No automóvel, a caminho da cidade, o Dr. Arnaldo tem uma inspiração súbita: — “O Vasconcelos!” Era, de longa data, seu companheiro de escritório. Já iluminado, êle pensa: — “Onde é que eu estava com a cabeça que não me lembrei do Vasconcelos?” O homem era o que se pode chamar um “irresponsável sexual”. Casado, apinhado de filhos, tinha namoradas e amantes por tôda a parte; seu desejo não escolhia, não selecionava, e êle próprio, na sua voracidade universal, era o primeiro a confessar: — “Tudo que cai na rede é peixe!” (Ninguém entendia que o Dr. Arnaldo, com sua integridade quase mórbida, pudesse admitir um sujeito assim inescrupuloso e assim bandalho). Mas o fato é que o Vasconcelos tinha uma imensa e abominável experiência. Dr. Arnaldo salta na cidade com a esperança de que o outro pudesse dar-lhe um conselho decisivo. Por sorte, o Vasconcelos já chegara e examinava as folhas de um processo. Há o “bom dia normal” de parte a parte. Dr. Arnaldo engendra uma história que, entre parênteses, era mediocremente engenhosa: — “Direi que se trata de uma afilhada, mocinha menor, e que deu um mal passo”. Chamou o Vasconcelos e começa:
— Senta aí. Vamos conversar.
Vasconcelos puxa a cadeira. Era um senhor, já, barrigudo, bexigoso e diabético. “O que é que as mulheres vêem nêle?” Eis o espanto do Dr. Arnaldo. Tosse ligeiramente e vai falando:
— Talvez você me possa tirar de uma dificuldade. É o seguinte.
O outro, que era realmente prestimoso, já promete: — “O que estiver no meu alcance, já sabe”. Dr. Arnaldo ergue-se, com sua bengala fatal. Andando de um lado para outro, suspira:
— Imagina. Tenho uma afilhada nessas e nessas condições. Aconteceu uma coisa muito desagradável: — A menina deu um mal passo. Veja você!
“História convincente”, pensava o Dr. Arnaldo sentando-se. “Mordeu a isca”, concluiu, satisfeito com a própria naturalidade. Vasconcelos não se deu por achado embora deduzisse: — “Aí tem dente de coelho”. Mas, como o problema não era seu, foi perfeito:
— Já sei. — E baixa a voz, sem desfitá-lo: — Tenho um médico — e você conhece — que é tiro e queda. O Bergamini. Você conhece. Não conhece o Bergamini? Conhece. Pois é: — êsse.
Pigarreia: — “De confiança”? Então, o Vasconcelos, que era um exuberante, pôs o Bergamini nas nuvens:
— O Bergamini é um gênio! Faz o seguinte, Arnaldo, e por minha conta: — “manda tua afilhada lá. Manda e uma coisa te garanto: — tua afilhada vai sair nova. Pode casar direitinho, na igreja, com véu, grinalda. Você não se lembra daquele caso? Te contei. Aquela pequena, a famosa. É. Teve um filho meu. Te contei, sim. Ela foi lá e o Bergamini arranjou-lhe uma nova virgindade. A pequena casou outro dia. Passou o filho adiante e casou. O filho é a minha cara. Casou com flores de laranjeiras e outros bichos. O Bergamini é uma fábrica de virgens!”
Impassível por fora, Dr. Arnaldo levantou-se, com uma brusca euforia. Em pé, de costas para o Vasconcelos, pensava: — “Que burro que eu sou! Não me lembrei que era possível reconstituir!” Lança, ao acaso, a pergunta:
— Caro?
De pé, o outro enfia as mãos nos bolsos: — “Bem. Mais caro que aborto. Cobra menos por aborto. Mas vale a pena e olha — uma anestesia leve, uma costurazinha boba, e um servicinho que é uma jóia. Queres o endereço? Te dou. Naquela rua.”
