terça-feira, 22 de dezembro de 2009

CAPÍTULO CXI

Letícia sentiu morrer toda a euforia. Pergunta:
— Você tem nojo do meu amor?
Respondeu, hirta:
— Não chama isso de amor!
A outra perdeu a cabeça:
— Escuta, sua cretina, escuta! Você pensa que seu ma­rido, seu filho, seu amante gostam de você como eu? Queres que eu faça o quê? Queres uma prova? Eu te dou uma prova! Mas escuta!
Aperta o braço de Engraçadinha:
— Não vira o rosto! Não fecha os olhos! Olha pra mim, Engraçadinha! E não faz esse ar de nojo, não faz, Engraça­dinha! Eu não sou uma leprosa! Olha pra mim, anda! Não me desafie!
A boca cerrada, Engraçadinha escondia o rosto. Então, a outra a sacode pelos dois braços, com frenética energia: “Vira pra mim!” Parece morder as palavras:
— Eu tenho uma tara, e teu filho? Fala! E teu filho? Se a minha é tara, e teu filho?
Esganiçava a voz: “E teu filho?” Engraçadinha ergue, len­tamente, o rosto:
— Meu filho?
Tem um riso feroz:
— Teu filho, sim! Sujeito bonito, lindo! Podia ter todas as mulheres e não tem nenhuma, por quê? Responde! Olha pra mim e responde? É porque ele só pensa em ti, é?
Berra:
— Bruxa!
E a outra:
— É ou não é?
Engraçadinha cobre o rosto com a mão e chora. Sôfrega, a outra baixa a voz:
— Quero de ti um momento, um instante, e nada mais. Escuta, Engraçadinha! Um instante, apenas um instante. De­pois, te juro. Queres que eu te jure? Te juro que fujo, desa­pareço, vou viajar.
Engraçadinha pensa que Luís Cláudio também pedira um momento. (Ela vivera esse momento, por entre clarões selva­gens.) Letícia contrai a boca:
— Mas se você recusar. Se você me negar isso, eu vou, juro, vou agora, neste minuto, vou à Prolar e conto a teu filho. Digo a teu filho, escuta!
Agarra a prima:
— A meu filho, não!
— Digo a teu filho que tu tens um amante! Digo, juro! Vou à Prolar e digo! Ele vai saber, Engraçadinha!
Engraçadinha soluça:
— Se meu filho souber, ele morre! Ele se mata aos meus pés! Meu filho não resiste! Se meu marido souber, me perdoa! Meu filho, não! Durval não saberia perdoar. Olha, Letícia! Meu filho não pode saber! Meu marido perdoaria mil vezes, e meu filho, não!
Engraçadinha vai sentar-se na cama. Mergulha o rosto nas duas mãos. Contida, Letícia deixa passar um momento; fala, quase sem voz:
— Então, olha. Eu saio de tua vida, saio, se você fizer uma coisa. Eu fico de longe, olha: daqui. Fico daqui e você dali.
Apontava para o fundo do quarto. Continua respirando forte:
— E você tira a roupa. É um instante. Eu quero te ver nua, mas olha...
Recua:
— Pra quê?
Letícia tem a sensação de que a febre sobe para os ca­belos:
— Quero só ver e não te toco. Te olho de longe! Juro que fico de longe. Daqui. Só para olhar um pouquinho. Um minutinho, só. Se fizeres isso, escuta: teu filho estará salvo, teu filho não será destruído e eu partirei. Sim, Engraçadinha? E não é tara, é amor.
Pausa. Engraçadinha pensa: “Eu não tenho coragem de matá-la.” Ergue-se:
— Adeus.
Como uma louca, Letícia passa-lhe na frente. Coloca-se diante da porta. Fala, na sua ânsia:
— Então, mostra um seio. Pronto. Basta um seio. Eu olho, só. Um seio. Pelo menos isso! Só! Não custa, Engraça­dinha, olha: Você puxa um pouco o decote, abre um pouco o decote. Só. Eu te deixarei ir, juro!
Novo silêncio. E, então, Engraçadinha, sem desfitá-la, sobe com a mão até o peito. Puxa o decote. O seio salta. Letícia diz para si mesma: “Se eu pudesse beijar!” Sussurra, crispada:
— Seio de virgem.
Súbito, atira-se para a frente. Engraçadinha desprende-se, num movimento frenético e inesperado. Letícia está rouca: “Tira o vestido!” Engraçadinha corre, abre a porta e sai. Des­liza pelo corredor, rente à parede. Em vez de esperar o ele­vador, prefere a escada. Desce dois andares e só, então, pára. Encosta-se à parede e tem vontade de morrer. Ao abrir a porta, para escapar, ouvira Letícia:
— Teu filho vai saber!

