quarta-feira, 14 de abril de 2010

Dorotéia - SEGUNDO ATO

DOROTÉIA

(FARSA IRRESPONSÁVEL EM TRÊS ATOS)
NELSON RODRIGUES
(1949)

SEGUNDO ATO

(DOROTÉIA ABANDONOU A CENA. AS TRÊS VIÚVAS, EM MOVIMENTO SIMULTÂNEO, UNEM-SE EM GRUPO CERRADO E CADA UMA COBRE O ROSTO COM O LEQUE. E COMO SE ESTA ATITUDE NÃO BASTASSE, VIRAM AS COSTAS PARA A PORTA DA ENTRADA. DAS DORES ESTENDE OS BRAÇOS, EM APELO. É UM MOMENTO DE MEDO.)











DAS DORES (em desespero)


- Mãe! E meu noivo não vem?


D. FLÁVIA (com angústia)


- Vem... Agora vem... Mais um instantinho só...


DAS DORES


- E é hoje a primeira noite?


D. FLÁVIA


- Hoje.


DAS DORES


- Oh! Graças!


(APESAR DA DISTANCIA QUE A SEPARA DA FILHA, D. FLÁVIA FALA BAIXO. E TODA A SUA ATITUDE EXPRIME MEDO E ESPANTO.)


DAS DORES


- E terei a náusea logo na entrada da noite?... Ou no meio?... Ou já ao amanhecer? (grita) mãe!


D. FLÁVIA


- Talvez na entrada da noite...


MAURA


- Ou no meio...


CARMELITA


- Ou quase ao amanhecer...


DAS DORES (para si mesma)


- Por que tarda a minha primeira noite?... Por que não vem logo?...


D. FLÁVIA


- Sinto que tua sogra vem se aproximando...


CARMELITA (num sopro)


- Conduzindo o noivo pela mão...


D. FLÁVIA


- Vai bater...


(BATEM NA PORTA)


CARMELITA


- Piedade, Senhor! Piedade de nós!


MAURA (rápida)


- E de nosso pudor!


CARMELITA


- Piedade do nosso pudor!


(SEMPRE DE COSTAS PARA A PORTA DA ENTRADA, D. FLÁVIA GRITA)


D. FLÁVIA


- Podeis entrar, D. Assunta da Abadia!


(ENTRA D. ASSUNTA ABADIA. VIÚVA COMO AS OUTRAS E TAMBÉM DE LUTO. TRAZ UMA MÁSCARA HEDIONDA.)


D. ASSUNTA


- Entrei, senhora viúva.


D. FLÁVIA


- Estais sozinha, D. Assunta?






D. ASSUNTA (erguendo o braço, declamatória)


- Sozinha, sim!


(VIRAM-SE AS TRÊS VIÚVAS NUM MOVIMENTO ÚNICO)


AS TRÊS


- E o noivo?...


D. ASSUNTA


- Na varanda, senhoras... à espera que eu o convide.


D. FLÁVIA (pigarreia)


- Bem-vinda nesta casa, D. Assunta da Abadia!


(D. ASSUNTA BEIJA E SE DEIXA BEIJAR PELAS TRÊS VIÚVAS. UNEM-SE AS QUATRO CABEÇAS.)


D. ASSUNTA


- Como vai, D. Flávia?


D. FLÁVIA


- Assim assim.


MAURA


- E vós, D. Assunta?


D. ASSUNTA


- Ai de mim!


CARMELITA


- Ora essa, por quê?


D. ASSUNTA


- Os rins, D. Flávia.


MAURA (num suspiro)


- Caso sério!


(AS SENHORAS PRESENTES ADOTAM UM TOM CONVENCIONALÍSSIMO DE VISITA. GRANDE ATIVIDADE DOS LEQUES.)


D. ASSUNTA


- Cada vez mais feia, D. Flávia!


D. FLÁVIA


- A senhora acha?


D. ASSUNTA


- Claro.


