terça-feira, 8 de setembro de 2009

CAPÍTULO XIX

Era êle. O corpo inteiro colado à porta, Engraça­dinha sorri para si mesma, numa selvagem euforia. Oh, Sílvio! Viria sempre, sempre! “Minha vidinha, es­tou aqui! Não posso falar, mas estou aqui! Olha: — sou tua! Morde aqui, querido, morde, meu amor, oh! querido!” Do outro lado, com seu obstinado desejo, o lábio encharcado, êle mexe na porta. Diz, num sôpro: — “Engraçadinha!” Sabe que a prima está ali. E, sú­bito, Engraçadinha cai com um ombro, projeta um lado do busto e esmaga o seio contra o trinco. Não fala, mas, se pudesse, ela pediria: — “Machuca, oh, machu­ca!” Não pode falar, mas, ah, agora está pensando: — no médico e em Silvio. No doutor, cobriria os olhos com uma das mãos, choraria talvez. O médico não ia des­confiar dessa afetação de pudor e pelo contrário: — acharia normal a vergonha de uma menina que ainda reagia como virgem. Com o trinco magoando um dos seios — ela pensava: — “Oh, Sílvio! Que interesse posso ter num médico desconhecido? Tolinho, êle está tão acostumado que nem liga! E como é chato êsse exame! Tão desagradável! Eu queria uma médica, mas papai preferiu homem!” Sim, diria isso a Sílvio e mais: — “Vou obrigada, Sílvio! Você me julga uma menina sem pudor, oh, Silvio!”
No corredor, êle torce o trinco e não entende a re­sistência ou por outra: acha que é a mão de Engra­çadinha, a mão, e não o seio. Sente-se abjeto de vir, ali, tôdas as noites, como um sátiro da madrugada. É um desejo noturno que chega com a hora certa. O ra­paz já se imagina uma espécie de vampiro de novela, de filme. Por vêzes, dá-lhe vontade de fazer, em si mesmo, uma mutilação hedionda. Não desejar mais, nunca mais. Escorraçá-la: — “Não te quero! Vai-te” E não sofrer, sobretudo não sofrer! Se ao menos pu­desse gritar, junto à porta: — “Engraçadinha! Abre, Engraçadinha!” Ouvir-lhe a resposta — “Sim” ou “Não” — mas ouvir-lhe a resposta. Ou, então, se pu­desse pôr a porta abaixo! Se pudesse derrubar essa porta, ah essa porta! Podia estar ali de paletó de pi­jama e nem isso: — vinha sempre de peito nu! Repe­tiu para si mesmo: — “Não abre!” Experimenta subi­tamente, na carne e na alma, a certeza de que ela ja­mais abriria. “Tôdas as noites, estarei aqui, de joe­lhos diante desta porta, de joelhos. Mas eu sei que ela não abrirá! E se eu batesse? Todos acordariam, mas se eu batesse?” Na sua fúria, pensa: — “Não tenho na­da com os outros! Os outros que se danem!” Fala bai­xinho, com a bôca encostada na fechadura:
— Engraçadinha.
Nada ainda. Toma-se de um pudor obtuso. “Se eu passar o resto da vida aqui, ela não abrirá nunca!” Imaginou-se morrendo, junto à porta de Engraçadi­nha, agonizando e morrendo. De manhã, quando ela abrisse a porta, tropeçaria nêle, no seu cadáver. Faz mais uma tentativa: — torce o trinco, pela última vez. Espera mais um pouco. Começou a odiá-la. Ódio e desejo. E quanto mais a odiava, mais a desejava: — “Sua cretina! Sua sem-vergonha! Eu te conheço e olha: — já te meti a mão na cara! Sangrou um pouco, não sangrou? Ah, sangrou? E outra coisa: — a primeira vez em que estivermos sòzinhos, eu vou te dar uma bofetada — olha! — com a mão aberta!” Já estava de joelhos. Sabia que ela estava, junto à porta, com o corpo colado (mas não podia imaginar que esmagava ora um seio, ora outro, contra o trinco e contra a cha­ve). “Deve estar amanhecendo”, foi o que pensou. Er­gueu-se, torceu outra vez o trinco e, desesperado, veio andando pelo corredor, rente à parede e uma dor atra­vessando a fronte. Entra no quarto, caminha para a cama, cambaleando. Cai de bruços, mete a cara no tra­vesseiro, morde a fronha, estrangula o choro.

* * *

Dr. Arnaldo saiu de casa, pela manhã, bem cedi­nho. Perguntava a si mesmo: — “Falar com Sílvio?” E decidia: — “Não. Ainda não”. Eis a verdade — não po­dia dar-lhe nunca a notícia, à queima-roupa: — “Você é meu filho, não sobrinho”. Sílvio não poderia saber até que êle, Arnaldo morresse, e mesmo depois de sua morte. Tomando um táxi na esquina, pensa: — “Engra­çadinha sabe”. E se a filha dissesse? Saíra cedo para descobrir um ginecologista de confiança. “Em cuja dis­crição se possa confiar”, foi a frase que êle formulou para si mesmo.

