRONA

A volta da pequena, que a família julgava morta e enterra­da, foi um episódio de folhetim barato. O próprio pai esqueceu-se dos seus escrúpulos severos: soluçava como uma criança. Esse carinho universal deu coragem a Abigail. Uma semana depois, num rompante, contou que dera à luz um menino. O velho foi magnífico. Com uma voz cheia, de barítono, anuncia: “Pode ser filho natural, pode ser o raio que o parta. Mas é meu neto e está acabado”. Delirante, Abigail liga para a solteirona. Pede: “Apanha um táxi e traz meu filho. Já, sim?”. Então, Eleonor pôs-se a gritar:
— Teu filho, como? É meu! Só meu!
Mãe, pai, irmãs de Abigail desfilaram pelo telefone, fazen­do apelos desesperados. Eleonor berrava: “Ninguém me põe a mão na criança!”. Justamente, estava mudando a fraldinha do bebê quando tocava o telefone. Fez a ameaça: “Se vocês quise­rem tomar o guri, sabem o que eu faço? Estrangulo meu filho na própria fraldinha. E, assim, nem meu, nem de ninguém!”. Terminou perguntando: “O filho é meu ou teu?”. Abigail, alu­cinada, vira-se para a família: “Respondo o quê?”. O velho avô apanha o telefone:
— O filho é teu! — Soluça: — Deus o abençoe!
Eleonor desliga o telefone. Encosta a fralda úmida, apanha outra, limpa.
Aquela solteirona era, na face da Terra, a mais feliz de to­das as mães.

Nenhum comentário: