sábado, 8 de agosto de 2009

MORRER COMO UM CÃO

A rigor, só teve duas namoradas na vida. A primeira foi He­lena, uma morena cheia de corpo, vistosíssíma, que chamava a atenção no meio da rua. E era tão bonita que os homens não respeitavam a presença do Amâncio. Onde quer que os dois apa­recessem era um martírio. Assoviavam de todos os lados. Amân­cio ficava branco. E Helena fazia, entredentes, o comentário:
— Mas que moleques sem educação!
O rapaz a cutucava:
— Não olha! Não dá confiança!
No fundo, Helena gostava de fazer sucesso, de inspirar assovios. Confidenciava para as amigas: — “Não sei o que é que eu tenho. O fato é que os homens ficam malucos!”. Morreria de tédio, de pena, de nostalgia, no dia em que lhe faltasse ad­miração masculina. E quem sofria com isso era o pobre Amân­cio. Tinha, na ocasião, seus dezoito anos. Mas era pequeno, fraquinho e, além disso, asmático. Com seu tórax de enfermo, de candidato à tísica, não se atrevia a uma atitude contra os fula­nos que mexiam com a pequena no meio da rua. Mas a humi­lhação doía na sua carne e na sua alma. E quando, por fim, He­lena o trocou por outro, ele teve um consolo na sua desdita: — já não seria desfeiteado por causa dela.
A segunda namorada foi Lurdinha, que levava sobre a pre­cedente uma vantagem considerável: — era uma pequena de graciosidade discreta, quase imperceptível. Era preciso olhar muito para ela, prestar bastante atenção, para descobrir b seu encanto secreto. Já Amâncio podia sair com a namorada, sem perigo de incidentes desagradáveis.


O CASAMENTO

Foi um namoro rápido. Em coisa de quinze dias, Amâncio levou a pequena para apresentar à família. Sua mãe, d. Flor, olhou Lurdinha de alto a baixo, serviu-lhe cafezinho com bis­coitos e, em suma, tratou-a com uma cordialidade controlada, mas satisfatória. Mais tarde, Amâncio perguntava:
— Que tal, mamãe?
A velha, que estava com uma costura no colo, suspirou:
— Serve.
Ele ficou com cara de tacho e meio chocado:
— A senhora não gostou?
— Mais ou menos. — E acabou acrescentando: — “Não fe­de, nem cheira”.
A grosseria da expressão doeu no rapaz. Teve um desabafo:
— A senhora é um espírito de porco, hein, minha mãe?
Já o irmão de Amâncio, o Nonô, foi, se bem que sintético, mais positivo:
— Bonitinha.
Ora, o moço levava a opinião de Nonô na maior conta. Em­bora existisse de um para o outro uma diferença de vários anos, o fato é que se queriam como gêmeos e se consultavam para tudo. Sempre que Amâncio arranjava uma pequena, já sabe: pe­dia a opinião, o conselho, o estímulo do irmão. E vice-versa. Enfim, combinavam de uma maneira impressionante e eram os melhores amigos do mundo. Depois dessa primeira visita, Amân­cio quis saber da pequena:
— Que tal meu irmão?
— Simpático.
Ele protestou, quase ofendido:
— Simpático, só? Um sujeito bonito, alinhado, parece ar­tista de cinema!
Lurdinha, espantada com a veemência, ainda brincou:
— Eu não quis ofender. Teu irmão é uma uva, pronto!
Seis meses depois, estavam casados. Por exigência de Amân­cio, Nonô, sempre que se encontrava com a cunhada, a beijava na face. Amâncio impunha:
— Faço questão que vocês sejam amicíssimos!

HOMEM BONITO

E, de fato, o que tinha Amâncio de sem graça, como ho­mem, tinha o outro de bonitão. As pequenas viviam assim em cima dele. Umas perguntavam: “Por que você não entra para o teatro? Para o cinema?”. Ele ria e fazia o comentário impatriótico:
— Não acredito em cinema brasileiro.
Quanto a casamento, não queria nem ouvir falar. Batia na madeira: “Isola!”. E, se insistissem, argumentava: “Prefiro a mu­lher dos outros!”. Mas era mentira. Fugia das mulheres casadas. E, sério, quase triste, dava em definitivo sua opinião:
— Não tiro a mulher de ninguém! Deus me livre!
Depois do casamento do irmão, com efeito, sossegara. Achavam graça: “Que negócio é este? Seu irmão casou e quem ficou sério foi você?”. Fazia blague: “Sempre fui sério!”.
Jantava todos os dias na casa da cunhada. Conversavam mui­to, ele e ela coincidiam nos gostos e opiniões. Amâncio esfre­gava as mãos, radiante: “Meu irmão e minha mulher são unha e carne!”. Essa amizade o enternecia. Ficava horas ouvindo a conversa dos dois; e, por vezes, cochilava, enquanto os dois palestravam. Às vezes era o próprio Amâncio quem telefonava do escritório:
— Olha! Hoje eu tenho serão, Ouviste? Vai lá pra casa fa­zer companhia à minha mulher.
Lá ia o Nonô. O outro chegava à meia-noite ou mais; en­contrava os dois ouvindo música, na vitrola. E foi numa dessas noites de serão que, mudando um disco, Lurdinha teve a curio­sidade súbita:
— Você nunca deu em cima de mulher casada?
— Nunca.
E ela, colocando o disco, de costas para ele:
— No duro?
— Batata!
Começaram a ouvir a música, que era um bolero, e, então, embalado pelo disco, Nonô ergueu-se, enfiou as duas mãos nos bolsos, foi até a janela; e, voltando, perguntou:
— Sabe qual é a única mulher casada que até agora me im­pressionou?
Estavam os dois face a face. Ela antecipou-se: “Não precisa dizer, eu sei”. Ficaram em silêncio algum tempo. Quando chegou a vez de mudar o disco, Lurdinha ergueu-se; de costas para ele, substituindo a agulha na vitrola, disse: — “Você não tira os olhos de mim”. — E fez a pergunta: “Não tem medo que os outros desconfiem?”. Aquela conversa foi, para eles, um tor­mento delicioso. Nonô pensava: — “É um crime o que eu es­tou fazendo”.

DESTINO

Quando o inevitável aconteceu, ambos tiveram a mesma explicação: “Foi o destino”. Que remorso havia no fundo da­quela felicidade! De vez em quando, Nonô a beijava com uma espécie de ódio: — “Você não tem cara disso!”. Ela achava gra­ça: “Disso o quê?”. Nonô ia especificar: — “Cara de adúltera” — mas o pavor à palavra o emudeceu. Suspirou: — “Nada”. E a naturalidade com que ela ia aos encontros, com que se atira­va nos seus braços, o aterrava. Tinha a exclamação:
— Mulher é um caso sério. Mas olha! Amâncio não pode saber nunca!
Foi por essa época que Amâncio, que queria um aumento de ordenado, deu para levar o patrão, o dr. Gustavo. Era um senhor, já de idade, que padecia de dois males: a esposa, que lhe amargurava a existência, e uma dispepsia, que era o inferno de suas refeições. Amâncio telefonava para a mulher: “Vou le­var o chefe. Faz uma comida gostosa!”. Outra recomendação era a seguinte: “Trate o homem bem, que eu vou entrar com o pedido de aumento”. O homem apareceu uma vez, duas, três, quatro. Por fim, estava lá todas as noites. Praticamente, o dr. Gustavo separara-se da mulher. No segundo ou terceiro jantar em casa de Amâncio, teve um desabafo irreprimível e gemeu:
— Pois eu, minha senhora, não tenho lar! É a dura realidade!
Lurdinha foi de uma habilidade exemplar; com muita do­çura e feminilidade, aproveitou o ensejo:
— Então, por que é que o senhor não vem jantar todos os dias aqui?
Ela fazia, para o patrão do marido, pratos especiais, que não tivessem muita gordura, nem temperos fortes. Vinha lá de den­tro, trazendo um prato fundo: — “Essa canjinha o senhor pode comer”. Tantas atenções o envolviam e deslumbravam. No es­critório, chamava o Amâncio: — “Seu Amâncio, você tem uma mulher que é um anjo!”. No fim de quinze dias, deu-lhe um au­mento. Prometeu-lhe outro para o fim do ano.

O CIUMENTO

Patrão e empregado eram agora íntimos. Dr. Gustavo fazia confidências ao Amâncio: — “Eu tenho um defeito, sou ciumen­to, tenho ciúmes de tudo!”. Rilhava os dentes ao dizer isso; e foi mais além: — “Te juro que, por ciúmes, sou capaz de dar tiro!”. Impressionado, o Amâncio ia para casa contar para a mu­lher: “O patrão não é sopa!”. Quem não gostava era o Nonô. Queixava-se amargo e ressentido à pequena: — “Esse patrão do teu marido é uma boa besta”. E, um dia, o Amâncio encontra, na sua mesa do escritório, um envelope. Abre e toma um choque: era uma carta anônima. Leu e releu; e guardou aquilo. Mas as palavras estavam guardadas no seu cérebro: — “Você é um idiota muito grande. Sua mulher tem dois. O Nonô e o Gusta­vo”. Dois dias depois nova carta: “Abre o olho, seu cretino!”. Vieram ainda uma terceira e quarta cartas, com endereço e ho­rário dos encontros de Lurdinha com Nonô e o patrão. Ele, bran­co e com o coração disparado, rasgava aqueles papeluchos in­fames em mil pedacinhos.
Um dia, foi espiar, de dentro de um táxi e pelo vidro, o encontro de Nonô e, no dia seguinte, viu o patrão e a pequena entrando no mesmo edifício. Ele não disse nada, nem soube o que fazer. Passou uns quinze dias com o problema na cabeça. Quando observavam sua tristeza indisfarçada, desculpava-se: “Estou indisposto”. Um dia, porém, saiu animado para o escri­tório e entrou no gabinete do patrão. Foi direto ao assunto: — “Doutor fulano, eu acho que minha mulher me engana”.
O outro pulou da cadeira: — “Mas como?”. E ele: — “Te­nho provas, doutor fulano”. Baixou a voz e concluiu: — “Com o meu próprio irmão”. O patrão estava roxo; fez a pergunta: — “Tem certeza?”. E Amâncio: — “Absoluta!”. Deu detalhes, forneceu hora e endereços. E, por fim, saturado de tanta infâ­mia, arriou numa cadeira e soluçou como um menino. Em meio do pranto, teve um repelão feroz e inofensivo: “Eu se fosse homem, se tivesse vergonha na cara, matava esse ca­chorro”. O dr. Gustavo não esboçou um gesto, não disse uma palavra.
Nessa noite, antes de dormir, Amâncio fez um comentário enigmático para a mulher: — “Eu acho que um sujeito que tira a mulher dos outros devia morrer como um cão!”.
No dia seguinte, quando Nonô vai entrando no edifício com Lurdinha pelo braço, ouve um “psiu”. Vira-se instintivamente e vê, então, a poucos metros, o dr. Gustavo. Este empunha um revólver e atira uma vez, duas, três, quatro vezes. Nonô tentou correr, escapar, mas, atingido mortalmente, foi cair adiante. Teve breve agonia, e morreu ali mesmo, de face voltada para o alto do edifício.

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