segunda-feira, 10 de agosto de 2009

TRAÍDO POR SER BOM

Pondo os suspensórios, pergunta:
— Como vai a besta do teu marido?
Vilma boceja:
— Navegando.
Edgard começa a dar o nó na gravata. Pensa naquele ho­mem que era traído regularmente, três vezes por semana. Quer saber:
— E ele não desconfia de nada? Tens certeza?
— Absoluta.
Finalmente, já de paletó, Edgard resume sua opinião:
— Esse negócio de adultério não depende da mulher, e sim do homem, da vocação do homem. O sujeito já nasce “marido enganado”.
E Vilma:
— Um chato.

O MARIDO

Só quando ela passou pela Central é que viu as horas: — dez da noite. Tomou um susto. Estava casada com um homem que, segundo a opinião de todo mundo, tinha o defeito de ser bom demais. E, com efeito, ninguém mais doce, mais paciente, mais terno, do que Aristóteles Passarinho. Não se lhe conhecia, em toda a existência, uma vaga e inofensiva irritação. Quem bri­gava, naquela casa, era Vilma; Passarinho, nunca. Nem com a esposa, nem com ninguém. A pequena vinha de uma família de nervosos. O pai acabara no hospício e ela mesma levava, no mais íntimo de si mesma, o medo, o pressentimento da loucura. Conhecera Edgard numa fila de ônibus e fora o que se pode cha­mar de uma conquista fácil. Logo da primeira vez, o rapaz quis saber por que ela traía o marido. Vilma vacilou. Eis a verdade: — não havia motivo nenhum, respondeu, vaga:
— É de uma bondade que dá nojo.
Há dois anos que durava aquele romance secreto. Naquela noite, Vilma perdera a noção do tempo. Entrou em casa às dez e trinta e cinco. Embora desprezasse o marido, achou que era demais. E, pela primeira vez, criou a hipótese: — “Será que ele vai dar a bronca?”. Mas foi encontrá-lo como sempre, com a mesma cordialidade mansa, o mesmo olhar amável, o mesmo sorriso bom. Levantou-se ao vê-la:
— Tudo ok?
Vilma percebeu que se assustara à toa. Teve para si mesma o comentário irritado: — “Boba!”. E quando ele inclinou-se para beijá-la, ela fugiu com o rosto. Surpreso, Aristóteles balbuciou, sem entender a repulsa:
— Que é isso, meu bem? — Ela explodiu:
— Fui eu que cheguei e sou eu que devo beijar, se quiser, e não você.
O outro riu, vermelho:
— Está certo, meu anjo, está certo.
Assim escorraçado, foi ler a página de esporte da última edição.

DESESPERO

Talvez faltasse um pouco de medo ao romance proibi­do. Aquele adultério sem sobressaltos, sem correrias, sem in­cidentes, pouco diferia da rotina matrimonial. Vilma fez pa­ra si mesma o raciocínio: — “Não tenho amante. Tenho dois maridos”. O pior de tudo, porém, era a personalidade de Aristóteles. Seria real aquela cegueira ou simulada? E, um dia, em que ela o destratou, ele respondeu com tanta doçura que ela, nervosíssima, perdeu a cabeça de vez:
— Por que é que você não grita comigo?
E ele:
— Meu anjo, não se deve gritar com ninguém!
Cresceu para o marido:
— Não se deve gritar, uma ova! Por que não, ora pipo­cas? Já sei o que você quer: — quer me humilhar com a sua bondade! Você vive esfregando na minha cara a sua superiori­dade. Mas fique sabendo: — estou até aqui, percebeste? Até aqui!
Aristóteles, ao seu lado, consternado, não sabia o que di­zer, o que fazer. Viu a mulher atirar-se em cima de uma cadeira, aos soluços. Ele próprio já tinha vontade de chorar. Para não irritá-la mais, porém, calou-se. Vilma continuava, por entre lágrimas:
— Eu preferia que você me batesse! Mil vezes a pancada!
O pobre-diabo abriu os braços:
— Quem sou eu para te bater?

