terça-feira, 11 de agosto de 2009

UM MISERÁVEL

Apanhou uma gripe danada. Contorcia-se nos acessos de tosse. E ela própria chamava o marido:
— Vem cá, Belmiro, vem cá.
Ele largava o jornal e vinha. A mulher pedia:
— Escuta só.
E, de fato, os brônquios de Zuleica só faltavam assoviar. Ela própria, no fim de cada crise, gemia:
— Acho que apanhei algum golpe de ar.
E Belmiro:
— Vou te levar ao médico.
— Médico pra quê, homem de Deus? Sossega!
Tinha pavor de médicos, acusava-os de exploradores e di­zia a todo mundo: “O meu dinheiro é que eles não levam!”. Argumentava, fazia contas. Belmiro ganhava pouco, uma misé­ria; e o dinheiro que ela fazia com a costura não dava para na­da. Discutia com o marido e era irredutível:
— Imagine se a gente for gastar dinheiro com médico e remédio.
Mas a gripe não a largava. Estava com febre há uma porção de dias, a respiração curta e suores frios noturnos. O pior de tudo, porém, era a tosse, que estalava os pulmões e a asfixiava. Parecia até coqueluche. Tentou um xarope, que lhe recomen­daram. Não sentiu, porém, melhora nenhuma. De noite, acor­dava e sentava-se na cama para tossir. No seu desespero, chorava:
— Eu morro, meu Deus do céu! Morro!



O PULMÃO

Houve quem sugerisse:
— Por que a senhora não tira uma radiografia?
— E o dinheiro, criatura?
— Tire daquelas pequenininhas!
Zuleica era teimosa, sempre fora teimosa. Preferia morrer a entregar os pontos. Mas uma noite, depois de um acesso fe­roz, sentiu gosto de sangue na boca. Numa desconfiança, acen­deu a luz, passou a língua no lençol e viu a saliva rósea no pa­no. Ela, que fingia não dar importância à doença, tachando-a de “resfriado bobo”, tomou-se de um medo súbito e selvagem. Lembrou-se de sua tia, irmã de sua mãe, que morrera doente do peito em Campos do Jordão. Sacudiu o marido, que dormia ao lado, aos gritos de:
— Sangue! Sangue!
Não dormiu mais, com a idéia fixa de tuberculose. E o gos­to de sangue continuava. Já estava de lenço na cama. Qualquer coisinha, acendia a luz, e encostava a língua no lenço para ver a mancha cor-de-rosa. No dia seguinte, pela manhã, decidiu:
— Vamos ao doutor Borborema, agora mesmo.
O marido ainda fez a objeção:
— O doutor Borborema?! Aquele boboca? Mas ele é um er­rado, minha filha!
— Outro, não! Quero o doutor Borborema!
Belmiro, enfiando-se nos lençóis, fez o comentário:
— Amarra-se o burro à vontade do dono!
Ora, o dr. Borborema era um velhinho bastante gagá e de eficiência ultraproblemática. Não curava ninguém, o diabo do homem; e, sem dúvida, a sua maior virtude consistia nas ca­ronas, o abatimento que conseguiam os clientes menos favore­cidos. Dava consultas num consultório onde a imundície cam­peava íngreme; dizia-se até que foram encontrados, lá, não sei se escorpiões ou lacraias. No caminho, Belmiro, resmungando:
— Um zebu, esse doutor Borborema!
E ela, pirracenta:
— Deixa, não faz mal!
Dentro do consultório miserável, o velhinho forrou as cos­tas de Zuleica com uma toalha e fez ausculta. Como um médico do tempo de Dom João Charuto, com o ouvido nas costas da doente, comandou:
— Diga trinta e três.
E ela:
— Trinta e três.
— Agora tussa.
Tossiu várias vezes. E a tosse provocada acabou se tornan­do involuntária e irresistível; contorcia-se, esteve em risco de se asfixiar. Na parede estava emoldurado o seguinte dístico: “Enquanto no doente há vida, há esperança”. Belmiro, impressio­nado, perguntou:
— Então, doutor?
O velhinho já estava redigindo a receita, com a sua caneta-tinteiro. Sem deixar de escrever, deu sua opinião:
— Isso passa! Isso passa!
Belmiro, com a pulga atrás da orelha, insistiu:
— Nada no pulmão?
— Nada.
E o rapaz:
— O senhor me tirou um peso, doutor.
O médico ainda veio levá-los até a porta. Além de não co­brar nada, ou cobrar pouco, era gentil, educadíssimo.
Com uma dentadura dupla, móvel, ele a deslocava conti­nuamente, a título de distração e vício.

