domingo, 9 de agosto de 2009

O PIRRALHO

Era uma menina muito boazinha, incapaz de fazer mal a uma mosca. E, a rigor, seu grande e talvez único defeito era o se­guinte: não gostava de crianças. Ou por outra: não tinha, como ela própria admitia, “paciência”. Dizia das crianças:
— Fazem muito barulho. São muito levadas. Me põem ner­vosa.
Mesmo os sobrinhos, que eram uns amores, a irritavam. Marita não os deixava em paz, numa marcação de enervar: “Não mexe aí. Vai embora e vê se não enche! Que coisa chata!”. É claro que as mães não gostavam nem um pouquinho; vendo os filhos enxotados. Uma não se continha:
— Você tomou assinatura com meu filho, hein!
E ela:
— Você me desculpe. Mas não posso, não está em mim!
A outra, entredentes, observava:
— Nada como um dia atrás do outro. E você há de ser mãe.
Marita não dizia nada ou enrolava uma desculpa. Mas fazia, para si mesma, a reflexão: “O espeto do casamento é esse ne­gócio de filho”.
Enfim, o tempo foi passando; e, lá um belo dia, eis que Ma­rita está se casando com Clodomir. Dois meses depois, apare­ceu com umas manifestações esquisitas, inclusive enjôos, náu­seas, vertigens. Clodomir, novato dessas situações, telefonou para um médico. Contou ao médico os sintomas, tintim por tintim.
O outro foi lacônico:
— Batata.



JOVEM MÃE

O filho nasceu. Marita ainda não tinha um ano de casada. Dir-se-ia que apanhara gravidez sob protesto. Vivia praguejando:
— Estou pagando todos os meus pecados!
No dia do nascimento, comportou-se muito mal; foi grosseiríssima com a parteira; interrompia os gemidos para esbra­vejar:
— Vai amolar o boi!
E culminou quando, em certa altura dos acontecimentos, meteu o pé em plena boca da santa senhora. Uma calamidade autêntica. Mas, enfim, bem ou mal, nasceu a criança, aliás, um menino. Ao mesmo tempo que davam no guri o primeiro ba­nho, Marita, exausta, ainda teve ânimo para dizer:
— Nunca mais! Nunca mais!

A INSATISFEITA

A parteira estava com o lábio inchado e um dente amoleci­do. Mas a sua experiência profissional era variada e a forrava de paciência e misericórdia. Disse que “doente sempre tem ra­zão” etc. etc. Quinze dias depois, Marita já gritava com o filho, fazia verdadeiros escândalos:
— Mas olha só que criança porca!
E impingia a fralda substituída ao marido:
— Toma! Toma! Leva isso daqui, depressa!
Cheirava as próprias mãos, ia lavá-las com sabonete e, não contente, recorria à água-de-colônia. O marido, amargurado com esses exageros, ponderava:
— Afinal de contas, é teu filho, nosso filho!
E ela, espalhafatosa:
— Por acaso a fralda do nosso filho não cheira mal, hein? Que calma!

RELAXADA

Durante dois anos, não puderam ter babá por um motivo muito simples: as finanças do casal não andavam boas. Enquan­to não vinha a ama, era o próprio pai quem mudava as fraldinhas do guri. Marita continuava com a mesma intolerância ou pior; e, conforme o caso, fechava as narinas entre dois dedos, numa exclamação:
— Que horror!
Nem sempre, porém, o pai estava em casa e Marita, quises­se ou não quisesse, era obrigada a substituí-lo naquelas funções. Tiro e queda: perdia logo o apetite. Já várias pessoas observa­vam, à boca pequena, que “aquilo já passava dos limites”, “não era, não podia ser normal”. E a alergia de Marita foi tão intensa que, por fim, sem querer, sem sentir, ela foi relaxando. Passa­va, às vezes, horas sem mudar a roupa do menino. O marido chegava, ia direto ao berço e o seu primeiro cuidado era exa­minar a fralda. A exclamação explicava:
— Molhada!
E reclamava que Marita precisava tomar cuidado, o filho poderia se resfriar etc. etc. etc.
E ela:
— Tem dó, que diabo!

