sábado, 10 de abril de 2010

Dorotéia - PRIMEIRO ATO

DOROTÉIA
(FARSA IRRESPONSÁVEL EM TRÊS ATOS)
NELSON RODRIGUES
(1949)



PERSONAGENS
D. FLÁVIA
DOROTÉIA
CARMELITA
MAURA
D. ASSUNTA DA ABADIA
DAS DORES



PRIMEIRO ATO

(CASA DAS TRÊS VIÚVAS – D. FLÁVIA, CARMELITA E MAURA. TODAS DE LUTO, NUM VESTIDO LONGO E CASTÍSSIMO, QUE ESCONDE QUALQUER CURVA FEMININA. DE ROSTO ERGUIDO, HIERÁTICAS, CONSERVAM-SE EM OBSTINADA VIGÍLIA, ATRAVÉS DOS ANOS. CADA UMA DAS TRÊS JAMAIS DORMIU, PARA JAMAIS SONHAR. SABEM QUE, NO SONHO, ROMPEM VOLÚPIAS SECRETAS E ABOMINÁVEIS. AO FUNDO, TAMBÉM DE PÉ, A ADOLESCENTE MARIA DAS DORES, A QUEM CHAMA, POR COSTUME, DE ABREVIAÇÃO, DAS DORES, D. FLÁVIA, CARMELITA E MAURA SÃO PRIMAS. BATEM NA PORTA. SOBRESSALTO DAS VIÚVAS. D. FLAVIA VAI ATENDER; AS TRÊS MULHERES E DAS DORES USAM MÁSCARAS.)



D. FLÁVIA



- Quem é?



DOROTÉIA



- Parente.



D. FLÁVIA



- Mas parente tem nome!



DOROTÉIA



- Dorotéia!



(COCHICHAM MAURA E CARMELITA)



CARMELITA



- Dorotéia não é uma que morreu?



MAURA (num sopro)



- Morreu...



CARMELITA



- E afogada, não foi?



MAURA



- Afogada. (lenta, espantada) Matou-se...



DOROTÉIA (em pânico)



- Abram! Pelo amor de Deus, abram!



D. FLÁVIA (rápida)



- Teve a náusea?



DOROTÉIA



- Não ouvi...



D. FLÁVIA (calcando bem as sílabas)



- Teve a náusea?



(SILÊNCIO DE DOROTÉIA)



MAURA (para Carmelita)



- Não responde!



CARMELITA



- Ih!



D. FLÁVIA



- Se é da família...



DOROTÉIA (sôfrega)



- Sou!...



D. FLÁVIA



- ... deve saber, tem que saber!



DOROTÉIA



- Tive sim, tive!



(RÁPIDA D. FLÁVIA ESCANCARA A PORTA. MAURA E CARMELITA ABREM, A TÍTULO DE VERGONHA, UM LEQUE DE PAPEL MULTICOR. DOROTÉIA ENTRA, COM EXPRESSÃO DE MEDO. É A ÚNICA DAS MULHERES EM CENA QUE NÃO USA MÁSCARA. ROSTO BELO E NU. VESTE-SE DE VERMELHO, COMO AS PROFISSIONAIS DO AMOR, NO PRINCÍPIO DO SÉCULO.)







DOROTÉIA (ofegante)



- Oh! Graças, graças!



MAURA (com o rosto protegido pelo leque)



- Será mesmo Dorotéia?



CARMELITA (protegida pelo leque)



- Será mesmo Dorotéia?



CARMELITA (protegida pelo leque)



- Que o quê!



MAURA



- Claro... Dorotéia morreu...



D. FLÁVIA (para Dorotéia)



- Mentirosa! Sua mentirosa! Não é Dorotéia!



DOROTÉIA



- Sou!



D. FLÁVIA (em pânico)



- Não! Juro que não!







MAURA (a Carmelita)



- Vamos espiar!



(AS DUAS SOBEM NUMA CADEIRA, ESTIRAM O PESCOÇO E OLHAM POR CIMA DO LEQUE. AGORA D. FLÁVIA E AS PRIMAS, UNIDAS EM GRUPO, RECUAM PARA A OUTRA EXTREMIDADE DO PALCO, COMO SE A RECÉM-CHEGADA FOSSE UM FANTASMA HEDIONDO; AGACHAM-SE SOB A PROTEÇÃO DOS LEQUES. E SEGREDAM, DE ROSTO VOLTADO PARA A PLATÉIA.)



MAURA



- Não é, não!



CARMELITA



- Nunca foi!



(DOROTÉIA APROXIMA-SE DO GRUPO. FICA DE PÉ, DE FRENTE PARA A PLATÉIA)



D. FLÁVIA



- Já sei... Nossa família tinha duas mulheres com esse nome... uma que morreu e a outra que largou tudo, deixou a casa...



MAURA (Em desespero)



- Desviou-se!



DOROTÉIA



- Não...Não...



(D. FLÁVIA ERGUEU-SE. FALA A DOROTÉIA POR CIMA DO LEQUE)



D. FLÁVIA



- Você é a Dorotéia ruim... a que se desviou...