*

Entrou numa bombonière. Pediu à mocinha da caixa (uma judia): “Dá licença de telefonar?” Disca para Luís Cláudio. Ele estava fora, em Brasília. Mas a simples tentativa era uma pequena delícia. Ia ouvir o telefone chamar, inutilmente. Teria uma breve e delirante esperança. E, depois, desligaria, sor­rindo, de passagem, para a judia (uma moça quase triste, de olhar perdidamente azul). O telefone chama e, súbito, aten­dem. Julga desfalecer de felicidade:
— Luís?
Era ele. Por um momento, Engraçadinha teve vontade de rir e de chorar. A voz morria no fundo do ser. Luís Cláudio dizia, febrilmente:
— Coração! Escuta! Que bom você ter telefonado! Não fui pra Brasília! Agora mesmo, eu ia sair pra Vaz Lobo. Está ouvindo? Ia procurar falar contigo de qualquer maneira!
Ria agora e chorava. (A moça da caixa virou-se com uma moderada curiosidade.)
— Meu bem, não estou ouvindo! Olha! Deixa passar o bonde. Repete. O que é que você disse? Ah, sim! Estou ou­vindo!

*

Não fora para Brasília. Apareceu no aeroporto, de blusa azul. E, lá, diante dos companheiros do Cerimonial, enfiou as duas mãos nos bolsos. Tinha um cigarro no canto da boca como um fadista. Anunciou, com um descaro total:
— Não vou.
Foi avidamente cercado. E, então, envolvido pelo Ceri­monial, explica, atirando fora o cigarro e apanhando outro:
— Não vou pelo seguinte. Vocês deixam eu falar? Pelo seguinte: eu estive pensando. O que é que eu tenho com a recepção do Eisenhower? O que é que eu tenho com o pró­prio Eisenhower?
Houve um apelo geral: “Não brinca! Fala sério!” Con­tinuou:
— Estou falando sério, seríssimo! Nunca falei tão sério! E, além disso, não uso mais colete preto!
O chefe o segurou pelo braço:
— Luís, vem cá! Está quase na hora e...
Foi taxativo:
— Não vou! Estou informado de que cada um de nós é depositário de uma alma imortal. E o colete preto ofende, irrita e humilha a minha eternidade. Portanto, Tchau, boa viagem!
Acenou com os dedos e já se afastava. Uns três correram:
— Vem cá.
Alguém pergunta:
— Escuta, Luís Cláudio. Você bebeu?
Pára, um momento:
— Nem água da bica. É um ponto de vista. Acho a mi­nha alma imortal incompatível com o Itamarati. E já contei pra todo o mundo. O Jorginho Guinle, a Norminha, já sabem. Não há Eisenhower que me obrigue a pôr colete preto.

*

O Nelsinho Sena Neto não resistiu. Apareceu, lá no Foro, levando o Oto Lara Resende. Queria fazer uma colheita de detalhes e no próprio local. O juiz era, digamos assim, um ser rútilo. Recebeu o Oto com um ‘olá’ triunfal do realizado. O Nelsinho, sequioso, olhava para as pilhas de processos e baixa a voz: “Foi mesmo em cima dos autos?” Confirmou, exage­rando a modéstia:
— Em cima dos autos!
Nelsinho cutuca o Oto Lara: “Toma nota, que o detalhe é digno de Miguel Ângelo!” Ainda o Nelsinho baixa a voz: “Tenho um questionário à Zola, para o Meritíssimo responder.” Dr. Odorico esfregava as mãos (o lábio tremia-lhe): “Às or­dens! Vamos ao questionário, vamos ao Zola!” Nelsinho per­gunta: “A dama ficou pelada?” O juiz faz um gesto que abrange todo o Foro:
— Peladinha. Peladinha e sabe como é. O melhor vocês não sabem. Eu me julgava muito mais velho. Mas correspondi, não decepcionei.
Vira-se para o Oto Lara: “Você se lembra que eu até quis fazer psicanálise?” Explica ao Nelsinho:
— O Oto teve uma piada muito boa. Fina. Disse que o psicanalista é ‘uma comadre bem paga’. Aliás, exploram muito. O Oto tem razão. A angústia pobre não tem vez. O barnabé não pode ser neurótico.
E essa obrigação, imposta ao analisado, de financiar lar­gamente a própria angústia, parecia ao juiz um lúgubre escân­dalo. Dr. Odorico ajunta:
— Afinal de contas, só os ladrões é que podem ter an­gústia. Mas quem rouba é um realizado. O larápio tem uma sanidade de passarinho.

*

Na Prolar, Durval estava falando com o Hilton. Quando deixa o outro, vê, no balcão, acenando, Letícia. Aproxima-se, de mão estendida:
— Como vai?
Ela olha em torno. Baixa a voz:
— Durval, você pode sair um momentinho? Preciso falar contigo um assunto de vida e de morte. É sobre Engraçadinha.

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