quinta-feira, 6 de agosto de 2009

VENENO

Ele a esperava, no corredor. Baixou a voz:
— Preciso bater um papinho contigo.
— Quando?
— Logo mais.
— E onde?
— No jardim.
— ok.
Mas ouviram passos na escada. Marina pediu, num so­pro de voz: “Cuidado com minha filha! Cuidado com mi­nha filha!”. Fugiu ao longo do corredor, abriu a porta do quarto e entrou, trancando-se. Veio sentar-se diante do es­pelho; disse para si mesma: “Estou maluca! Completamente maluca!”. E uma coisa, sobretudo, a aterrava: que sua filha Terezinha, de treze anos, descobrisse e desconfiasse. O fato é que, depois de catorze anos de felicidade matrimonial, ela experimentava um primeiro flerte, olhava para um homem que não era seu marido. Uma amiga desquitada, que estava no mesmo hotel, ponderava: — “Isso não é nada do outro mundo”. E sugeria: — “Aproveita, aproveita!”. Esse conselho claro ou mesmo cínico foi de uma grande e pungente doçura para Marina. Ainda assim perguntou, com uma ex­pressão de tormento nos olhos e na boca:
— E minha filha?

AS DUAS

Estavam naquele hotel de montanha há quinze dias, ela, o marido (Godofredo) e a filha única (Terezinha). O marido descera naquela tarde para a cidade, para atender a um chamado urgente. Terezinha, que adorava o pai, levara-o até o ônibus. Ao despedir-se, depois de beijar e ser beijada, a menina prome­tera, fixando no pai os olhos serenos:
— Eu tomo conta de mamãe.
Godofredo achou graça. Homem sem imaginação e sem ciú­mes, não pedira essa vigilância. Pois bem. Partiu o ônibus e as duas ficaram sozinhas. E, para Marina, a pior forma de solidão era a companhia da filha. Ao longo dos anos, não conseguira conquistar a menina. Não havia entre elas nenhuma confiança, nenhum abandono, nenhum carinho possível. Desesperada, Ma­rina perguntava a si mesma: “Mas o que foi que eu fiz a essa menina? Que foi?”.
De fato não fizera nada, absolutamente nada. Mas a verda­de é que existia, de uma para a outra, uma sutil, uma secreta hostilidade. Um dia, no confessionário, teve que admitir: “Eu não sou a mãe que devia ser”. Fez um esforço para acrescentar: — “Não gosto de minha filha”. Desejaria ser como as outras mães, mas qualquer tentativa que fazia no sentido de acariciar a menina a amargurava. Essa falta de amor era tão ilógica que, na sua meditação, agarrava-se à explicação espírita: “Quem sa­be se em encarnações anteriores...”. Agora estavam as duas so­zinhas num hotel, fechadas, cada qual no seu mundo de solidão.

O FLERTE

Depois que a família chegara ao hotel, começara o primei­ro flerte pós-matrimonial. Para si mesma e para a amiga desquitada, ela fazia questão de sublinhar: “O primeiro, o primeiro!”. Chamava-se Gustavo e estava à porta quando a família desem­barcou. Ela o achou talvez bonito demais para um homem. Mais tarde, já no quarto, abrindo as malas, guardando as roupas na gaveta, pensava naquele rosto que mal percebera nos atropelos da chegada. O pior não foi a impressão muito intensa, mas a certeza imediata de que se apaixonaria por ele. Na mesa, pare­cia distraída, ausente ou nervosa. De repente, porém, tomou um susto. Percebeu que a filha não a desfitava, como se lesse com apavorante vidência os seus pensamentos mais secretos. Dissimulou, tanto quanto possível. Riu alto a pretexto de nada. Mas sentiu no próprio riso um som falso. Pouco depois, a ami­ga desquitada vinha dizer-lhe: “Viste que pedaço de homem?”. Disfarçou: “Sim”. Foi ainda essa amiga quem, dias após dias, exasperou sua imaginação. Começou por dizer: “Está te olhan­do. Olha também, sua boba!”. Foi assim que começou aquele flerte. O primeiríssimo. O marido não via, não observava nada. Marina, porém, tinha medo da filha, muito sensível, sagaz e aten­ta. Se não fosse a cumplicidade e o estímulo da amiga, teria tal­vez desistido. Mas a outra a cercava por todos os lados:
— Flerte não tem importância. É uma coisa à toa.
Marina reagia:
— Mas eu sou casada!
— Ora, fulana! Você pensa que então a mulher casada é um paralelepípedo? Tinha graça!
Apenas balbuciou a pergunta:
— E minha filha? Muxoxo da amiga:
— Manda tua filha lamber sabão!