DOROTÉIA



- Eu não!... Sempre tive bom proceder... Nunca fiz vergonha... E garanto que só um homem tocou em mim...



D. FLÁVIA



- Só um?



CARMELITA (a Maura, rápido e baixo)



- Mentira!



DOROTÉIA



- Só um... o senhor meu marido...



MAURA (baixo e rápido para Carmelita)



- É falsa...







D. FLÁVIA



- Pensas que eu não soube?



(DOROTÉIA RECUA, ASSUSTADA)



DOROTÉIA



- De quê?



D. FLÁVIA (num grito)



- De tudo!... Soube de tudo... (baixo) uma pessoa me contou...



DOROTÉIA



- Que pessoa?



D. FLÁVIA



- Não me lembro, nem precisa... Sabemos de tudo que acontece com parente... Quando alguém na família morre ou dá um mau passo, recebemos a notícia imediatamente... Não mesma hora, no mesmo instante... Ninguém precisa dizer... É como se a voz fosse, de porta em porta, anunciando... e um dia nós estávamos na mesa...



MAURA



- Foi, sim foi!







D. FLÁVIA



- A toalha era de linho... Eu acabara de dizer a oração, que as outras repetiram... De repente, a voz anunciou: Uma Dorotéia morreu... (baixa a voz, espantada) Outra perdeu-se...



DOROTÉIA (num grito)



- Não!



CARMELITA (com angústia)



- Eu me lembro!



(AS VIÚVAS AVANÇAM E DOROTÉIA RECUA.)



D. FLÁVIA



- Foi assim que eu soube que tu deixaras de ser como nós... (rápida para as primas) Virei-me para vocês e dei a notícia...



CARMELITA (num sopro)



- Deu a notícia, sim, deu!



D. FLÁVIA



- Depois, nós três... ou minto?...



AS DUAS



- Que o quê!



D. FLÁVIA



- ...nós três tivemos uma visão... Ficamos assim mesmo, unidas como agora... Os três rostos juntos...



(JUNTAM OS ROSTOS)



D. FLÁVIA



- E foi como se estivéssemos vendo... Uma rua de muitas janelas acesas... (os três todos juntos) E você mesma numa janela acesa... Passos de homem na calçada... Olhos de homens por toda parte... Não foi?



AS DUAS



- Foi...



DOROTÉIA (desesperada)



- Essa não era eu... Era a outra – a Dorotéia que se afogou... Foi lavar seus pecados ao banho do rio... Eu, não... eu me casei!



MAURA (a Carmelita)



- Será?



CARMELITA



- Não vê logo?







DOROTÉIA



- Eu sabia o que aconteceu com a nossa bisavó... Sabia que ela amou um homem e se casou com outro... No dia do casamento...



D. FLÁVIA



- Noite.



DOROTÉIA



- Desculpe. Noite... Na noite do casamento, nossa bisavó teve a náusea... (desesperada) do amor, do homem!



D. FLÁVIA (num grito)



- Do homem!



DOROTÉIA (baixo)



- Desde então há uma fatalidade na família: a náusea de uma mulher passa a outra mulher, assim como o som passa de um grito a outro grito... Todas nós – eu também! A recebemos na noite do casamento...



D. FLÁVIA (feroz)



- Menos você!



MAURA (a Carmelita)



- Ela não!







DOROTÉIA (gritando)



- E se eu jurar, como jurei? Se der minha palavra de honra? (novamente em tom informativo) Tive a náusea e acontece uma coisa interessante... Meu marido estava junto de mim e vivo e eu...



D. FLÁVIA (feros)



- Nem mais uma palavra!



DOROTÉIA (acovardada)



- Mas que foi que houve? Que foi?



D. FLÁVIA



- O que ias contar era mentira, tudo mentira... isso aconteceu, não contigo, mas com as outras mulheres da família... Com a Dorotéia que morreu... com Maura e Carmelita... (grave e lenta) e comigo... Te conto a minha primeira noite e única... As mulheres de nossa família têm um defeito visual que as impede de ver homem... (frenética) E aquela que não tiver esse defeito será para sempre maldita... e terá todas as insônias... (novo tom) Nós nos casamos com um marido invisível... (violenta) Invisível ele, invisível o pijama, os pés, os chinelos... (Apenas informativa) É assim desde que nossa bisavó teve a sua indisposição na noite de núpcias...



DOROTÉIA



- Eu sei!







D. FLÁVIA (abstrata)



- Minha primeira noite foi igual à de Maura e de Carmelita...



AS DUAS



- Igualzinha!



DOROTÉIA



- Concordo.



D. FLÁVIA (em crescendo)



- Assim como será igual a primeira noite de minha filha, que se casa amanhã... Ela está ali, à espera de um noivo que não viu nunca e que não verá jamais... (veemente) Pois eu te contarei a noite de amor de minha filha, nos últimos detalhes... (doce) É como se eu não já estivesse vendo... o noivo invisível a levará nos braços ... lhe fará carinhos...



MAURA E CARMELITA (doces)



- Carinho...