INFÂNCIA TRISTE

Então aquele menino foi crescendo, sem nenhum carinho e com assistência apenas paterna. De Marita tinha apenas ralhos, puxões de orelha, blasfêmias, chineladas. Qualquer arte que ele fizesse, já sabe, a mãe trovejava: “Não sei por que esse diabo nasceu!”. Batia, sem dó, numa fúria de alucinada.
— Peste do inferno! Excomungado! Olha que eu te arre­bento!
A vizinha, diante dessa dissipação de crueldade, fazia seus comentários: “Peste é ela!”. Tratado em casa a pontapés, o me­nino, que se chamava Helinho, era um triste, um doente. Quan­do, aos quatro anos, teve coqueluche, Marita se enfurecia até com os acessos de tosse que o deixavam roxinho. Saltava:
— Pára com essa tosse!
O marido, que adorava o pequeno, explodia por sua vez:
— Sua desalmada! Mãe sem consciência! Olha que Deus te castiga!
E ela:
— Imagine! Rogando praga em mim! Tudo por causa des­sa pestinha!
Depois que o ambiente serenava, o pai atormentado cha­mava o filho, punha-o no colo, apertava sua cabeça de encon­tro ao seu peito, e só faltava pedir perdão de tê-lo posto no mundo. A coisa se tornou tão grave que as mães da rua acabaram fazendo um espécie de greve. E diziam para os filhos:
— Olha aqui: não te quero na casa do Helinho! Não me põe os pés lá!

A MUDANÇA

E, de repente, sem nenhuma explicação possível, Marita co­meçou a fazer uma escandalosa exceção para uma criança dos seus oito anos que, por sinal, morava no princípio da rua. Era um me­nino espertíssimo, chamado Simão, e moleque como ele só.
A primeira vez em que foi vista fazendo festas no garoto, rindo com ele, conversando, houve o natural espanto. Houve até um comentário, não sei de quem:
— Hoje vai chover, na certa.
— Por quê?
— Dona Marita tratando bem uma criança, imagine!
De admirar, com efeito. E começou o escândalo: ela não podia ver o Simão que não o chamasse, que não lhe fizesse fes­tas, que não lhe oferecesse doces. Era curioso ver a adulta em longas conversas com o pirralho, como numa equiparação ab­surda. Se o filho estava perto e queria entrar na conversa, a mãe o escorraçava:
— Vai-te embora, some!
Helinho obedecia, para não levar uns tapas. Marita, cada vez mais entretida com Simão, queria saber de sua vida, se es­tudava, se fazia muita arte. O pirralho falava da própria mãe, que morrera há anos. Marita, numa curiosidade minuciosa e ar­dente, pedia detalhes: se ele fora ao enterro, se visitava o túmu­lo materno, se tinha saudades da morta. Um dia, não se conte­ve e fez a pergunta:
— Queres me fazer um favor?
— Faço, sim, senhora.
Ela baixou a voz:
— É o seguinte: eu queria que tu me chamasses de mamãe. Chama, não chama? Olha que eu podia ser tua mãe. Está bem?

D. MARITA

E Marita fez mais: de vez em quando, depois do almoço, apanhava Simão, embonecava-se toda e ia à matinê dos cinemas do bairro. E, sobretudo, não perdia uma fita de Tarzã. Na­da mais natural ou obrigatório que levasse o próprio filho. Mas não. Dizia para Helinho:
— Eu não te levo porque você tem feito malcriação. Pensa que eu me esqueço?
E não levava nunca, alegando a malcriação imaginária. No dia seguinte, ela ainda discutia com o Simão as situações da fi­ta: “Viste o bofetão que o bandido levou? Eu gostei!”. O mari­do, quando viu aquele agarramento com o pirralho dos outros, fez espanto:
— O que é que há contigo? Alguma coisa há!
Ela foi ríspida:
— Não me aborrece, não me amola!
O marido, amargo, concluía:
— Certas mulheres não deviam ter filhos.

O MOTIVO

Certo dia, aconteceu o pior: Simão e Helinho se engalfinha­ram no meio da rua. Marita, que apareceu na janela e viu a briga trivial dos dois meninos quase da mesma idade, veio de casa como uma fera. Em plena rua, deu uma surra tremenda no fi­lho. Vizinhos intervieram, levaram a criança. Alguém rosnou que aquilo era “caso de polícia”. E Marita, atracada a Simão, aperta­va-o de encontro ao seio, beijava-o num delírio de ternura.
Depois, Helinho veio para casa, cheio de equimoses. Mari­ta prometeu à vizinhança que daria mais no filho naquele dia; e suspirou: “Que vida a minha!”. A criança refugiara-se no quar­to, à espera do pai. Este chegou tarde; vinha triste e cansado. Então, Helinho, beijando Clodomir, teve um lampejo de ódio nos olhos azuis. E disse ao ouvido do pai:
— Mamãe vai ao cinema com o pai do Simão! Anda com o pai do Simão de automóvel!
E o Clodomir, que era fraco e tinha paixão pela mulher, ficou muito pálido, o lábio trêmulo, e começou a chorar. Quan­do, pouco depois, irritada com a demora, Marita apareceu na porta, o pirralho e o adulto uniam suas lágrimas.
Vendo a mulher, Clodomir passou as costas da mão nos olhos:
— Já vou, meu anjo.

Nenhum comentário: