quarta-feira, 9 de setembro de 2009

CAPÍTULO XX

No automóvel, a caminho da cidade, o Dr. Arnal­do tem uma inspiração súbita: — “O Vasconcelos!” Era, de longa data, seu companheiro de escritório. Já iluminado, êle pensa: — “Onde é que eu estava com a cabeça que não me lembrei do Vasconcelos?” O homem era o que se pode chamar um “irresponsável sexual”. Casado, apinhado de filhos, tinha namoradas e amantes por tôda a parte; seu desejo não escolhia, não selecionava, e êle próprio, na sua voracidade uni­versal, era o primeiro a confessar: — “Tudo que cai na rede é peixe!” (Ninguém entendia que o Dr. Ar­naldo, com sua integridade quase mórbida, pudesse admitir um sujeito assim inescrupuloso e assim bandalho). Mas o fato é que o Vasconcelos tinha uma imensa e abominável experiência. Dr. Arnaldo salta na cidade com a esperança de que o outro pudesse dar-lhe um conselho decisivo. Por sorte, o Vasconcelos já chegara e examinava as folhas de um processo. Há o “bom dia normal” de parte a parte. Dr. Arnaldo en­gendra uma história que, entre parênteses, era mediocremente engenhosa: — “Direi que se trata de uma afilhada, mocinha menor, e que deu um mal passo”. Chamou o Vasconcelos e começa:
— Senta aí. Vamos conversar.
Vasconcelos puxa a cadeira. Era um senhor, já, barrigudo, bexigoso e diabético. “O que é que as mu­lheres vêem nêle?” Eis o espanto do Dr. Arnaldo. Tosse ligeiramente e vai falando:
— Talvez você me possa tirar de uma dificuldade. É o seguinte.
O outro, que era realmente prestimoso, já prome­te: — “O que estiver no meu alcance, já sabe”. Dr. Ar­naldo ergue-se, com sua bengala fatal. Andando de um lado para outro, suspira:
— Imagina. Tenho uma afilhada nessas e nessas condições. Aconteceu uma coisa muito desagradável: — A menina deu um mal passo. Veja você!
“História convincente”, pensava o Dr. Arnaldo sentando-se. “Mordeu a isca”, concluiu, satisfeito com a própria naturalidade. Vasconcelos não se deu por achado embora deduzisse: — “Aí tem dente de coe­lho”. Mas, como o problema não era seu, foi perfeito:
— Já sei. — E baixa a voz, sem desfitá-lo: — Te­nho um médico — e você conhece — que é tiro e queda. O Bergamini. Você conhece. Não conhece o Bergamini? Conhece. Pois é: — êsse.
Pigarreia: — “De confiança”? Então, o Vascon­celos, que era um exuberante, pôs o Bergamini nas nuvens:
— O Bergamini é um gênio! Faz o seguinte, Arnal­do, e por minha conta: — “manda tua afilhada lá. Manda e uma coisa te garanto: — tua afilhada vai sair nova. Pode casar direitinho, na igreja, com véu, grinal­da. Você não se lembra daquele caso? Te contei. Aque­la pequena, a famosa. É. Teve um filho meu. Te con­tei, sim. Ela foi lá e o Bergamini arranjou-lhe uma nova virgindade. A pequena casou outro dia. Passou o filho adiante e casou. O filho é a minha cara. Casou com flores de laranjeiras e outros bichos. O Bergamini é uma fábrica de virgens!”
Impassível por fora, Dr. Arnaldo levantou-se, com uma brusca euforia. Em pé, de costas para o Vascon­celos, pensava: — “Que burro que eu sou! Não me lembrei que era possível reconstituir!” Lança, ao aca­so, a pergunta:
— Caro?
De pé, o outro enfia as mãos nos bolsos: — “Bem. Mais caro que aborto. Cobra menos por aborto. Mas vale a pena e olha — uma anestesia leve, uma costurazinha boba, e um servicinho que é uma jóia. Queres o endereço? Te dou. Naquela rua.”
Em silêncio, o rosto inescrutável como uma más­cara, Dr. Arnaldo escreve rapidamente o endereço. Guarda o papel, levanta-se. Repete para si mesmo: “E não pensei que se podia costurar...” Com uma insistên­cia meio desagradável, o outro sopra-lhe ao ouvido:
— Tua afilhada vai sair mais virgem do que nunca.

