sexta-feira, 25 de setembro de 2009

CAPÍTULO XXIII

Beijando-a, na boca, repete para si mesmo: “Ta­ra?” Quando se desprendem, quer saber:
— Tara?
Letícia respira fundo. Encosta a cabeça no seu peito. Sussurra: — “Como o teu coração está batendo!” E pensa: — “Engraçadinha, eu não te dou Sílvio! Êle é meu, só meu!” Sílvio faz a noiva levantar o rosto:
— Mas fala! Vocês brigaram?
Vacila.
— Mais ou menos!
Letícia sofre Se, ao menos, pudesse esquecer En­graçadinha, se pudesse não desejá-la? Queria, ao me­nos, não se lembrar dos banhos que tomaram juntas! Tem o lamento interior: — “Eu não tenho culpa de ser como sou!” Em seguida, acrescenta, para si mesma, com sofrida altivez: — “Gosto de ser como sou!” Novamente, Sílvio a interroga:
— Mas bruxa por quê ? E que tara é essa ?
Ergue-se:
— Vamos sair.
E êle:
— Para onde?
Vacila. Tinha, em si, uma ardente vontade de fuga. Uma fuga desesperada e sem destino. Queria falar lon­ge de casa, longe da mãe, das tias, das criadas, dos conhecidos. Leva-o. O automóvel que ganhara, de pre­sente, no dia dos seus anos, estava, lá fora, encostado no meio-fio. Chamava-o: — “Vem! Te levo!” Entraram. Então, de perfil para êle, mantendo uma velocidade macia, quase imperceptível — foi mentindo, no seu desespero:
— Nunca desconfiaste de nada?
Sílvio começava a ter mêdo: — “Desconfiar de que?” Letícia finge irritação:
— Oh! vocês homens são cegos! Tão cegos... En­graçadinha não é o que você pensa. Eu também — te juro! — eu me deixei iludir. E se eu disser...
Diminui a marcha do carro. Acaba dobrando numa esquina qualquer. Era uma rua deserta. Vira-se para o noivo diz baixo, na angústia da própria mentira:
— ...se eu te disser que hoje, ainda hoje, ela me beijou na boca? Olha só como eu estou arrepiada! Na boca, Sílvio, como se fôsse homem!
Duvidou de si mesmo: — “Mas quem?” Respondeu, com surdo sofrimento.
— Engraçadinha, Sílvio! Compreende? Você, quan­do chegou, não me achou triste? Oh, Sílvio! Eu já des­confiava, mas não tinha certeza. Fazia umas brincadei­ras e quando nós tomávamos banho, ela queria me en­saboar, me ensaboava um tempão e...
No seu desespêro, Sílvio quis duvidar até o fim:
— “Ou você está enganada? Tem certeza? Olha para mim, Letícia! Responda: — tem certeza?” Ao mes­mo tempo, pensava: — “Engraçadinha gosta de mu­lher? Engraçadinha?” Houve um momento em que, na sua fúria, Letícia já não sabia se estava ou não men­tindo. Falava com apaixonada sinceridade.
— Ela se declarou a mim, Sílvio! — Começou a chorar. Eu recebi uma declaração de Engraçadinha! Eu acho até, ouviu? Está ouvindo? Acho que Engraça­dinha tem algum desequilíbrio mental!
Fora de si, gritou:
— Mas Letícia! E o que ela fêz na biblioteca? Co­migo ?
Riu do rapaz:
— Por isso é que eu digo: Vocês homens! Escuta, Silvio! Ou você não percebe a esperteza? Foi es­perteza, Sílvio! — Baixa a voz, crispa a mão no seu braço: — Mulheres assim precisam fingir que gos­tam de um homem! É um despistamento! Não gosta de Zózimo e ficou noiva por quê? Claro! E quem diz que Dão gosta de mulher e de homem, ao mesmo tempo? Sabe lá?
Num silêncio atônito, não sabia o que pensar. Gos­taria de estar horrorizado e só horrorizado. Mas sen­tia uma sensação de horror, de asco e, ao mesmo tem­po, de voluptuosidade. Ela pensava, sob a embriaguez da mentira: — “Eu não gosto de ti e de Engraçadinha? De Engraçadinha, não! Gosto só de ti! e Engraçadi­nha, não. Detesto. Engraçadinha desprezou o meu amor!” Sílvio queria duvidar, ainda:
— Letícia, e se ela te beijou sem maldade? Quem sabe?
Teve vontade de esbofeteá-lo:
— Sem maldade, como? Beijo na boca sem mal­dade? Por favor, Sílvio!
Súbito, agarra-o. A facilidade, e, mais do que isso, a paixão com que mentia, a aterrava. Dir-se-ia que era outra, e não ela mesma — outra, que mergulhava num lúcido e implacável delírio. Puxa para si o rapaz “Beija! Quero sentir uma bôca de homem! Um beijo de homem: oh, Sílvio!” Êle a beijou sem desejo. Letícia pensava, cravando as unhas na sua nuca: — “Ah, se eu gostasse de outra e esquecesse Engraçadinha?” Repetia, para si mesma: — “Esquecer Engraçadinha”!