D. FLÁVIA (num repente feroz)



- E, de repente, a náusea baixará sobre minha filha... O noivo estará a seu lado, invisível, mas vivo... E será como se fosse apodrecendo.. Ele e, assim, seus gestos, suas carícias, seus cabelos e o cordão de ouro do pescoço... O próprio pijama há de se decompor (lenta) com a máxima naturalidade... (para Dorotéia) ouviste?



DOROTÉIA (num fio de voz)



- Sim...!



D. FLÁVIA



- Tudo isso acontecerá com minha filha, como aconteceu comigo...



AS DUAS



- E conosco também...



DOROTÉIA



- E comigo...



AS TRÊS (num grito)



- Menos contigo!



DOROTÉIA (chorando)



- E se eu jurar?



D. FLÁVIA



- Não acreditaria... ÉS doce demais... (sem transição, violenta) Tiveste um filho!



DOROTÉIA



- Morreu, o anjinho!







D. FLÁVIA (desesperada)



- E nem ao menos foi uma menina... (apavorada, para as primas) Teve filho homem!



(EM CONSEQÜÊNCIA DA REVELAÇÃO AS TRÊS VIÚVAS TÊM UMA CRISE DE PUDER: ESCONDEM OS ROSTOS DETRÁS DO LEQUE.)



DOROTÉIA



- Não tive culpa... Até que eu queria um menina...



D. FLÁVIA



- Juras por ele?...



DOROTÉIA (com medo)



- Pelo meu filho?



D. FLÁVIA (cruel)



- Por esse filho, a quem chamaste anjinho...



DOROTÉIA



- Não, não!... Pelo meu filho não posso!



D. FLÁVIA



- Juras por ele que não tens liga com monograma... combinação cor-de-rosa, guarnecida de renda preta...



DOROTÉIA (em pânico)



- Não! Não!



D. FLÁVIA (implacável)



- jura que não moraste num quarto... Parece que eu estou vendo esse quarto.. Havia um guarda-vestidos com espelho... (para as primas, crispando-se) Detrás desse guarda-vestidos uma bacia e (lenta) um jarro...



(NOVA MANIFESTAÇÃO DE PUDOR DAS VIÚVAS: ESCONDEM OS ROSTOS SOB A PROTEÇÃO DO LEQUE.)



DOROTÉIA (dolorosa)



- O jarro!



D. FLÁVIA (violenta)



- Jura, agora, neste momento, pela memória do teu filho!... Tu o viste no caixão... (subitamente doce) Num caixão forrado de seda branca...



DOROTÉIA



- Sim, de seda branca.. (muda de tom) Me disse um conhecido meu que essa era a cor dos anjos e das virgens...



D. FLÁVIA (feroz)



- Jura, na minha frente, de olhos fechados...







DOROTÉIA (soluçando)



- Pelo meu filho não posso.



CARMELITA (a Maura)



- Então mentiu!



D. FLÁVIA (doce e cruel)



- Confessa... Confessa...



DOROTÉIA (chorando)



- Menti, sim! É mentira, tudo mentira!



D. FLÁVIA (numa curiosidade abominável)



- Teu quarto era assim? como eu disse? E tinha jarro?



DOROTÉIA



- Assim... (como uma sonâmbula) Uma separação de madeira... O guarda-vestidos... (num grito) E tinha, sim, tinha o aro!



D. FLÁVIA (sonhadora)



- Quantas vezes teu quarto me aparecia em visão... Como se eu estivesse vendo e ouvindo ... Ouvindo o rumor da água...



CARMELITA (acesa em curiosidade, para Maura) (Baixo)



- Escuta! Escuta!



DOROTÉIA (doce)



- Apareci nas janelas... muitas janelas acesas... e tinha muitas combinações cor-de-rosa, azul, algumas bem bonitas... (com desespero) Mas a minha desgraça maior foi a seguinte...



D. FLÁVIA



- Qual?



DOROTÉIA (continuando)



- Não tive o defeito de visão que as outras mulheres da família têm... (segreda) Eu era garotinha e via os meninos... Mentia que não, mas via... E maiorzinha, também via os homens...



MAURA



- Amaldiçoada desde criança!



DOROTÉIA



- Comecei, então, a pensar: “Se me caso não vou ter a náusea”... Fiquei com essa idéia na cabeça, me atormentando... Não dormia direito e estava emagrecendo... Comecei a ficar acho que meio doida... ouvia vozes me chamando para a perdição, me aconselhando a perdição...



D. FLÁVIA (rápida, completando)



- Fugiste com o índio...







DOROTÉIA



- Não era índio... Parecia índio, de tão moreno... Mas era paraguaio... Mas também pouco demorou... Teve uma febre que nenhum doutor deu jeito... Foi quando aluguei o tal quarto, a conselho de uma vizinha de muita experiência...



D. FLÁVIA (frenética)



- E a náusea?



DOROTÉIA (sem ouvi-la)



- Comecei a me dar com soldados, embarcadiços e fiquei muito amiguinha de um rapaz que trabalhava em jóias... Porém minha preferência maior era para senhores de mais idade...



D. FLÁVIA (para as primas)



- Estão ouvindo?



DOROTÉIA (sonhadora)



- Tive uma pessoa que me trouxe, do Norte, uma toalha de renda, muito bonita, que eu não quis vender...



