sexta-feira, 9 de abril de 2010

SOBRE DOROTÉIA - FARSA IRRESPONSÁVEL EM TRÊS ATOS

Dorotéia coloca para o espectador/leitor, desde a classificação que lhe deu Nelson Rodrigues de “farsa irresponsável em três atos””, uma série de armadilhas. Farsa ou tragédia? Se se lembrar que a comédia e a tragédia tiveram a mesma origem, no culto grego ao deus Dionísio, a pergunta a propósito de dúvida envolvendo realidades aparentemente opostas não parecerá tão absurda. E, como essa, outras dicotomias podem ser afastadas.

Iniciava-se 1947 como data de fatura do texto, embora certamente ele só recebesse o ponto final meses antes da estréia, ocorrida no dia 7 de março de 1950, no Teatro Fênix do Rio, sob a direção de Ziembinski. O encenador polonês deu à montagem uma empostação decididamente trágica – solene, grandiosa, hierática – o que ajudou a robustecer o equívoco a respeito da peça. Foi esse, sem dúvida, um dos maiores malogros da carreira dramatúrgica de Nelson, sugerindo a vários observadores que ela, mal saída do êxito de Vestido de Noiva, já findara.

Cada vez mais exigente consigo mesmo, decidido a levar às últimas conseqüências o caminho do “teatro desagradável”, Nelson não se furtou a prosseguir a sondagem interior dos textos que antecederam Dorotéia, mesmo com o risco de aprofundar o divórcio do público. Fugindo, mais uma vez, dos procedimentos do realismo, Nelson acolheu liberdades que se inscreveriam na escola surrealista. Não será difícil perceber, também, que a forma de criatividade consagrada na peça antecipa experiências de Ionesco e outros nomes do chamado teatro de vanguarda ou de absurdo da década de cinqüenta.

Por que incluir Dorotéia entre as peças míticas? Aí estão, sem nenhum intuito catalagador, diversos mitos: o de sexo envolta na idéia de pecado, o de beleza ligado a maldição, a doença como purificadora da alma, a feiúra como espantalho do demônio, a condenação do filho rebelde a retornar ao útero materno, a recusa do próprio corpo conduzindo à rigidez da morte, o artifício como antônimo de vida. Nelson recorreu a personagens arquetípicas, avessas às oscilações psicológicas, e apelou para simbolizações de admirável poder sintético.

As primas D. Flávia, Carmelita e Maura são mulheres comuns. Na rubrica inicial, Nelson indica serem viúvas, de luto, “num vestido longo e castíssimo, que esconde qualquer curva feminina”. Nenhuma nunca dormiu “para jamais sonhar” – isto é, todas reprimiram qualquer possibilidade de abandono, de fantasia, de desejo que não fosse rigidamente subjugado pela razão.

A essa casa feita só de salas, sem nenhum quarto (o quarto simbolizaria a perigosa privacidade, o recolhimento individual, que dá rédeas à imaginação), chega a prima Dorotéia, vestida de vermelho, “como as profissionais do amor, no princípio do século”. Não demora muito para revelar-se que essa Dorotéia (outra com o mesmo nome morreu), depois de fugir com um paraguaio (e não índio, como afirmou D. Flávia), se perdera, e passara a cultivar preferência por senhores de mais idade.

O confronto entre Dorotéia e as primas estabelece um primeiro conflito, que será a mola inicial da peça. Por que Dorotéia, que se desviara, procura de novo o reduto familiar? O motivo está expresso no diálogo: ao perder um filho, ela jurou que havia de ser uma senhora de bom conceito, refugiando-se então no abrigo das primas. Dorotéia já se definira como um ser extremo, de contrastes brutais. A visão do filho morto não a convencera a separar-se dele. Tiveram de amarrá-la, para levar o corpo: “Enterrar, só porque morreu?” Quebrado o único vínculo sentimental com o mundo, Dorotéia deseja cultuar a morte.

Aquela casa de chão frio, sem leito, é bem o símbolo da morte, que se tornou a herança da estirpe, desde que a bisavó traiu o amor. Ela amou um homem e se casou com outro, e, na noite do matrimônio, tece a náusea – a fatalidade familiar, que passa de uma mulher a outra, maldição semelhante à que marca os Átridas, por exemplo, na tragédia grega. O pecado contra o amor é tão grande, para Nelson, que não se volta apenas contra quem o comete, mas se transmite de geração a geração.

Por isso todas a mulheres da família tiveram a indisposição, na noite do casamento. Elas “têm um defeito visual, que as impede de ver homem...(...) Nós nos casamos com um marido invisível...” E a adolescente Das Dores, filha de D. Flávia, que ali está, se casa no dia seguinte, com “um noivo que não viu nunca e que não verá jamais...”

Dorotéia fora a exceção, naquele núcleo. Não teve o defeito de visão das outras mulheres. Garotinha, enxergava os meninos. Vozes aconselhavam-lhe a perdição. Daí a fuga com o paraguaio, a morte dele, a ida para o prostíbulo, o filho também morto, e o propósito atual de resgatar-se, aceitando a sina familiar. Mas o culto a que se votará Dorotéia, junto das primas, requer uma iniciação.

Essa iniciação significa desvencilhar-se de qualquer resquício de vida – apelo ao jarro simbolizador do contato sexual, as formas femininas, o hálito bom demais para uma mulher honesta, sobretudo a beleza. As primas acusam Dorotéia de linda, como se cuspissem. Ela estará pronta para o convívio doméstico somente depois que Nepomuceno, que vive solitário no mato, lhe confiar as chagas purificadoras. O primeiro ato termina quando Dorotéia sai ao encontro de Nepomuceno e da expiação nas feridas eternas.

O segundo ato tem duas funções principais: dar tempo para que Dorotéia procure Nepomuceno e fazer o teste comprovador da fatalidade da náusea em Das Dores, suposta representante da nova geração. É Das Dores quem inicia o diálogo, perguntando pelo noivo. E não demora muito para chegar a sogra, D. Assunta da Abadia, também viúva e de luto, portanto uma máscara hedionda. O noivo ficou na varanda, à espera de que a mãe o convidasse. Numa cena de delicioso humor, as mulheres trocam as maiores amabilidades, dizendo-se horríveis, desagradáveis, com péssima aparência. O jogo de frivolidades termina com a entrada do noivo, Eusébio da Abadia: D. Assunta introduz na sala um embrulho, amarrado em cordão de presente – duas botinas desabotoadas. Na farsa irresponsável que se propôs fazer, Nelson não poderia ter encontrado um símbolo mais feliz para a presença masculina.

As botinas desabotoadas, prontas para o amor, não seduzem apenas a noiva: perturbam todas as mulheres, que haviam passado incólumes pela noite de núpcias. Os próprios olhos de D. Flávia não lhe obedecem mais – vêem contra a sua vontade. Maura não sabe como poderá viver, depois que as viu, e anseia por um aniquilamento, em que não haja botinas. Diante desse delírio, D. Flavia estrangula Maura, simbolicamente.

E é a vez de outra prima, Carmelita. Ela vai mais longe, na loucura. Chega a admitir que “alguém” está morrendo ou agonizando, dentro da família: a náusea. Por ter blasfemado contra a náusea – ousadia inédita – expiará a culpa. Carmelita “não aceitaria uma eternidade em que não houvesse um par de botinas...” Parodiando Tartufo, afirma que deixa de ser pecado o que não tem testemunha... Sem tocar em Carmelita, D. Flávia concretiza também o seu estrangulamento simbólico. A morte veio como castigo para o extemporâneo impulso sexual de Maura e Carmelita.