* * *

Em casa bate o telefone. Era Letícia. A criada res­ponde:
— Está dormindo.
Irritou-se:
— Acorda.
E a outra:
— Um momentinho, D. Letícia.
Com pouco mais, vem Engraçadinha, com o quimono rosa em cima da camisola. Nos pés, as sandalinhas de arminho, presente da própria Letícia. Fora dormir tarde demais e o pior era a dor no seio. “Síl­vio deve estar maluco!” Ao mesmo tempo, ocorreu-lhe o raciocínio: — “Irmão só por parte de pai!” Boceja:
— Alô!
— Engraçadinha?
Foi quase indelicada:
— O que é que há?
— Tudo bem?
Coça debaixo do braço:
— Mais ou menos.
E Letícia:
— Olha! Quero que você seja sincera. Se eu te fi­zesse uma certa pergunta. É o seguinte: — você nunca desconfiou de nada?
— Não entendi.
Titubeia:
— Bem. É o seguinte: — eu e você fomos criadas juntas. Te pergunto se, durante êsses anos todos, você nunca desconfiou. Responde!
— Como desconfiar? E de quê? Letícia, fala por­tuguês claro. Você está fazendo um mistério danado.
Suspirou:
— Só falando pessoalmente. Passo por aí, depois do almoço.
Lembrou-se do médico:
— Depois do almoço, não. Vou ao médico. Mais tarde.
A outra decidiu-se:
— Então, já. Passo aí agora.
— Passa.
Quando voltou do quarto, teve uma tentação: “E se eu der um pulo no quarto de Sílvio?” Desistiu e por um motivo: — desde a véspera, estava covarde: — “Papai pode ver e me mata”. Mas, ao passar pela porta do primo (ou irmão), experimentou uma espé­cie de vertigem. Quase, quase passou a mão no trinco. Conclui, porém: — “É perigoso. Pode dar o azar” Foi esperar Letícia deitada. Cruzando os pés — conti­nuava a dor no seio — tinha agora ódio de Zózimo: — “Tão cínico que sabe que eu estou grávida de outro. Não estou, mas êle pensa que estou e é a mesma coisa. Pois não é que o desgraçado diz que não se importa, que está tudo ótimo, ora veja! E imagine eu me casan­do com êsse idiota. Na primeira noite, quando êle me puser a mão, ah eu vou pôr a boca no mundo!”

* * *

Estava cochilando, quando a prima abre a porta e chama:
— Engraçadinha.
Começava a sonhar com Sílvio. Vira-se na cama e boceja: — “Como é?” Letícia senta-se, nervosíssima. Pergunta de si para si: — “Será que ela não desconfia mesmo ou finge? Ah, deve ter percebido alguma coisa”. Começa:
— Tenho uma surpresa para ti.
Engraçadinha vira-se: — “Surprêsa” Letícia sus­pira: — “Olha só como eu estou tremendo!” Mostra a mão que, de fato, tremia. Pergunta:
— Primeiro, eu quero saber o que houve ontem. Não dormi direito, pensando. E outra coisa: — titio morreu pra mim. O que êle fêz contigo não tem perdão. Mas deixa pra lá e conta: — o que ficou resolvido?
Sem conseguir odiar o velho, responde:
— Sabe como é, papai. Quer o seguinte: — o teu casamento com Sílvio e o meu com Zózimo. Só.
Aquilo a enfureceu:
— Mas que absurdo! Por essas e outras, é que, bom! E você? O que me interessa é você? O que você resolveu ?
Engraçadinha não respondeu. Senta-se na cama. Passa a mão por traz da cabeça e enfia os dedos nos cabelos. No momento ela pensa no médico. Chegaria no consultório e na hora do exame começaria a chorar. O médico acharia, digamos, uma graça paternal: — “Mas que é isso?” A própria enfermeira iria consolá-la: — “Não chore. Chorando por quê?” E essa premeditação de pudor já a arrepiava. Vira-se para a prima:
— Não sei de nada. Só pensando muito.
Letícia tira a mão do seu braço. Levanta-se e vai fechar a porta à chave. Senta-se novamente na cama:
— Agora a surprêsa. Responde: — quando você me contou a sua gravidez e eu disse que a solução era o teu casamento com Sílvio, o que é que você achou?
Admirou-se: “Mas achei como?” Letícia não sabe continuar: — “Mas será que ela é cega?” Continua.
— Engraçadinha, você não achou que era abnega­ção demais? Seja sincera. Não achou? Responde: Ab­negação demais?
Vacila:
— Confesso que, se eu estivesse em teu lugar, não faria isso, ali, não! Em amor, eu sou muito egoísta. Você me conhece.
E ela, sôfrega:
— Pois é. Você não faria, ninguém faria. Mas olha — o próprio fervor parecia embelezá-la — eu faria isso e muito mais. Engraçadinha, olha para mim.
A outra obedece. Está imaginando o momento em que, no consultório, a enfermeira lhe diria, segredan­do: — “Tira a calcinha”. Baixaria então o olhar e teria duas rosetas na face. Está claro que, nessas ocasiões, a mulher finge naturalidade ou pudor, ou, ainda, um altivo constrangimento. Mas, o que existe, realmente, é o disfarce de uma voluptuosidade que tôdas negariam com a maior violência. Letícia continua, com um há­lito de febre:
— O que eu queria te dizer é o seguinte: — sabe por que eu faria tudo por ti e muito mais? Sabe? E estou disposta até, ouve: — se eu tiver de casar com Sílvio, eu deixarei, eu! Deixarei que tu sejas a aman­te dêle.
Estava rouca de angústia. Crispa a mão no braço de Engraçadinha:
— E sabe por quê?
Balbucia:
— Por quê?
Súbito, o rosto de Letícia tornou-se uma máscara de loucura. Enlaça Engraçadinha, com selvagem ener­gia, e a derruba na cama. Depois, sorve-lhe a boca num beijo sem fim.

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