quinta-feira, 24 de setembro de 2009

CAPÍTULO XXII

“Está tudo salvo!” Eis o que pensava o Dr. Arnal­do ao tomar o táxi. O médico não lhe saía da cabeça. Sentia-se na mais desagradável das perplexidades. “Um cínico”, repetia para si mesmo. Cínico e algo mais, talvez. A história da filha morta parecia-lhe in­verossímil. Fôsse como fôsse, o Dr. Arnaldo reconhe­cia que um canalha útil, um canalha necessário, possui uma fascinação e uma autoridade irresistíveis.
Ao descer em casa, tem a surpresa: — tio Nonô o esperava. De branco, passando o lenço no suor da testa, o gordo estava ali, na varanda, há meia hora. Já conversara com as velhinhas da casa; e, pouco an­tes, ao ver Engraçadinha de passagem, fizera para si mesmo o comentário maligno: — “Essa menina não tem vida. Uma água morna. Tem a idade mental de oito anos”. Recebe o cunhado no alto da escada; fala baixo:
— Precisava falar contigo.
O rosto do Dr. Arnaldo toma a expressão de um descontentamento cruel. Pensa, indignado: — “Essa besta ainda me trata de “tu”, de “você”!” Quis ser duro:
— Você chegou em má hora. Não posso atender.
Tio Nonô o acompanha. Finge humildade:
— Mas Arnaldo! O assunto — e baixa a voz — o assunto é sério. Aquêle título...
Dr. Arnaldo, que ia na frente, estaca. Pergunta, pálido:
— Que título?
E o outro:
— O tal dos cem contos, que você avalizou. Se vence hoje.
Olha-o de alto a baixo:
— Pague!
No seu ódio impotente, pensa novamente em Hitler. Diz para si: — “Ah, o Hitler aqui! Fuzilando êsse pa­lhaço!” Pensa ainda, ao mesmo tempo que caminha na direção da biblioteca: — “Só a tiro! Sá a bala!” Abre a porta: — “Nessas horas é que o Hitler é bom!” O gordo vai atrás. Ainda com a humildade que é o disfarce de um feroz sarcasmo, diz e repete para si mesmo: — “Todos os canalhas são magros!” Pergunta, docemente:
— Como é, Arnaldo?
Perde a cabeça:
— Não lhe dou um tostão! O título que vá para o protesto!
Insiste:
— Mas Arnaldo! E seu nome? Não tenho níquel!
Andando de um lado para outro, o deputado não se perdoa a leviandade de ter avalizado aquilo. Sua vontade era meter-lhe a bengala na cara. Ah, o ca­chorro! Assinara o título porque a irmã — outra cre­tina! — só faltara ajoelhar-se a seus pés. Volta-se para o cunhado.
— Olha aqui, seu miserável! Eu estou resolvendo um assunto de vida ou morte. Saia! Retire-se!
O outro não se mexia: — “Arnaldo, entenda! É hoje a data do vencimento! Eu posso ir para o pro­testo. Você, não!” Dr. Arnaldo repete, lívido de ódio:
— Ter um canalha na família!
Tio Nonô o encara, com uma cínica deferência. Imaginava aquêle magro nu. Ao mesmo tempo teve que se prender para não estourar numa de suas garga­lhadas selvagens. Dr. Arnaldo vocifera: — “Você não se ofende, homem! Chamo-lhe de canalha e você não se ofende?” Repete com um prazer bestial: — “Crápula! Crápula!” E, apesar de tudo, a passividade daquele gordo causava-lhe uma espécie de deslumbramento. Tio Nonô responde, sem desfitá-lo:
— Eu não me ofendo, nunca me ofendo, nunca me ofendi!
Tal capacidade de não se ofender — jamais! em hi­pótese nenhuma! — dava-lhe uma força sinistra, uma potência lúgubre. Insiste:
— Arnaldo, o meu nome não é nada. Eu não sou ninguém. É o seu, Arnaldo! O seu que está em jogo! Compreenda: — é o seu!
Fora de si, o velho bate com a bengala na secre­tária de jacarandá:
— Basta!
Tio Nonô cala-se. Dr. Arnaldo aponta com a ben­gala para a porta:
— Saia! Retire-se!
O gordo não se mexeu. Deixa passar um momento. Sentindo que o cunhado está seguro (“Êle não me es­capa!”), faz a pergunta:
— Em que ficamos? Não tenho um níquel — e re­pete, com uma imensa vontade de rir: — Ou você paga ou...
Dr. Arnaldo ia repetir: — “Crápula! Crápula!” Ao mesmo tempo, sente que é inútil insultar um homem que não reage. No seu desespero, repete paro si mes­mo: — “Êle não se ofende!” Experimenta um súbito cansaço de tudo e de todos. Fecha os olhos e respira fundo: “Eu só devo sofrer pelos meus dois filhos. Di­nheiro não vale nada”, ergue o rosto:
— Procure o Vasconcelos, no escritório, de tarde. Telefone pra êle — e grita: — Agora saia! Pelo amor de Deus, saia!
Tio Nonô abandona a biblioteca. Pouco depois, já na rua, diz, de si para si: — “Eu não me ofendo. Nada me ofende”. Estava com os olhos cheios de água.