O DRAMA

No dia seguinte, uns dez minutos depois do marido ter saído, bate o telefone. Ela se precipita: — era o Edgard. Queria saber como a pequena chegara e se o marido fizera al­gum comentário. Vilma abriu o coração:
— Já não agüento! Não suporto mais!
O amante admirou-se:
— Ele te fez alguma coisa?
Explica:
— Não me fez nada. Mas eu é que não suporto. O que não me entra é a mania da bondade. Se fosse como os ou­tros, como todo mundo! Mas quer ser melhor, compreendeu?
Edgard pondera:
— Se quer ser bom, ótimo. Imagina se ele fosse de dar pancadas ou tiros? Afinal de contas, a que horas tu chegaste ontem? Dez e lá vai fumaça. Pois é, meu anjo: não é todo mundo que suporta esses desacatos. Foi ou não foi um desa­cato? Foi, lá isso foi!
Esse raciocínio devia impressioná-la. Ela, porém, reagia sempre:
— Te digo, com pureza d’alma: — eu preferia um mari­do brabo a esse mosca-morta. — E, chorando, continua: — “Isso não é homem! Não é nada!”.
Conversaram ainda, no telefone, algum tempo. Edgard aconselhou-lhe calma, acima de tudo. A verdade é que ele dava graças a Deus de que o enganado fosse terno e assim inofensivo. Exagerou mesmo: — “É, tem nome de passarinho e alma de cambaxirra!”. Antes de se despedir, Vilma disse:
— Qualquer dia apareço em casa às três horas da manhã. E quero ver se ele vai topar. Só quero ver!

O DESAFIO

No primeiro dia em que foi ao apartamento com o Edgard, começou: — “Queres saber de uma coisa? Vou me se­parar!”. Ele toma um susto: — “Por quê, carambolas?”. Vil­ma apanha um cigarro:
— O sujeitinho me encheu! Basta!
Então, por uma boa e farta meia hora, Edgard tratou de doutriná-la. Que não fizesse isso, que não valia a pena, que era melhor deixar como estava. Argumentou: — “Não inco­moda. É inofensivo”. Tanto falou que, afinal, ela suspira: — “Vá lá, vá lá!”. Em seguida, agarra-se ao amante:
— Mas, então, só te largo às duas horas da manhã. Ser­ve? Serve?
Recua:
— Por quê?
Diz:
— É uma experiência. Quero ver se a bondade dele é de araque ou batata. Se ele não disser nada, então eu não entendo bolacha de coisa nenhuma!
Assim combinaram e assim fizeram, embora o protesto vago de Edgard: — “Vocês, mulheres, são de amargar!”. Às duas da manhã, o rapaz a levou num táxi e soprou-lhe, por despedida: — “Cuidado! Qualquer coisa, põe a boca no mun­do e corre!”. Ela chegou em casa às duas e meia. Estava lá o marido, em pijama, fumando. Trêmula, ansiosa, ela o en­carou. Era impossível que, desta vez, ele não a interpelasse. Aristóteles, porém, limitou-se à pergunta:
— Já jantaste?
Ela enfureceu-se:
— Será possível que eu chego às duas da manhã e que você não diga nada? Não tem vergonha, não tem nada? Pelo amor de Deus, responde: — não queres saber onde eu esti­ve e com quem estive?
E ele, sem desfitá-la: — “Eu acredito em ti”. Agarrou-o pe­los dois braços:
— E se eu te disser que estive com um amante? E se eu te disser que tenho um amante?
Há uma pausa. Custa a responder: — “Se tens um amante é porque eu não soube amar, nem soube ser amado”. Vilma trin­ca os dentes:
— Basta! Basta!

O FIM

Não dormiu aquele resto de noite. Com os olhos aber­tos, no escuro do quarto, repetia para si mesma: — “Odeio essa bondade!”. Pela manhã, deixa o marido dormindo, levanta-se, apanha um lápis e sai escrevendo pelas paredes: — “Morro, porque o meu marido é bom demais!”.
Em seguida apanhou o fio do ferro elétrico, fez um laço e enforcou-se no fundo do corredor.

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