Completado esse ciclo, retorna Dorotéia. A definição da personalidade de suas primas adiou o teste previsto com Das Dores. Com mestria dramatúrgica., Nelson introduziu no segundo ato o inesperado dos problemas de Maura e Carmelita, e dosou os efeitos, para que o espectador pudesse respirar. Assim, o pano desce debaixo de novo suspense: a espera de como a moléstia vai reinar em Dorotéia, e de como a náusea vai reinar em Das Dores.

A presença do jarro, no início do terceiro ato, intensifica a emoção: não teria Dorotéia conseguido libertar-se do passado? Das Dores não sentiu enjôo. D. Flávia deseja que a filha invoque os espíritos da família, implore os protetores, para não se perder a tradição de suas mulheres. Dorotéia se une a D. Flávia num estranho segredo – a sugestão de um crime, que não chega a ser definido. Enquanto isso, Das Dores afirma ter tido um aviso – não vai experimentar a náusea, nem quer. Precisa ficar junto do noivo, sempre!

Diante dessa obstinação, só resta a D. Flávia revelar à filha que ela não existe, pois nasceu de cinco meses e morta. E foi bom que acontecesse assim – do contrário seria uma perdida. D. Flávia pergunta por que Das Dores continua na casa, se é morta. A filha não deseja voltar para os eu nada, mas para a mãe: “Não existo, mas quero viver em ti...”E completa: “Escuta: serei, de novo, filha de minha mãe. E nascerei viva... e crescerei e me farei mulher...”A rubrica informa que, num gesto brusco e selvagem, Das Dores tira a própria máscara e a coloca no peito da mãe. Com uma das mãos, D. Flávia mantém essa máscara de encontro ao seio, num símbolo plástico da nova maternidade.

Esse é mais um dos achados felizes de Nelson, como ficcionista. Compreende-se que um filho pretenda abrir o seu caminho, afirmar a própria personalidade, à revelia do pensamento paterno ou materno. A rebeldia, em certo momento, se mostra quase obrigatória, como signo de uma nova existência. Já a paternidade ou a maternidade custam a aceitar a contestação, e, nunca aos extremo, como acontece sempre no mundo de Nelson, a filha volta para o útero materno, quando seus valores não coincidem. A mãe destrói simbolicamente a filha que não lhe segue os passos.

Para Dorotéia, cujo inimigo continua a ser o homem, outra vida é que deve morrer: o par de botinas. D. Flávia observa: se, ao menos, elas não estivessem desabotoadas... A tentação carnal ameaça as duas mulheres. D. Flávia trava um estranho diálogo com a máscara da filha, que parece arrastá-la para as botinas. A mesma força (Nelson denomina fantasma) que trouxera o jarro agora empurra as botinas, pelos calcanhares. Elas se inclinam para Dorotéia, na sugestão de que seu destino de pecadora é inapelável. D. Flávia abre as mãos, como se pretendesse estrangular as botinas, mas, a contragosto, esboça uma carícia, surpreendida por Dorotéia. O jarro volta a iluminar-se, no fundo do palco. Com habilidade, Nelson prossegue o jogo entre o repúdio ao pecado e o incontrolável fascínio por ele.

Dorotéia ainda se embala no narcisismo, do fundo do qual exclama: “Sou tão linda que, sozinha num quarto, seria amante de mim mesma...” esta altura, porém, as chagas pedidas a Nepomuceno já desabrocharam. Ao voltar-se para a platéia, ela exibe uma máscara hedionda. Consumou-se a purificação. O jarro é tirado de cena e as botinas se afastam. D. Assunta, com cuidado, leva embora o filho – um simples embrulho debaixo do braço.

As duas primas, finalmente, estão sós. Tudo o mais desapareceu. Superaram-se as tentações e sufocaram-se os apelos vitais o deserto ronda de novo aquela casa, onde imperava antes a vergonha eterna de saber que “temos um corpo nu debaixo da roupa...”Dorotéia fica apaziguada; depois da trajetória de conturbação, triunfou a morte. Pergunta ela a D. Flávia qual será o destino, o fim de ambas. A prima responde, encerrando a peça: “Vamos apodrecer juntas.”