* * *

Voltaram para casa. O rapaz vinha pensando: — “Engraçadinha é isso!” Repetiu, em voz alta:
— Engraçadinha é isso!
E ela:
— Posso te fazer uma pergunta? E você me res­ponde?
“Eu devia estar mais enojado”, pensava. Suspira:
— Respondo.
Devia achar Engraçadinha muito vil e muito baixa. E, no entanto, não podia evitar uma sensação volup­tuosa. “Eu sou menos normal do que pensava”. A noi­va faz a pergunta;
— O que é que você sente por Engraçadinha?
— Por que?
— Amor?
Diz, sem olhar.
— Não.
Pausa. Insiste.
— Desejo?
Responde:
— Depois que eu soube, você acha que eu... Letícia, eu considero o seguinte: — entre homem e mu­lher, não há perversão possível. Acho tudo direito, fa­buloso, moral e — frisava: — Entre homem, e mulher, claro. O que Engraçadinha fêz, na biblioteca, eu achei até... pára e completa — bonito. Achei bonito.
Suspira.
— Ela fêz o que eu não fiz Não é isso? Fêz o que eu não fiz, nem faria — repetiu.
Atrapalhou-se: “Eu não disse isso, ora Letícia!” A pequena, que moderara a marcha do automóvel, en­costou noutra ruazinha quieta. Cruza os braços; sem olhá-lo, e sem nenhuma excitação, numa calma intensa, vai falando:
— Você pensa que eu não tenho coragem? E se eu lhe disser que Engraçadinha não é melhor do que nin­guém? Se eu lhe disser que faria a mesma coisa? Que­res que eu faça? Queres? Agora? Leva-me para longe, bem longe, ou, então... Ela fêz em casa. Não foi em casa ? Oh: — Mamãe, hoje, vai sair e eu... Eu te espero.
Disse, apenas:
— Não.
Aquilo doeu-lhe na carne e na alma:
— Você disse “não” à Engraçadinha?
Abraça Letícia:
— Você é minha noiva. Eu quero você como es­posa. Engraçadinha só podia ser amante. E eu agi — confesso — eu, naquele momento, agi como... Não agi bem. Fui um canalha
Roça com: os lábios os lábios do noivo; pergunta: — “Não me quer como amante?” Disse:
— Como espôsa. Vamos, Letícia. Eu te quero como espôsa. Vamos.
Voltaram. No momento em que se despediram, ela fêz a última tentativa:
— Eu te espero. Mamãe não está em casa. Janta fora. Você vem e... Sim?

* * *

Claro que não viria. O que experimentava, acima de tudo, era uma espécie de ódio, ou melhor: — ódio, não, asco. Tomou-se de um sábio asco da vida. Pa­rou numa esquina: — experimentou uma brusca ne­cessidade de uma sordidez ainda maior. Sim, precisava de algo ainda mais vil. Beber até cair com a cara en­fiada no ralo. Ou, então, beber acompanhado. Passar a noite, com uma prostituta ao lado, bebendo, também. Imagina-se com uma delas, os dois bêbedos, xingando-se. O diabo é que ia à casa de mulheres e lá en­contrava, não uma prostituta, mas uma funcionária, exatamente uma funcionária, atônita de tédio e que chamava os clientes de “Meu filho”. Lembrou-se de uma conhecida desse tipo, a Geni — tão amorosa e tão triste (não se despia, completamente, nunca; fora anavalhada nos dois seios e conservava o pudor do “sou­tien”). Com certa nostalgia da Geni, liga para a casa de mulheres. A outra fêz-lhe uma festa imensa. Quase chora:
— Hoje, não posso. O Barone está no quarto. Vem amanhã, vem? Promete?
O Barone era uma ex-estrela da luta romana, hoje retirado, freguês certo e nababesco da Geni. Sílvio bufa: — “Olha, vou falar, agora com uma menina de família, que não chega aos teus pés”. A outra tem um riso áspero e debochado (sem prejuízo da alma boa, meiga e sonhadora de futura suicida). Sílvio deixa o telefone e sente, agora, a necessidade de ver e ouvir Engraçadinha. Pensa: — “A verdadeira prostituta é Engraçadinha e não Geni”. No seu ressentimento, re­pete: “Quem devia levar a navalhada nos seios era a Engraçadinha”. Ao aproximar-se de casa, vê, ao longe, Engraçadinha. Estava no portão (talvez à sua espera). Diz para si mesmo” — “Tão linda e...” Apressa o passo, na angústia de chegar. Exclama, alegremente:
— Escuta, Sílvio
Baixa a voz:
— Foi bom eu te encontrar sòzinha. Olha Engra­çadinha: — nunca na minha vida — escuta, ouve o resto — nunca na minha vida eu vi uma mulher tão or­dinária como você! Tão sórdida!
Balbucia, assombrada, sem entender essa violên­cia: — “Mas que é isso?” Êle ri, com certo nôjo de si mesmo:
— Eu não sabia que você tinha essa tara! Que gos­tava de mulher! Como você é indigna!

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