Em silêncio, o rosto inescrutável como uma máscara, Dr. Arnaldo escreve rapidamente o endereço. Guarda o papel, levanta-se. Repete para si mesmo: “E não pensei que se podia costurar...” Com uma insistência meio desagradável, o outro sopra-lhe ao ouvido:
— Tua afilhada vai sair mais virgem do que nunca.
* * *
Engraçadinha ainda quis fugir com a bôca. Mas Letícia, que estava por cima, agarrou-a pelos cabelos, imobilizou seu rosto e abre os lábios para o beijo. Engraçadinha trinca os dentes: — “Não! Não!” Subjugada, não entendia ainda. Quis gritar. A outra fechou-lhe então a boca com o desesperado beijo. Por um instante, Engraçadinha pensou: — “Não é Letícia! Não pode ser Letícia!” Ou seria Letícia com a fôrça e a violência de um homem. Já sufocada, tem um movimento de agilidade inesperada e frenética: — consegue escorregar por baixo, virar sobre si mesma e sair pelo outro lado. Olha para a porta. Letícia, porém, mais rápida e astuta, antecipa-se: — corre na frente e barra a passagem. Ofegante, recua; torce a chave e a tira da fechadura. Na cabeceira da cama, Engraçadinha decide: — “Se ela se aproximar, eu grito”. Instintivamente passa as costas da mão na bôca. Balbucia:
— Indecente!
Letícia dá um passo na sua direção. Mas a outra arqueja:
— Não venha que eu grito! Quer ver como eu grito?
Letícia tem um esgar de chôro:
— Engraçadinha, escuta! Olha, Engraçadinha!
Não se perdoava ter beijado, de repente. Fora traída por um desejo brusco, quase mortal; e ninguém mais espantada do que ela mesma com o próprio impulso. “Não era o momento! Não era ainda o momento!” repetia para si mesma. Engraçadinha aponta a porta:
— Saia daqui, saia, já!
— Primeiro, escuta! Eu explico — pedia, na sua ardente humildade: — Deixa eu explicar!
— Isso é tara!
Soluça:
— Amor!
— Tara!
“E se ouvirem lá fora?” era o mêdo de Letícia. Começa a chorar:
— Ao menos escuta! Você não diz — Deixa eu falar, sim? — Não diz que gosta de Sílvio, desde garotinha? Pois eu também, desde menina, eu era dêste tamaninho...
Era tal o mêdo de irritá-la que escolhia as palavras e não terminava as frases. Prosseguiu, incerta, com uma intolerável pressão na cabeça: — “Há tantos anos que eu só penso em você e só vivo para você...” Com um fervor que a transfigurava, promete, tiritando :
— Eu não me aproximo. Falo de longe. Olha: — daqui, falo daqui. Só te peço que me ouças. Mas senta, senta, Engraçadinha!
Sorria agora, por entre lágrimas. Enquanto Engraçadinha sentava-se, Letícia teve a idéia de cair de joelhos e falar assim, prostrada em adoração. Teve mêdo, porém, de assustá-la. “Fico mesmo em pé”, decidiu. E, antes de continuar, pede, na sua voz mais doce: — “Não tenha mêdo, nem horror de mim, Engraçadinha!” Atônita, a prima nem responde. Já ouvira falar em mulher que só gosta de mulher. Letícia a beijara como se fôsse arrancar-lhe os lábios; insinua:
— Eu pensei que você já soubesse...
Crispou-se:
— De quê?
E Letícia:
— Não se zangue, Engraçadinha — pausa e completa: — soubesse do meu amor.
Fez uma boca de nojo: — “Amor de mulher?” Ao mesmo tempo, diz para si mesma: — “Está louca!” E pergunta — “Você não se enxerga? Está pensando que eu sou alguma tarada como você?” A outra enfureceu-se :
— Engraçadinha! Não chama meu amor de tara! — e, novamente, doce, com um olhar de súplica insuportável: — “Tomamos tantas vezes banho juntas, — não foi? Você ia me chamar: — “Vamos tomar banho, vamos?” Ou nega?”
— E daí?
Letícia baixa a voz:
— Eu te ensaboava! Passava o sabão e fazia muita espuma!
— Vá-se embora!