O BEIJO

Era realmente flerte, apenas flerte, nada mais, na sua forma inócua e clássica, ou seja, à distância. Limitavam-se a olhares que, entretanto, eram de uma delícia mortal. Jamais haviam tro­cado uma palavra, um aperto de mão, uma carícia. A desquita­da, que estava no caso esportivamente, sem nenhum interesse, já resmungava: “Vocês estão bobeando! Ah, se fosse comigo!”. Marina sofria, a verdade é que sofria. Até então, julgara-se feliz e, de repente, descobre que sua felicidade não existia, nunca existira. Tinha agora abstrações, melancolia; um perfume a fa­zia chorar ou desfalecer. Acabou admitindo para a desquitada:
— Amo este homem. — E repetiu numa espécie de angús­tia: — Amo.
A desquitada a instigou:
— Mergulha de cara! Mergulha de cara!
E, uma noite, pouco antes do jantar, aconteceu uma fatali­dade deliciosa e terrível. Cruzou, no corredor, com o bem-amado. Tudo aconteceu de uma maneira irresistível. Sem uma palavra, Gustavo se apoderou de sua mão e a beijou, longamente. Foi um minuto ou muito menos. Mas ela saiu dali numa embriaguez completa. E o que tornava sua delícia mais aguda era o sen­timento do pecado. Correu à amiga, pois sentia necessidade ime­diata de uma confidência. Contou que o Gustavo a beijara na mão... Fulana exclamou: “Na mão?”.
Confiou, convulsa: “Pois é”. Fez a outra pôr a mão no seu peito para sentir as palpitações furiosas. Mas a desquitada pare­cia insatisfeita: “Vocês são dois moscas-mortas. Ora veja!”. Pa­ra Marina, porém, o episódio se revestia de um significado ter­rível. Pela primeira vez, o caso saía da espiritualidade pura e se materializava. Foi nessa noite que o marido recebeu o chama­do. A desquitada esfregou as mãos:
— Está pra ti! Ou é agora ou nunca!

O FATO

O marido partiu. E, à noite, no corredor, Gustavo pedira: “Um papinho”. No jardim, Marina teve de esperar que a filha, que dormia com uma coleguinha, se recolhesse. Até o último momento teve um pavor: “Será que ela vai cismar de dormir comigo?”-. Felizmente, a menina, sem desconfiar, foi com a co­lega para o quarto. Então Marina deslizou como uma crimino­sa, com o coração aos pinotes e uma sensação de crime. Parecia-lhe, então, que jamais tivera qualquer amor, qualquer carinho, qualquer afinidade com o marido; pensava nele como o último dos estranhos. Ficou no jardim com o Gustavo uma meia hora. Desde o primeiro instante, sentiu-se frágil, indefesa, derrotada. Lembrava-se que o marido voltaria no dia seguinte e que só lhe restava uma noite livre. Essa urgência do pecado era fascinadora. Por outro lado, Gustavo foi altivo, ousado, quase brutal. E a deslumbrava com um argumento de cinismo absoluto: — “Uma vez só. Uma vez não são todas”. Ela evitava, embora sa­bendo que se abandonaria. Na verdade, resistia à idéia de capi­tular sem luta, sem conquista, sem namoro. E mal ia escutando:
— Deixa a porta encostada, apenas encostada... À meia-noite, eu vou lá e... Sim?
Respondeu, num sopro:
— Sim.
Voltou correndo. Mas o deslumbramento inicial se extin­guira. O que havia no mais íntimo de si mesma era uma angús­tia intolerável, a vontade de fugir e, ao mesmo tempo, um ressentimento contra o marido que não se fizera amar. Pensava tam­bém na filha: “Imagina se ela sabe ou imagina!”. De repente, aparece a desquitada e, ao saber que está tudo combinado, pis­ca o olho: “Felicidades!”. E sai.
À meia-noite em ponto, Gustavo empurra a porta encostada.

O REMÉDIO

Marina acordou tarde. Toda sua angústia desaparecera: es­tava de novo feliz e com a sensação de que só agora começava a viver. Levantou-se, pôs as chinelinhas róseas e, na camisola muito leve, que era quase a nudez, correu ao espelho como se quisesse ver a própria imagem depois do pecado. E, pelo espe­lho, viu quando Terezinha entrava. Trazia um copo com um lí­quido qualquer. Marina virou-se, mas a simples presença da fi­lha feriu de morte todo o seu encanto de viver. Estavam as duas, no meio do quarto, face a face. Até aquele momento, havia entre mãe e filha uma polidez que era o disfarce de um sentimento mais turvo, mais profundo e mais envenenado. E, pela primeira vez, ambas viam o rosto verdadeiro da outra. Naquele instante, ocorreu novamente a Marina a explicação espírita de que na outra encarnação... Então, com o rosto erguido, quase sem mo­ver os lábios, Terezinha foi dizendo:
— Eu me escondi detrás do guarda-roupa... Fiquei lá a noi­te toda...
E repetiu, trincando nos dentes as palavras:
— Detrás do guarda-vestidos...

O DILEMA

Marina sentiu que a mentira seria inútil. Teve um brusco pavor daquela filha. Foi fraca, pusilânime. Indefesa, perguntou:
— Que queres que eu faça?
A resposta veio sumária, quase doce: “Bebe isso”. Não com­preendeu imediatamente. Apanhou o copo; ergueu-o contra a luz. Tornou a perguntar: “Mas isso é o quê?”. E a outra, com os lábios negros:
— Veneno.
Recuou, aterrada, sem coragem de atirar longe aquele co­po, de parti-lo em mil estilhaços. Sentiu-se agarrada. Terezinha dizia-lhe: “Então, bebo eu. Ou tu ou eu. Uma de nós tem de beber”. Marina olhou com assombro o líquido claro, enquanto a filha repetia:
— Ou tu ou eu.
Marina fechou os olhos, foi bebendo, até o fim. Largou en­tão o copo, que se estilhaçou no chão.

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