D. FLÁVIA (gritando)



- Leva tua história daqui... Afoga tua história no mar...



DOROTÉIA (sem ouvi-la)



- Pois foi essa pessoa o pai de meu filho... Ele estava em viagem quando



dei à luz; acho que nem soube... Então, eu disse: “Quero tudo de bom e do melhor para meu filho.” A começar por colégio caro... outra coisa...que fiz questão: “Que meu filho não saiba nunca a mãe que tem”... Um dia falei a um senhor que me visava uma vez por semana... Perguntei-lhe se conhecia um bom colégio.. Ele me indicou um que disse ser ótimo...



D. FLÁVIA



- E a morte do teu filho?



CARMELITA (escandalizada, para Maura)



- Ela não conta a morte do filho!



DOROTÉIA (num crescendo de angústia)



- Meu filho estava no braço da ama e era sujeito a convulsões. “Doutor), disse eu ao médico. “sare meu filho!” Querendo salvar o anjinho aleguei que não fazia questão de conta. O doutor me olhou muito – meu filho estava ao lado com febre... Respirava cansado, assim... Olhos fechadinhos, fechadinhos... Pois o doutor me olhava, sem dizer nada, até que falou baixo: “Não é o seu dinheiro que eu quero”, disse. Veio para mim com seus olhos de fogo. Também disse outra coisa – que eu reconhecesse a minha profissão...



D. FLÁVIA (triunfante)



- Eu te conto o resto, mulher ruim!



DOROTÉIA (apavorada e soluçando)



- Não! Não!



D. FLÁVIA (em crescendo)



- Quando espiaste, de novo, teu filho estava morto!



DOROTÉIA (chorando)



- Pois é...



(DOROTÉIA AVANÇA, DESESPERADA, ATÉ À BOCA DE CENA.)



DOROTÉIA (de um lado para outro)



- Estava morto... (feroz) meu filho estava morto!



D. FLÁVIA (exultante)



- E tu o enterraste!



DOROTÉIA (feroz)



- Nunca!... (crispando as mãos, na altura do peito) Eu não enterraria um filho meu... Um filho nascido de mim... (doce) Enterrar, só porque morreu?... Não, isso não... (muda de tom) Vesti nele uma camisolinha de seda, toda bordada a mão, comprei três maços de vela... Quando acabava uma vela, acendia outra... antes, tinha fechado tudo... Fiquei velando, não sei quantos dias, não sei quantas noites... Até que bateram na porta... Tinham feito reclamação, porque não se podia suportar o cheiro que havia na casa... (feroz) Mas eu juro, dou minha palavra de mãe, que o cheiro vinha de outro quarto, não sei. De lá, não... (muda de tom) E sabe quem foi fazer a denúncia? Uma vizinha, que não se dava comigo... (doce) Levaram o anjinho. (agressiva) Mas tiveram que me amarrar, senão eu não deixava...



D. FLÁVIA (vingativa)



- Tudo porque não tiveste a náusea de família!



MAURA



- Bem feito!



CARMELITA



- Claro!



DOROTÉIA (ofegante)



- Fiquei com ódio de mim, de tudo! E mais ainda da vida que levava... Quis quebrar os móveis... Ia jogar, pela janela, o jarro! Partir o espelho do guarda-vestidos... Mas a senhorinha me convenceu que não... Disse que o guarda-vestidos ainda não estava pago... (para as outras, baixando a voz) Então...



D. FLÁVIA (baixo)



- O quê?...



DOROTÉIA (ofegante)



- Então eu pensei na minha família... Em vós... Jurei que havia de ser uma senhora de bom conceito... E aqui estou...



(AS VIÚVAS UNEM-SE EM GRUPO. ESTÃO NA DEFENSIVA CONTRA INTRUSA.)



D. FLÁVIA



- Esta casa não te interessa... Aqui não entra homem há vinte anos...



DOROTÉIA



- Sempre sonhei com um lugar assim...Quantas vezes em meu quarto...



D. FLÁVIA (num crescendo)



- Só falas em quarto! Em sala nunca! (aproxima-se de Dorotéia que recua) Aqui não temos quartos!



(A PALAVRA QUARTO OBRIGA A VIÚVAS A COBRIREM-SE COM O LEQUE, EM DEFESA DO PRÓPRIO PUDOR.)



D. FLÁVIA (dogmática) (sinistra e ameaçadora)



- Porque é no quarto que a carne e alma se perdem!... Esta casa só tem salas e nenhum quarto, nenhum leito... Só nos deitamos no chão frio do assoalho...



CARMELITA (sob a proteção do leque)



- E nem dormimos...



MAURA (num lamento)



- Nunca dormimos...







D. FLÁVIA (dolorosa)



- Velamos sempre... Para que a alma e a carne não sonhem...



DOROTÉIA (em desespero)



- Deixai-me ficar ou me perco!... Por tudo, peço... Tendes uma filha... E direi, em sinal de agradecimento, direi (vacila ) que vossa filha, Das Dores, (com admiração) é linda!



D. FLÁVIA (vociferante)



- Não blasfemes, mulher vadia!... (acusadora) Linda és tu!



