segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

CAPÍTULO CX

Engraçadinha ergueu-se tão rapidamente que derrubou a cadeira. Recuou diante do juiz:
— Odorico!
Com uma brutal dispnéia (a úlcera dava arrancos) o juiz estendia-lhe as duas mãos crispadas:
— Perdão!
Curva-se para apanhar a cadeira e já lhe parecia que ia ter um enfarte imediatamente. (Por mais curioso que pareça, desejou o enfarte como uma saída, como uma solução.) Es­tava indignado com o Nelsinho. Pôs toda a culpa, maciçamente, sobre o amigo. “O Nelsinho é maluco! Irresponsável!” Ao mes­mo tempo estava radiante com a própria audácia. Era o único e solitário atrevimento em toda a sua história de tímido, de frustrado. Engraçadinha, ofegante, erguia o rosto:
— Vou-me embora!
Na dor de perdê-la (não viveria sem esse amor) ia talvez atirar-se aos seus pés. Súbito, batem na porta. Engraçadinha, que já dera dois ou três passos, estaca. Descobre, só então, que estava trancada com o juiz. Pensa: “Onde é que eu ando com a minha cabeça?” Vira-se para o Dr. Odorico. Este aben­çoou um imprevisto que vinha distraí-los de um episódio into­lerável. Pôs o dedo na boca, pedindo silêncio. Do lado de fora, estavam dois repórteres, o Amado Ribeiro e o José Carlos Rego. Em seguida veio o Ariel Wainer. Amado insiste; e rosna para o José Carlos:
— Tem que ter alguém. Aquele cara disse que o Odorico já tinha chegado.
Batia de novo. José Carlos punha-se de cócoras e espiava no buraco da fechadura. Levanta-se, de olho rútilo: “Mulher, rapaz!” O Amado foi de uma cumplicidade gratuita e esplên­dida:
— Se é mulher, vamos fazer a pista. O homem está nas últimas e deve aproveitar.
Ariel fazia um discreto escândalo: “Mas aqui?” Descendo as escadas, o Amado Ribeiro fala alto:
— A cama é um preconceito!

*

Sem rumor, Dr. Odorico aproxima-se da porta. Percebe que os outros se afastam. Volta, então. Engraçadinha senta-se e começa a chorar. Por um momento, o juiz não sabe o que dizer e o que fazer. Vê, em silêncio, que ela abre a bolsa e apanha o lencinho. Naquela ocasião (ou em qualquer outra) tudo o que Engraçadinha fizesse ele acharia perfeito e irretocável. O gesto da bem-amada, assoando-se ligeiramente, pareceu-lhe de um prosaísmo inefável. Súbito, lembra-se dos conselhos do Nel­sinho: “A mulher paga pra ter pena!” Segundo o rapaz, muitas começam pela piedade e acabam no erotismo mais deslavado. Curva-se para Engraçadinha e arqueja:
— Ontem, eu fui agredido pelo seu filho!
Deu-lhe a notícia e espiou o efeito. Engraçadinha ergue o rosto, vivamente:
— Agredido?
Notou o impacto e, impulsivamente, tratou de tirar par­tido. Exagerou ou por outra: nem precisou exagerar. O sim­ples fato era em si mesmo ignominioso. Perguntava: “Mas Dur­val?” O juiz comoveu-se a valer:
— Seu filho! Eu que, afinal de contas, podia ser pai, ou avô. Avô, não digo. Pai. E na minha idade, Engraçadinha! Pela primeira vez, eu chorei! Não me pejo de dizer que...
Na hora de falar ‘pejo’ ia pronunciando péjo. Fazendo voltas em torno da cadeira da bem-amada, queria chorar outra vez:
— Eu podia, sim, podia! Podia requisitar força policial. Mas claro que sendo seu filho, nunca! E escuta: se eu cha­masse a Polícia, você já imaginou? Lá batem, Engraçadinha. O sujeito que apanha na Polícia quando sai é um trapo, deixou de ser homem e... Eu não faria isso com seu filho!
Pausa. Arqueja: “Compreende por que eu a beijei?” En­graçadinha baixa a cabeça, põe a mão na boca, para não re­bentar em soluços. Ele agora já não praguejava mais contra o Nelsinho. Pelo contrário: queria acreditar que, em matéria de psicologia feminina, o rapaz tinha um clarividente métier. Nel­sinho ensinara: “Qualquer mulher é suburbana. A grã-fina mais besta é chorona como uma moradora do Encantado e Del Cas­tilho.” Todos os pudores do juiz sumiram na voragem de uma confissão total:
— A vida não tem sido boa comigo! Tenho sofrido o diabo! E vou te dizer uma coisa. Olha, Engraçadinha: eu nasci em Mimoso do Sul, que ninguém conhece. E minha mãe não era casada, entende? Não era casada!
Tiritava como que acometido de febre palustre. Percebia, no olhar de Engraçadinha, uma doçura nova e linda. Disse, num arranco:
— Meu êxito é uma ilusão. Qualquer êxito é uma ilusão. O êxito só faz Pedros Calmon. E o único problema da vida é não ser Pedro Calmon. Eu daria tudo, agora, já, para ter um beijo, um beijo não roubado, um beijo, Engraçadinha, e não roubado!
Chorava. Gostaria de dizer ainda: “Fracassei como juiz também. Eu queria ser como o Aguiar Dias que não tem medo de nada. O Aguiar Dias dá murros em faca de ponta. Ser juiz é dar murros em faca de ponta!” Todavia, calou-se. Puxou uma cadeira e, ofegante, põe a mão em cima da úlcera. Engra­çadinha olhava para o juiz com uma curiosidade nova. Ele pró­prio estava espantadíssimo consigo mesmo. (Era a primeira vez em que, em toda a sua vida, repudiava o êxito.) Olhavam-se em silêncio.
E, então, Engraçadinha levanta-se. Aproxima-se. A prin­cípio, ele chegou a pensar numa agressão. Ela inclina-se e pergunta:
— É tão importante assim um beijo dado e não roubado?
Geme:
— Engraçadinha!
Com uma feminina delicadeza, apanha o rosto do juiz en­tre as mãos. Beija-o numa face e, depois, na outra. Suspira:
— Adeus.
Sai lentamente, sem se voltar. Durante uns dez, quinze minutos, Dr. Odorico não sai do lugar. Dir-se-ia que desabara, sobre ele, um edifício, com todos os andares. Por fim, levan­ta-se. Fora de si, atira-se para o telefone e liga para o Nelsinho. Despejou tudo:
— Você é um gênio! Um gênio!
— Funcionou tudo direitinho? E foi mesmo em cima dos processos?
Explicou:
— Não chegou a tanto ou por outra. O caso é que fiz a choradeira e...
Nelsinho exultava: “Mulher é dos extremos! Tanto gosta do Napoleão como do vira-latas!” Dr. Odorico reconhecia, numa vaidade triunfal:
— Eu sou o vira-latas!

*

Amado Ribeiro invade o escritório do advogado Phocion como um gangster.
— Vamos conversar, Phocion!
Meio assustado, pigarreia:
— Senta, Amado! E como vai essa figura?
Amado puxa a cadeira e baixa a voz: “Manda a tua dati­lógrafa sair, manda, que eu vou dizer uns palavrões!” Phocion balbucia: “Sair, por quê?” Começa: “Deve haver algum mal-entendido!...” O colarinho duro (que ele abomina) começa a asfixiá-lo. Vira-se para a menina:
— D. Mirtes, dá uma voltinha, dá, que eu tenho aqui um assunto que...
A datilógrafa levanta-se e abandona a sala. Há na sua blusa uma palpitação forte de seios. Amado entrou, como ele próprio diria mais tarde, ‘de sola’:
— Escuta, Phocion! Eu sabia que você era um sujo, mas você está batendo todos os recordes! Te viram, ontem. Escuta, Phocion: te viram, ontem, num big carro, com a mãe do Cadelão! Você está querendo levar dos dois lados, mas olha!
Phocion passa o lenço na nuca e, em seguida, por todo o rosto:
— Calminha, Amado, calminha e escuta: eu ia te telefo­nar. De fato, eu estive...
O outro interrompe, brutalmente: “Faço a tua caveira!” Phocion abre os braços:
— Não é nada disso! Deixa eu falar!
Levantou-se e foi fechar a porta. Voltou e recomeça:
— Amado, vamos pôr as cartas na mesa. Você é vivo e eu sou vivo. Dois bicudos não se beijam. Escuta, Amado, es­cuta! Estive, sim, com a mãe do Cadelão. É a melhor mulher do mundo. E surgiu um negócio que pode dar muito dinheiro. Estás ouvindo? Como precisamos de cobertura jornalística, você leva o teu, entende?
Justificou-se: “Não sou o primeiro advogado que...” In­siste: “Continuo com o Leleco, como o principal advogado do Leleco, mas sabe como é.” Amado levantou-se:
— Phocion, toma nota: não há de ser um marmanjo como você que vai me comprar. Eu só me vendo a mulher e por carinho. Isso é uma. Outra: estou dando em cima de uma irmã, prima ou coisa que o valha do Leleco. Não posso me sujar perante a família.
O outro pedia pelo amor de Deus: “Não se exalte!” Amado disse o resto:
— Das duas uma: ou você banca o honesto pela primeira vez na vida ou eu liquido você em três tempos!

*

Dr. Odorico dirige-se ao balcão:
— Eu queria falar com o seu Medina.
— Ainda não veio. Só com ele?
— O gerente, por obséquio.
O juiz seguiu o caixeiro. Vivia o seu grande momento. Conseguira dois beijos, um roubado e outro dado. Não precisara nenhuma pastilha. E na sua idade e com os imprevistos da sua idade havia no beijo a segurança ideal. O Nelsinho era um gênio!
O gerente inclina-se diante do Dr. Odorico: “Às suas or­dens.” E o juiz, com o ser iluminado:
— Eu comprei, há dias, uma geladeira, aqui. Queria pa­gar três prestações. O senhor quer ver pra mim? Odorico Quin­tela. Eu sou o juiz Odorico Quintela. Juiz, perfeitamente.

*

A própria Letícia abriu a porta:
— Entra, entra!
Engraçadinha passa. Ficam em pé, um momento, caladas. Letícia disse, com súbito fervor:
— Oh, querida!
Fugiu com o corpo:
— Não me toque!

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