No inteligente prefácio que escreveu para a edição anterior do texto, Carlos Castello Branco observou que Dorotéia, classificada como farsa por Nelson, “é a mais realizada das suas tragédia”. A tragédia, por outro lado, “quando não é expressa, está implícita em todas as peças” do autor. Com extraordinária habilidade cênica, o dramaturgo "se esmera em explorar praticamente uma cena só, que se enriquece, no correr dos três atos, de alguns episódios, mas sobretudo da sua própria substância íntima”. O espectador vê, estarrecido, “a inexorável vitória da morte sobre a vida”. Sob muitos aspectos, inclusive o da linguagem, Nelson “realizou em Dorotéia uma tragédia clássica”. Concluiu o prefaciador que, no texto, “a concepção do drama humano, a fatalidade da reabsorção da vida pela morte, vai-se insinuando através de descobertas psicológicas que não se esgotam em si mesmas mas tendem a revelar, pelo acúmulo e o progresso, a contradição inerente à própria vida”.

Em nenhuma outra obra Nelson levou tão longe a liberdade criadora. A partir de uma só situação, vista sob múltiplos ângulos, ele levantou um painel sobre os contrastes fundamentais da existência. A imaginação trabalhou solta, transpondo os empecilhos de qualquer ordem, para compor uma síntese brilhante.

As personagens estão fixadas naquela faceta que ajuda, pelo acúmulo, a desenhar a pretendida obsessão. Por isso foram abandonados os pormenores realistas, em proveito do impacto global da narrativa. Para o efeito de depuração, era importante concentrar a carga dramática na imobilidade da máscara, com a qual as personagens se identificam, simbolizando a essência liberta da contingência.

O realismo, às voltas com a representação quanto possível fiel da realidade, parecia ter relegado a máscara ao território da convenção sepulta no tempo. A reivindicação ficcional dos novos ismos trouxe de novo à baila o recurso, reaproveitado de várias maneiras por um Eugene O’Neill, dramaturgo com quem Nelson revelou sempre maior afinidade. A máscara tem um extraordinário poder de simbolização em Dorotéia.

As primas (e a tia), que formam um coro em Anjo Negro e reaparecem com vestes diversas (apenas tias) em Viúva, Porém Honesta e Toda Nudez Será Castigada, desempenham uma função fundamental em Dorotéia. O bloco orgânico em que se constituem tem por objetivo representar as instituições, o passado, a tradição perempta, o medo do apelo natural da vida. Tanto que, mal uma parece abandonar-se ao sopro do sexo, castiga-a o estrangulamento simbólico. Nelson não tem contemplação com nenhuma: seu pessimismo mórbido condena todas à morte verdadeira ou virtual. Só se conhece um relativo repouso quando se domou a indisciplina do desejo.

Pelas numerosas liberdades que o dramaturgo concede em relação ao mundo real, pode-se pensar que Dorotéia se passa no inconsciente. Ali, entende-se que Das Dores tenha nascido de cinco meses e morta – puro anseio de maternidade de D. Flávia, que decretou o retorno da filha ao útero, ao conscientizar a autonomia de uma vida independente da sua. E os delírios da mente não permitem estranhar que duas botinas desabotoadas simbolizem a promessa do homem.

O estilo, as personagens, a trama, a imaginação de Dorotéia fugiam totalmente aos moldes do teatro praticado entre nós nos anos cinqüenta, dificultando que a crítica e o público apreciassem o que o texto contém de inovador. Mais uma vez Nelson Rodrigues expiou com o insucesso a criatividade vanguardista. Em compensação, embora sem perder o viço perturbador, Dorotéia merece ser encarada hoje como peça clássica.

(Fonte desconhecida)

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