(MAURA E CARMELITA APROXIMAM-SE PARA LANÇAR, À FACE DE DOROTÉIA, A INJÚRIA SUPREMA)



AS DUAS (como se cuspissem)



- Linda!



D. FLÁVIA (ampliando a ofensa)



- E és doce... Amorosa... e triste! Tens tudo que não presta. (ofegante) Minha filha, nunca! (lenta e sinistra) Nós somos feias...



DOROTÉIA (fora de si)



- Mas eu não sabia... Não podia imaginar...







D. FLÁVIA (crescendo)



- As mulheres de nossa família não têm quadris, nem querem... (desesperada) E olha as nossas mãos que não acariciam...



(NUM MOVIMENTO ÚNICO, AS VIÚVAS ERGUEM AS MÃOS CRISPADAS)



D. FLÁVIA (rosto a rosto com Dorotéia)



- Sabes tu por que se afogou a outra Dorotéia?



DOROTÉIA (num sopro)



- Não...



(AS VIÚVAS ESTÃO EM GRUPO CERRADO E FALAM ENTRE SI.)



MAURA



- Conta!



D. FLÁVIA (doce)



- Repito todos os dias essa história, na mesa, como se fosse, não uma história, mas uma oração...



(RÁPIDA E AGRESSIVA VIRA-SE PARA DOROTÉIA. MAURA E CARMELITA COLOCAM-SE SOB A PROTEÇÃO DO LEQUE.)



D. FLÁVIA (frenética)



- A outra Dorotéia se afogou de ódio, de dor... Ela não podia viver sabendo que por dentro do vestido estava seu corpo nu...



MAURA E CARMELITA (apavoradas)



- Despido!



(NOVA E CATEGÓRICA MANIFESTAÇÃO DE PUDOR.)



D. FLÁVIA



- É também esta a nossa vergonha eterna!... (baixo) Saber que temos um corpo nu debaixo da roupa... Mas seco, felizmente, magro... E o corpo tão seco e tão magro que não sei como há nele sangue, como há nele vida... (gritando) Que vens fazer nesta casa sem homens, nesta casa sem quartos, só de salas, nesta casa de viúvas? (exultante) Procura por toda parte, procura debaixo das coisas, procura, anda, e não encontrarás uma fronha com iniciais, um lençol, um jarro!



DOROTÉIA



- Acredito... Acredito... mas escutai-me... ajoelhei diante da memória do meu filho e, então, jurei que homem nenhum havia de tocar nessa! (espeta o dedo no próprio peito) Em mim, não!... Porém preciso de vossa ajuda... Para ser como vós e uma de vós... Não ter quadris e, conforme possa, um buraco no lugar de cada vista... (exaltando-se) perdoai-me, Das Dores, se vos chamei de linda! (desesperada) Eu queira ser como a outra Dorotéia, que se afogou no rio... (baixo e sinistra) Se duvidardes, eu me afogarei no rio...



D. FLÁVIA



- Não!



DOROTÉIA (eufórica)



- ... me matarei...



D. FLÁVIA



- Não, mulher miserável! Em nossa família, nenhuma mulher pode morrer antes de náusea... É preciso, primeiro, sentir a náusea... E aquela que perecer antes, morre em pecado e paixão... (lenta) nem terá sossego na sua treva.. Não podes morrer ainda, talvez não possas morrer nunca...



DOROTÉIA (apavorada)



- Nunca?



D. FLÁVIA (baixa, apontando das Dores)



- Vês?



DOROTÉIA (num sopro)



- Das Dores?



D. FLÁVIA



- Sim, Das Dores... Quando Das Dores se gerava em mim, tive um susto... Eu estava no quinto mês...







MAURA (para Dorotéia)



- Foi , sim!...



D. FLÁVIA



- E, com susto, Das Dores nasceu de cinco meses e morta...



AS DUAS (choramingando)



- Roxinha...



D. FLÁVIA (também com voz de choro)



- Mas eu não comuniquei nada à minha filha, nem devia...



AS DUAS (choramingando)



- Claro!



D. FLÁVIA



- Sim, porque eu podia ter dito “Minha filha, infelizmente você nasceu morta” etc. etc. (patética) Mas não era direito dar esta informação... Seria pecado enterrá-la sem ter conhecido o nosso enjôo nupcial... (tom moderado) De forma que Das Dores foi crescendo... Pôde crescer, não ignorância da própria morte... (ao ouvido de Dorotéia) Pensa que vive, pensa que existe... (formalizando-se e com extrema naturalidade) E ajuda nos pequenos serviços da casa.



DOROTÉIA (olhando na direção de Das Dores)



- Morta...



D. FLÁVIA (agressiva)



- Tu ousarias morrer antes? Te deixarias enterrar sem cumprir tua obrigação?



MAURA (rosto a rosto, com Dorotéia)



- Linda!



DOROTÉIA



- Deixai-me ficar...



CARMELITA



- Não!



DOROTÉIA



- Deixai-me ser uma de vós...



CARMELITA



- Não!



DOROTÉIA



- Preciso de vosso auxílio (olha apavorada, para os lados) antes que ele apareça... Porque se ele aparecer – será tarde demais...