* * *

Chegou na porta da biblioteca:
— Chama Sílvio.
— Não está.
— Foi onde?
Responderam:
— Casa de Letícia.
E êle:
— Manda Engraçadinha aqui.
Enquanto esperava a filha, veio sentar-se novamen­te. Lembrava-se do que dissera o médico: — “Eu não julgo ninguém”. Mentira. Na verdade, julgava todo o mundo. Era, se assim posso dizer, um irritado nato e hereditário. Digo “hereditário”, porque o pai, um Juiz de Direito, já o era. Dr. Arnaldo, que falava escassa­mente, tinha uma imensa agressividade interior. Sua polidez era, justamente, o disfarce de profundas cóleras secretas. Mas êle acabava de estar com o ginecologista. Por mais estranho que pareça, aquêle bandido ginecológico desconcertara-o. Esperava ver uma face lívida e lúgubre. Em vez disso, encontrara um homem estra­nho, um velho que ainda demonstrava uma certa ple­nitude; e pior do que isso: — o cínico pretendia desa­fiar a própria classe com uma ética pessoal. Dr. Bergamini tratara-o com um respeito apiedado, uma es­pécie de indulgência superior. Imaginem: — vivia de abortos e, não obstante, ditava normas de comporta­mento! “Mas em todo caso” — pensa Dr. Arnaldo, “quem sou eu para julgar os meus dois filhos?” Instin­tivamente olhou para o diva. Ali, possuíra a cunhada, a espôsa do irmão. Adorava o irmão e possuíra a cunha­da. “Eu não devo julgar Engraçadinha, nem Sílvio”. Por um momento sentiu-se impotente para julgar até mesmo os abortos do Dr. Bergamini. Engraçadinha aca­bava de aparecer:
— Papai?
Ergue-se:
— Entra, minha filha.
Recebeu-a com uma ternura trêmula de velho. Per­gunta, de si para si: — “Vale a pena pedir desculpas pela surra?” Inclina-se para a menina:
— O médico ficou para amanhã, mas olha — tudo se resolve. O que passou, passou... Felizmente — pigarreia — felizmente, agora, há meios que permitem...
Gagueja, escolhe as palavras. Como dizer-lhe que um especialista pode reconstituir uma virgindade? Ver­melho, baixa a voz:
— Como eu ia dizendo: — o médico fará em você uma intervenção pequena, que não demora nada, uns cinco minutos. E quando você sair de lá, está ouvin­do? Pode casar na igreja com véu, grinalda.
Pareceu-lhe desnecessário dizer que ela não sofre­ria. Engraçadinha estava de cabeça baixa; ergueu o rosto e disse: — “Papai, eu não estou grávida”. O velho recebeu um impacto: “Não?” Explica, nova­mente de olhos baixos: — “Eu disse que estava, porque, o senhor compreende — eu queria comprometer Sílvio e...” Então, aquêle homem teve, ali, uma fraqueza, que o surpreendeu, ao mesmo tempo que o envergonhava: — curvou-se e beijou, não na testa, mas nos cabelos. Espantada também, a menina balbuciou: — “Papai!”.
Furioso com a própria debilidade, fala atropelan­do as palavras:
— Olha: — eu vou dizer ao Zózimo que o médico constatou que você... — pára, com uma brusca vergo­nha. Não, nada. Depois nós combinamos.

* * *

Letícia saíra de lá desfigurada pelo ódio. Passara pelas tias, sem se despedir. Eis o que dizia a si mesma, por outras palavras: — Engraçadinha, que não quisera o seu amor, teria o seu ódio. “Ela me paga”, repetia, com os dentes trincados. “Como é burra! Que importa se o amor é normal ou não! O que importa é o amor!” Che­ga em casa, diz para a mãe: — “Mamãe, olha: — o verdadeiro amor mete mêdo. Pode crer: — ninguém quer ser amado, mamãe!” Correu para o telefone e chamou Silvio. Pede, muito doce e sofrida:
— Vem, meu amor! Vem!
Esperou-o no jardim. Quando Sílvio aparece, agar­ra-se. Surprêso, êle não entende aquêle chamado do desespêro. Letícia pergunta, bruscamente:
— Tu me amas?
Faz espanto:
— Ou você duvida?
— Responde.
E êle:
— Mas claro!
Leva-o para o caramanchão: — “Ainda me queres para tua esposa? Queres? Fala! Queres!” Sentiu no hálito da moça o gosto da boca. Letícia repetia:
— Meu e não de Engraçadinha! Escuta: — Engra­çadinha é uma bruxa! Se eu te contasse, meu amor, o que ela quis fazer comigo! Tem uma tara, Engraçadi­nha tem uma tara! Beija, me beija!

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