A outra sonhava:
— Você me chamava para brincar de namorado. Fala sério: — não me chamava? Chamava. Dizia pra mim: — “Você é o homem!” E eu era o homem. A gente se beijava — é ou não é?
Era verdade, sim. Com 10, 12 e até os 14, as duas viviam representando imaginários amores. Na hora do beijo, Engraçadinha queria dar a face; a outra, porém, queria a boca. Mas era um beijo tão leve, tão doce, um beijo quase imperceptível que não devorava, não mordia, não molhava. Letícia poderia ter lembrado, ainda, que, no colégio — colégio das melhores famílias — as meninas tinham flertes entre si, namoros, ternuras, ciumadas. Letícia perguntava: — “Não era bom? Não era, Engraçadinha?” Queria que Engraçadinha dissesse, simplesmente: — “Era bom”. Mas a prima, em silêncio, com os olhos muito abertos, pensava: — “Essa não é Letícia!” Tinham vivido anos, de mãos dadas, como duas gêmeas. E, súbito, ela descobre uma outra Letícia, tão diferente da anterior, e que, no seu desejo, tinha uma vontade quase homicida. Engraçadinha poderia apontá-la para todos os parentes: — “Essa não é Letícia! Nunca foi Letícia!” Agora a outra queria aproximar-se novamente. Engraçadinha ameaça:
— Chamo papai, já, já! Quer ver como eu chamo?
Pára onde estava. Sorri tão humilde que, imediatamente, Engraçadinha pensa em Zózimo, na humildade de Zózimo. E Letícia:
— Eu te peço perdão! Não faço mais e...
Foi dura:
— Não! Você não merece perdão! Se você tivesse a tara e a guardasse para si, vá lá! Mas dizer, confessar e, ainda por cima, me dar um beijo de homem, ah, não! Não falo mais contigo!
Rouca de ódio (e de amor), pergunta:
— Não fala mais comigo? Sua burra! Está pensando que alguém gosta de você como eu gosto? Teu pai te deu uma surra! Sílvio tem mêdo de ti! Eu não! Te dei o noivo ou minto? Farei tudo por ti? — Que queres que eu faça? Queres que eu arranje amantes pra ti? Eu arranjo!
Engraçadinha não entende a ferocidade desse amor, de um altruísmo tão abjeto, capaz dos heroísmos e das renúncias mais ignóbeis. E, sobretudo, tem mêdo de ser amada assim. Letícia, aproxima-se, quase sem pisar, devagarinho, como se não quisesse assustá-la. Como uma magnetizada, Engraçadinha desta vez não se mexe, não fala, quase não respira. Naquele momento, teve uma breve alucinação. E, com efeito, pareceu-lhe que vinha a seu encontro, com movimentos lerdos e pacientes, um dêsses monstros cegos, que habitam o fundo do mar. Em seguida, volta a si. Está numa passividade atônita. Quase sem mover os lábios, sussurra para Letícia:
— Não é normal. Isso não é normal.
A prima enfureceu-se:
— Ah, não é normal! Escuta! Se fôsse normal, eu não te daria meu noivo! Eu não viveria por ti!
O que Letícia queria dizer, por outras palavras, é que o amor normal não tem imaginação, nem audácia, nem as grandes abjeções inefáveis. É um sentimento que vive de pequeninos escrúpulos, de vergonhas medíocres, de limites covardes. Não falou assim, claro, mas o sentido foi êste. Acabou agarrando a prima e a sacudindo:
— Queres experimentar? Queres? Agora, neste momento? Pois me dá na cara! Me xinga, anda! Ninguém te ama como eu! Me dá na cara para que eu apanhe calada!
Imóvel e vibrante como um pássaro na mão que o segura, Engraçadinha gostaria que a outra jamais tivesse existido. Olham-se por um momento. E, súbito, Engraçadinha a esbofeteia. Letícia cai, de joelhos, diante dela. Engraçadinha ergue o rosto — hirta de nojo.
quarta-feira, 9 de setembro de 2009
CAPÍTULO XX
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