A TRAGÉDIA

Zuleica voltou pior. E agora era ela quem, numa reviravol­ta inexplicável, malhava o dr. Borborema:
— Um burro! Não entende nada!
— Não foi você quem escolheu, ora essa?
E a moça, cravando as unhas no braço do marido:
— Eu vou morrer, Belmiro! Vou morrer!
— Oh, deixa de bobagem! Morrer coisa nenhuma! Parece criança!
Mas ela se entregava de corpo e alma à idéia fixa. E isso era mais que um presságio, era uma convicção, uma certeza inape­lável. Sentou-se na cadeira de balanço na sala, e lá ficou horas a fio, numa meditação sem fim.
Quando o marido falou em aviar a receita, opôs-se:
— Não quero!
— Não queres por quê? Tem cada uma!
Baixou a voz numa obsessão:
— Porque é jogar dinheiro fora. Porque eu sei que vou morrer...
Belmiro ainda ligou para uma novela, que ambos ouviam. Ela, na sua tristeza de condenada, pensou que não poderia se­guir as novelas, que escutava em horas diferentes. Nessa noite, não conseguiu dormir. Primeiro, por causa da tosse amaldiçoa­da; depois, porque queria pensar muito nesse mundo, que em breve ia deixar. E, na vigília, imaginou várias coisas, inclusive o próprio enterro. Queria que fosse muito bonito, de maneira a impressionar a rua inteira, sobretudo uma vizinha com quem se indispusera. Pena que os enterros modernos não fossem co­mo os antigos, em que os carros fúnebres eram puxados por cavalos brancos empenachados. Súbito, ocorreu-lhe o proble­ma: — e o dinheiro? Onde, como e quando Belmiro poderia conseguir o dinheiro para o enterro de luxo? Até o sol raiar, ela não pensou senão nos meios de que ele poderia lançar mão para os funerais. Queria que eles fossem espetaculares o bastan­te para humilhar a tal vizinha. E tanto pensou que, descobrindo uma solução, acordou Belmiro. Ele, com um sono danado, virou-se, agressivo, malcriado. Mas quando a ouviu falar em morte, con­trolou-se. Então, doce, persuasiva, Zuleica disse-lhe que queria um enterro bonito. Mas como sabia que ele não tinha dinheiro, ela sugeria que recorresse a Humberto. O marido pulou da cama:
— Mas eu nem conheço esse cara! Um sujeito metido a bes­ta, só porque tem dinheiro!
E ela:
— Quando ele souber que é para mim, que é para meu en­terro, te dá, Belmiro, paga tudo! Te juro pela minha salvação!
Só então Belmiro teve a suspeita:
— Mas vem cá! Dá dinheiro por quê? Hein? Por quê? O que que esse palhaço é teu?
Não sei se Zuleica diria ou não. Mas quando ia abrir a boca teve uma violentíssima hemoptise. Diante do sangue, que vi­nha em golfadas medonhas, dissolveram-se os ciúmes de Bel­miro. Ele gritou; acudiram os vizinhos. Deram injeção, cálcio, puseram saco de gelo, mas quem disse que o sangue estancava? Nas hemoptises sucessivas, Zuleica só pensava na vizinha anti­pática e, mais do que nunca, desejou deslumbrá-la com um gran­de enterro. Olhava para o marido como se dissesse: “Quero um enterro de luxo!”. Se pudesse falar teria ampliado seu pedido para uma missa de sétimo dia, com violino, canto e não sei quan­tos coroinhas. Acabou não resistindo; fez um esforço supremo e sussurrou:
— Um enterro... bonito... missa, missa e...
Já suas unhas estavam roxas, e esse esforço a matou mais depressa. Diante da morte, Belmiro caiu numa crise violentís­sima e teve que ser arrastado à força do quarto. Meia hora depois, na sala, enquanto cá no quarto se vestia a morta, ele pensava em Humberto. Era evidente que... Um vizinho interrompeu o curso de suas reflexões oferecendo-se para tratar do enterro. Sobressaltou-se:
— Obrigado, fulano. Mas eu mesmo trato disso.

OS FUNERAIS

Foi bem estranho o que aconteceu. Humberto, que Belmi­ro mal conhecia de vista, recebeu-o com certo espanto e, pelo que o outro pôde deduzir, com certo pânico. Ao receber, po­rém, a notícia da morte da Zuleica, teve, ali mesmo, na frente do marido espantado, quase que uma crise de loucura. E dizia com eloqüência justamente:
— Coitadinha! Coitadinha!
Ainda chorava quando soube dos últimos desejos da mor­ta: o enterro caro e a missa.
Declarou que fazia questão de arcar com todas as despe­sas. Belmiro, com o máximo de discrição, disse:
— Vou saber quanto é, e volto já.
Na Santa Casa, a seu pedido, deram o orçamento de dois enterros: o mais caro e o mais barato. O primeiro fazia um total de quinze contos. Belmiro encomendou o mais barato, com grande espanto do agente funerário. Voltou ao escritório de Humberto, de quem recebeu os quinze contos e mais três para a compra de uma coroa monumental. No dia seguinte pela ma­nhã saía, da casa de Belmiro, o coche fúnebre, quase de indi­gente. A vizinha, que não se dava com Zuleica, estava na janela quando passou o enterro. Na volta do cemitério, o viúvo já pen­sava na missa. Felizmente, Humberto não aparecera, por natu­rais escrúpulos. E, assim, Belmiro pôde procurá-lo, dias após, no escritório. Trouxe dinheiro para uma missa com três padres, cinco coroinhas, canto, violino etc. etc.

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