D. FLÁVIA



- Quem?



DOROTÉIA (cochichando para as três)



- No meu quarto havia um jarro...



D. FLÁVIA



- Jarro...



DOROTÉIA



- Depois que meu filho morreu, não tenho tido mais sossego... O JARRO ME PERSEGUE... Anda atrás de mim... não que seja feio... Até que é bonito... De louça, com flores desenhadas em relevo... E inteligente, muito inteligente... (de novo olha para os lados) (com exasperação) Quando um homem qualquer vai entrar na minha vida eu o vejo... direitinho... (baixa a voz) Sei, então, que não adiantará resistir... Que não terei remédio senão agir levianamente... (com terror) É isso que eu não quero... (feroz) Depois que meu filho morreu, não! (suplicante) Porém, se me expulsardes, ou se demorardes numa solução (terror) o jarro aparecerá...



D. FLÁVIA



- Não faz mal!



DOROTÉIA (estende as mãos)



- Pela vossa filha que se casa amanhã!



D. FLÁVIA



- Não!



DOROTÉIA



- A única família que eu tenho é a vossa... (doce) Acho lindo ter parente... dizer, por exemplo, “minha prima”, “minha tia”... (desesperadamente) E o juramento que fiz ao meu filho, não vale nada?



D. FLÁVIA



- Vai! E que o jarro te apareça no meio da noite!



(DOROTÉIA CAMINHA NA DIREÇÃO DAS PRIMAS. ESTAS RECUAM)



D. FLÁVIA



- Fala, mas de longe.



MAURA



- Não queremos sentir teu hálito...



CARMELITA



- Teu hálito é bom demais para uma mulher honesta!



(AGORA AS VIÚVAS AVANÇAM PARA DOROTÉIA QUE RETROCEDE, ESPANTADA.)



DOROTÉIA (num sopro)



- Vocês estão me olhando caladas... Espiam para mim como se pensassem num crime... Num crime como um, que eu soube. . . Esganaram uma



mulher... E o criminoso nunca souberam quem foi...



D. FLÁVIA



- Crime?



DOROTÉIA



- Vocês três poderiam também esganar uma mulher... E esta mulher seria eu...



AS TRÊS (entre si)



- Nós poderíamos, nós...



(SEM UMA PALAVRA MAIS, AS VIÚVAS ABREM AS MÃOS COMO SE FOSSEM DE FATO, ESTRANGULAR DOROTÉIA)



DOROTÉIA



- ... ninguém descobriria, ninguém saberia nunca... Mas eu ainda não posso morrer... Ainda não tive a indisposição de que falais... Seria pecado a minha morte...



(DOROTÉIA CAI DE JOELHOS, ENQUANTO AS VIÚVAS CONTINUAM MUDAS E DE MÃOS ABERTAS.)



DOROTÉIA (ofegante)



- Se ao menos, uma de vós falasse. . . Ou gritasse . . . Eu preferia até um



grito a esse vosso silêncio...



D. FLÁVIA



- Tu és falsa... E mentes... Só sabes mentir...



DOROTÉIA



- Não minto... Não menti nunca... Quer dizer, mentia antes... Mas não quero mentir mais... Só direi a verdade...Se me perdoares, vos contarei um segredo... Um segredo que não diria a ninguém... Ia morrer comigo... Contarei a vós, se me perdoares...



D. FLÁVIA



- Fala, então...



DOROTÉIA



- Eu disse, não disse? Que o cheiro esquisito não vinha do quarto de meu filho... Jurei que fora intriga de uma vizinha, que se indispôs comigo... (num grito) Pois eu menti!... Vinha mesmo do nosso quarto... Eram mesmo daquele anjinho... (num soluço) Era dele...



D. FLÁVIA



- Teu segredo não interessa!



DOROTÉIA (desorientada)



- Não?... Mas vocês não compreendem que eu não diria a ninguém, nunca?... (muda de tom) E se contei foi para mostrar que deixei de ser falsa . . .



Que não contarei mais falsidades...



(AS VIÚVAS AVANÇAM MAIS, EM SEMICÍRCULO.)



DOROTÉIA



- Gritarei!



D. FLÁVIA



- Se gritares, teu grito não sairia daqui... Seria um grito qualquer... Só nós três escutaríamos teu grito.. E tu mesma... outros que o ouvissem não prestariam atenção... Nepomuceno também grita... Vive sozinho e quer a companhia dos próprios gritos... (exultante) E ninguém ligaria aos gritos de Nepomuceno...



DOROTÉIA (num sopro)



- Não...



D. FLÁVIA



- Por que entraste nesta casa? (rápida, violenta, para as primas) Eu falei em Nepomuceno?



AS DUAS



- Falaste nos gritos de Nepomuceno!



D. FLÁVIA (choramingando)



- Por que, entre tantos nomes, só esse me acudiu?



CARMELITA (num sopro)



- Nepomuceno...



DOROTÉIA (talvez mais alarmada)



- Vocês estão imaginando o quê?



MAURA



- Nada!



DOROTÉIA (desesperada)



- Mas eu não me oponho ao “crime”... Tive medo, mas já passou... Contanto que vocês me deixem aqui... Como uma de vós, embora morta...