* * *

Engraçadinha ainda quis fugir com a bôca. Mas Letícia, que estava por cima, agarrou-a pelos cabelos, imobilizou seu rosto e abre os lábios para o beijo. En­graçadinha trinca os dentes: — “Não! Não!” Subjuga­da, não entendia ainda. Quis gritar. A outra fechou-lhe então a boca com o desesperado beijo. Por um instante, Engraçadinha pensou: — “Não é Letícia! Não pode ser Letícia!” Ou seria Letícia com a fôrça e a violência de um homem. Já sufocada, tem um movimento de agili­dade inesperada e frenética: — consegue escorregar por baixo, virar sobre si mesma e sair pelo outro lado. Olha para a porta. Letícia, porém, mais rápida e as­tuta, antecipa-se: — corre na frente e barra a passa­gem. Ofegante, recua; torce a chave e a tira da fecha­dura. Na cabeceira da cama, Engraçadinha decide: — “Se ela se aproximar, eu grito”. Instintivamente passa as costas da mão na bôca. Balbucia:
— Indecente!
Letícia dá um passo na sua direção. Mas a outra arqueja:
— Não venha que eu grito! Quer ver como eu grito?
Letícia tem um esgar de chôro:
— Engraçadinha, escuta! Olha, Engraçadinha!
Não se perdoava ter beijado, de repente. Fora traí­da por um desejo brusco, quase mortal; e ninguém mais espantada do que ela mesma com o próprio im­pulso. “Não era o momento! Não era ainda o momen­to!” repetia para si mesma. Engraçadinha aponta a porta:
— Saia daqui, saia, já!
— Primeiro, escuta! Eu explico — pedia, na sua ardente humildade: — Deixa eu explicar!
— Isso é tara!
Soluça:
— Amor!
— Tara!
“E se ouvirem lá fora?” era o mêdo de Letícia. Começa a chorar:
— Ao menos escuta! Você não diz — Deixa eu falar, sim? — Não diz que gosta de Sílvio, desde garotinha? Pois eu também, desde menina, eu era dêste tamaninho...
Era tal o mêdo de irritá-la que escolhia as pala­vras e não terminava as frases. Prosseguiu, incerta, com uma intolerável pressão na cabeça: — “Há tantos anos que eu só penso em você e só vivo para você...” Com um fervor que a transfigurava, promete, tiri­tando :
— Eu não me aproximo. Falo de longe. Olha: — daqui, falo daqui. Só te peço que me ouças. Mas senta, senta, Engraçadinha!
Sorria agora, por entre lágrimas. Enquanto En­graçadinha sentava-se, Letícia teve a idéia de cair de joelhos e falar assim, prostrada em adoração. Teve mêdo, porém, de assustá-la. “Fico mesmo em pé”, de­cidiu. E, antes de continuar, pede, na sua voz mais doce: — “Não tenha mêdo, nem horror de mim, Engraça­dinha!” Atônita, a prima nem responde. Já ouvira fa­lar em mulher que só gosta de mulher. Letícia a bei­jara como se fôsse arrancar-lhe os lábios; insinua:
— Eu pensei que você já soubesse...
Crispou-se:
— De quê?
E Letícia:
— Não se zangue, Engraçadinha — pausa e com­pleta: — soubesse do meu amor.
Fez uma boca de nojo: — “Amor de mulher?” Ao mesmo tempo, diz para si mesma: — “Está louca!” E pergunta — “Você não se enxerga? Está pensando que eu sou alguma tarada como você?” A outra en­fureceu-se :
— Engraçadinha! Não chama meu amor de tara! — e, novamente, doce, com um olhar de súplica insu­portável: — “Tomamos tantas vezes banho juntas, — não foi? Você ia me chamar: — “Vamos tomar banho, vamos?” Ou nega?”
— E daí?
Letícia baixa a voz:
— Eu te ensaboava! Passava o sabão e fazia muita espuma!
— Vá-se embora!
A outra sonhava:
— Você me chamava para brincar de namorado. Fala sério: — não me chamava? Chamava. Dizia pra mim: — “Você é o homem!” E eu era o homem. A gente se beijava — é ou não é?