(AS VIÚVAS VIRAM AS COSTAS PARA DOROTÉIA.)



DOROTÉIA



- Não! Não me virem as costas! Vosso desprezo é mais cruel que vosso crime! E se eu morrer, não digam que fui quem sou... Não contem as particularidades de minha profissão... Não mencionam o jarro... Digam que eu fui uma prima vossa, até muito correta...



(AS VIÚVAS COCHICHAM ENTRE SI.)



D. FLÁVIA (para as primas)



- Há quanto tempo Nepomuceno não tem namorada?



MAURA



- Não teve nunca...



D. FLÁVIA (sonhadora)



- Nunca...



CARMELITA



- Adoeceu pequenininho...



D. FLÁVIA (virando-se, rápida, para Dorotéia)



- Quem sabe se te deixaríamos ficar?



DOROTÉIA (Encantada)



- Aqui? (sôfrega) Decida, então, antes que o jarro (olha para os lados) apareça... porque, se ele aparecer, eu terei de aceitar minha desgraçada sina, ainda que seja por uma vez, uma única vez.



D. FLÁVIA (baixo)



- És bonita...



DOROTÉIA (numa mímica de choro)



- Me desculpe...



D. FLÁVIA (num crescendo)



- Renegarias tua beleza? Serias feia como eu, como todas as mulheres da família?



DOROTÉIA (ardente)



- Sim, seria... Feia como tu, ou até mais...



D. FLÁVIA



- Mais do que eu, duvido... Tanto, talvez...



DOROTÉIA



- Só lhe digo que desejaria ser – horrível! Juro... Ser bonita é pecado... por causa do meu físico tenho tudo quanto é pensamento mau... sonho ruim... Já me vi tão desesperada que, uma vez, cheguei a desejar ter sardas... Eu que acho sardas uma coisa horrível... Talvez assim os homens não se engraçassem tanto comigo e eu pudesse ter um proceder condizente...



D. FLÁVIA (cariciosa)



- E nunca pensaste numa doença?... Numa doença que consumisse tua beleza?...



DOROTÉIA (impressionada)



- Tenho muito medo de doença, muito!... (exultante) agora me lembro: houve uma vez, sim, em que pensei numa doença... (compungida) Foi quando houve a separação de um casal, por minha causa... Roguei praga contra mim mesma... pedi... (trava)



D. FLÁVIA



- O quê?



DOROTÉIA



- ... para apanhar varíola... (ofegante) que me enfeiasse... marcasse o meu rosto...



D. FLÁVIA



- Mas varíola é tão pouco!... (doce, para as primas) Vocês não acham?



AS DUAS (cordialíssimas)



- Achamos.



D. FLÁVIA



- Conheci uma fulana que teve bexiga e passou a ser mais procurada... (enérgica, para Dorotéia) Precisas ter um rosto e não este...



DOROTÉIA (passando a mão pelo próprio rosto)



- Este não... (num crescendo) Quer dizer que eu tenho que mudar de rosto? De boca, de olhos... Talvez de cabelos?...



D. FLÁVIA



- Sim... E de corpo também... então, nós te aceitaremos na família... Serás igual a nós... igual à Dorotéia que se atirou no rio... Te sentarás à nossa mesa... Dirás as nossas orações... (baixo ao ouvido de Dorotéia) e o jarro, um jarro de flores desenhadas em relvo, não te aparecerá mais, nunca mais!



DOROTÉIA (em êxtase)



- Tomara... (efusiva) Até, francamente, nem sei como agradecer... Nem



esperava... Mas a providência me salvou.. Fui ouvida, nos meus pedidos... (olhos para o céu, mão no peito) Pedi tanto, para sair daquela vida...



D. FLÁVIA (grave)



- Nós exigimos, mas é para teu bem...



DOROTÉIA



- Sei, claro... (veemente) Eu mesma acho que a família tem o direito de exigir! (mais positiva) E de humilhar... (humilde) Não pensem que eu estou contra a minha humilhação... Nunca! Até quero ser humilhada... Me desfeiteiem, se quiserem (misteriosa) Estou desconfiada que a morte do meu filho já foi um aviso...



D. FLÁVIA



- É possível.



DOROTÉIA



- Era a providência me chamando para o caminho da virtude... Talvez essa morte tenha sido um bem... (com mímica de coro) Quando acaba, vocês, em vez de me destratarem., ainda me recebem... E me tratam com essa distinção...



D. FLÁVIA



- Não te faremos mal, Dorotéia... houve um momento em que pensamos em te...







DOROTÉIA (completando, rápido)



- ...em me esganar.



D. FLÁVIA



- Mas não foi por mal...



DOROTÉIA



- Sei, sei, foi sem intenção...



D. FLÁVIA



- Seria para livrar você mesma de sua beleza... Mas você ainda não teve a náusea... Além disso, há quem fique mais bonita, depois de morta... não convinha para você...



MAURA (feroz)



- Fala em Nepomuceno!



D. FLÁVIA (gritando)



- De joelhos!



(APAVORADA, DOROTÉIA CAI DE JOELHOS.)