Era verdade, sim. Com 10, 12 e até os 14, as duas viviam representando imaginários amores. Na hora do beijo, Engraçadinha queria dar a face; a outra, porém, queria a boca. Mas era um beijo tão leve, tão doce, um beijo quase imperceptível que não devorava, não mordia, não molhava. Letícia poderia ter lembrado, ainda, que, no colégio — colégio das melhores famí­lias — as meninas tinham flertes entre si, namoros, ternuras, ciumadas. Letícia perguntava: — “Não era bom? Não era, Engraçadinha?” Queria que Engraça­dinha dissesse, simplesmente: — “Era bom”. Mas a prima, em silêncio, com os olhos muito abertos, pen­sava: — “Essa não é Letícia!” Tinham vivido anos, de mãos dadas, como duas gêmeas. E, súbito, ela desco­bre uma outra Letícia, tão diferente da anterior, e que, no seu desejo, tinha uma vontade quase homicida. En­graçadinha poderia apontá-la para todos os parentes: — “Essa não é Letícia! Nunca foi Letícia!” Agora a outra queria aproximar-se novamente. Engraçadinha ameaça:
— Chamo papai, já, já! Quer ver como eu chamo?
Pára onde estava. Sorri tão humilde que, imedia­tamente, Engraçadinha pensa em Zózimo, na humil­dade de Zózimo. E Letícia:
— Eu te peço perdão! Não faço mais e...
Foi dura:
— Não! Você não merece perdão! Se você tivesse a tara e a guardasse para si, vá lá! Mas dizer, confes­sar e, ainda por cima, me dar um beijo de homem, ah, não! Não falo mais contigo!
Rouca de ódio (e de amor), pergunta:
— Não fala mais comigo? Sua burra! Está pen­sando que alguém gosta de você como eu gosto? Teu pai te deu uma surra! Sílvio tem mêdo de ti! Eu não! Te dei o noivo ou minto? Farei tudo por ti? — Que que­res que eu faça? Queres que eu arranje amantes pra ti? Eu arranjo!
Engraçadinha não entende a ferocidade desse amor, de um altruísmo tão abjeto, capaz dos heroísmos e das renúncias mais ignóbeis. E, sobretudo, tem mêdo de ser amada assim. Letícia, aproxima-se, quase sem pisar, devagarinho, como se não quisesse assustá-la. Como uma magnetizada, Engraçadinha desta vez não se mexe, não fala, quase não respira. Naquele momen­to, teve uma breve alucinação. E, com efeito, pareceu-lhe que vinha a seu encontro, com movimentos lerdos e pacientes, um dêsses monstros cegos, que habitam o fundo do mar. Em seguida, volta a si. Está numa pas­sividade atônita. Quase sem mover os lábios, sussurra para Letícia:
— Não é normal. Isso não é normal.
A prima enfureceu-se:
— Ah, não é normal! Escuta! Se fôsse normal, eu não te daria meu noivo! Eu não viveria por ti!
O que Letícia queria dizer, por outras palavras, é que o amor normal não tem imaginação, nem audácia, nem as grandes abjeções inefáveis. É um sentimento que vive de pequeninos escrúpulos, de vergonhas me­díocres, de limites covardes. Não falou assim, claro, mas o sentido foi êste. Acabou agarrando a prima e a sacudindo:
— Queres experimentar? Queres? Agora, neste mo­mento? Pois me dá na cara! Me xinga, anda! Ninguém te ama como eu! Me dá na cara para que eu apanhe calada!
Imóvel e vibrante como um pássaro na mão que o segura, Engraçadinha gostaria que a outra jamais tives­se existido. Olham-se por um momento. E, súbito, En­graçadinha a esbofeteia. Letícia cai, de joelhos, diante dela. Engraçadinha ergue o rosto — hirta de nojo.

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