D. FLÁVIA (feroz)



- Agora escuta; vou-te dizer qual será tua salvação. E me agradecerás, assim, de joelhos...



(NA SUA VEEMÊNCIA D. FLÁVIA ESTÁ AGARRANDO DOROTÉIA PELOS CABELOS.)



DOROTÉIA (ofegante)



- Só não queria sardas... Acho muito feio sardas...



D. FLÁVIA (lenta)



- Precisa de chagas...



DOROTÉIA



- Eu?



D. FLÁVIA (lenta e feroz)



- Sim... Precisa de chagas que te devorem... E devagarinho, sem rumor, nenhum nenhum...



DOROTÉIA (atônita)



- Em mim? No meu corpo?



MAURA (feroz)



E no teu rosto!



DOROTÉIA



- Não!...







D. FLÁVIA



- No teu rosto... pelo menos, numa das faces... no ombro...



CARMELITA (ávida)



- No seio também!



DOROTÉIA



- Se ainda fosse só varíola!...



D. FLÁVIA (fanática)



- Tua beleza precisa ser destruída! Pensas que Deus aprova tua beleza? (furiosa) Não, nunca!...



DOROTÉIA



- Não que eu queira desculpara meus encantos... longe de mim... Já disse que estou arrependida de ser como sou... Mas me dá pena... Não sei, mas me dá uma pena como você não imagina!... (agarrando-se a D. Flávia) E se eu pudesse ser bonita e ao mesmo tempo ter um proceder correto...



D. FLÁVIA



- Aceitas as chagas? Se não aceitares, te levaremos de rastro! Sabes o que te acontecerá? Serás cada vez mais linda... e mais amorosa...



DOROTÉIA (apavorada)



- Não, isso não... E acho que sei por que tem me acontecido tanta coisa ruim. Foi a tal vizinha que não se dava comigo, que fez um voto... Um voto para



que eu me tronasse cada vez mais bonita...



D. FLÁVIA



- Queres?



(PAUSA)



DOROTÉIA (ofegante)



- Devo fazer o quê?



D. FLÁVIA (delirante)



- É simples, tão simples: (baixo, cariciosa) Basta procurar Nepomuceno... Nada mais...



DOROTÉIA



- Só? Mas quando?



D. FLÁVIA



- Já.



DOROTÉIA



- Tão de repente?



D. FLÁVIA



- É preciso. Quanto mais cedo melhor. Pede a ele e te dará quantas



chagas quiseres...



CARMELITA (tentadora)



- Chagas boazinhas...



DOROTÉIA (encantada)



- São?



CARMELITA



- MUITO!



DOROTÉIA



- Se eu “tenho” que ir, se eu “devo” ir, então, é bom me preparar logo... Quem sabe se vocês podiam me dar uma mãozinha?



D. FLÁVIA (amabilíssima)



- Ora!



(AS VIÚVAS APOSSAM-SE, VORAZMENTE, DE DOROTÉIA. E TRATAM DE EMBELEZÁ-LA)



DOROTÉIA (meiga)



- Eu tinha jurado que não me pentearia mais... Que largaria mão de meus cabelos...







D. FLÁVIA (cariciosa)



- o que vai acontecer não será pecado... Desejo que a sombra da outra Dorotéia te acompanhe...



CARMELITA



- E nós mesmas pediremos por ti...



D. FLÁVIA



- Agora vai... Vai, antes que chegue a sogra de minha filha, trazendo o meu genro...



DOROTÉIA (com súbito medo)



- Mas se o Nepomuceno alegar que não me conhece? E se eu mesma achar que, por exemplo, os meus cabelos são bonzinhos? Que meus cabelos não se envolvem com os meus pecados?...



D. FLÁVIA (feroz)



- Vai!



DOROTÉIA



- Se, ao menos, os espíritos protetores me dessem um sinal qualquer? Mandassem um aviso? Mostrassem o meu caminho? (num lamento) Sou uma mulher sem muita instrução!...



(IMOBILIZAM-SE TODOS OS PERSONAGENS E VIRAM-SE NUM MOVIMENTO ÚNICO, PARA O FUNDO D A CENA. ACABA DE



APARECER O JARRO.)



D. FLÁVIA



- Viste?



DOROTÉIA



- Agora sei... diante de mim está o caminho de Nepomuceno... (ergue o braços, frenética) Perdoa-me, se duvidei... Perdoa-me se pensei em mim mesma!... (num soluço) Mas nada sei devido ao meu pouco cultivo... (num crescendo) E perdi meu filho... E vivi muitos anos naquela vida... (feroz) Peço maldição para mim mesma... maldição para o meu corpo.. E para os meus olhos... E para os meus capelos... (num último grito estrangulado) Maldição ainda para a minha pele!...



D. FLÁVIA



- É este o momento...



CARMELITA



- Quando voltares será como nós...



MAURA



- Ou pior!



DOROTÉIA (lírica)



- Tomara! ... Tomara!...



(AS VIÚVAS LEVAM DOROTÉIA À PORTA. DOROTÉIA ABANDONA A CENA. AS VIÚVAS DÃO ADEUSINHO.)







(FIM DO PRIMEIRO ATO)



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