D. FLÁVIA


- E a senhora está com uma aparência péssima!


MAURA


- Horrível!


(A CONVERSA ANTERIOR REPRESENTA O CÚMULO DA AMABILIDADE.)


D. ASSUNTA


- Acredito. Me apareceram umas irrupções aqui... Bem aqui...


D. FLÁVIA


- Estou vendo.


D. ASSUNTA


- De forma que estou muito satisfeita!


D. FLÁVIA


- Faço uma idéia.


D. ASSUNTA


- Carmelita e Maura também estão com uma aparência muito desagradável...


AS DUAS (numa mesura de menina)


- Ora, D. Assunta!


D. FLÁVIA


- Aliás, não é novidade nenhuma, toda a nossa família é de mulheres feíssimas...


MAURA


- Se é...


D. ASSUNTA


- E por isso tenho por vós consideração... Por que sois horríveis, como eu... Nunca, vos garanto, daria a uma mulher de outra família o meu filho... Deus me livre... E sabeis que, na minha noite de núpcias, tive uma coisa parecida com vossa indisposição...


D. FLÁVIA


- Não diga!


D. ASSUNTA


- Mas não... Foi um doce que eu comi!


MAURA


- Que pena, D. Assunta!






DAS DORES


- Mãe! Já veio a minha primeira noite?


D. FLÁVIA


- Quase, minha filha, quase! (para D. Assunta) Está aflita que a senhora nem faz idéia!


D. ASSUNTA


- Também é natural...


(CONTINUAM AS QUATRO VIÚVAS O SEU JOGO DE FRIVOLIDADES)


D. FLÁVIA


- Voltemos ao assunto... digo-lhe mais, a senhora piorou muito da última vez em que a vi... Não há nem comparação!


MAURA


- Não tinha tanta espinha...


D. ASSUNTA (lisonjeada)


- Acham?


CARMELITA


- Tem muito mais!


D. ASSUNTA


- Foi bendita irrupção!


D. FLÁVIA


- Espinha em mulher é bom sinal! Não acredito em mulher de pele boa...


MAURA


- Nem eu...


D. FLÁVIA


- Observei uma coisa: a mulher que tem muita espinha geralmente é séria... Não prevarica...


MAURA


- Lógico!


CARMELITA (para D. Assunta)


- De forma que a senhora está de parabéns...


D. ASSUNTA (modesta)


- Não posso me queixar!


D. FLÁVIA


- Antes assim...


(DO FUNDO DA CENA DAS DORES ESTENDE OS BRAÇOS NA DIREÇÃO DAS QUATRO MULHERES.)


DAS DORES


- E esse noivo que não vem nunca... E essa primeira noite que não aparece...


D. FLÁVIA


- Hoje em dia os filhos são assim – não gostam de esperar.


MAURA


- É a educação moderna.


D. ASSUNTA


- Bem – já fiz a minha cortesia... Agora vou buscar meu filho.


(D. ASSUNTA QUE, ATÉ ENTÃO, SE CARACTERIZARA POR UMA CORDIALIDADE CONVENCIONAL DE VISITA, TRANSFIGURA-SE. RECUA DOIS OU TRÊS PASSO E DRAMATIZA A VOZ.)


D. ASSUNTA


- Eu, D. Assunta da Abadia, viúva triste, venho trazer, pela mão, conforme o prometido, o meu filho – Eusébio da Abadia...






DAS DORES (saboreando)


- Eusébio... e Da Abadia...


AS TRÊS VIÚVAS (artificialíssimas)


- E nós agradecemos em nosso nome, assim como no de nossa filha, Maria das Dores, chamada Das Dores... ali presente...


D. FLÁVIA


- Amém.


(D. ASSUNTA DA ABADIA VAI BUSCAR O FILHO QUE FICARA NA VARANDA. RÁPIDAS, AS TRÊS VIÚVAS COLOCAM-SE EM GRUPO NUMA DAS EXTREMIDADES DO PALCO E FICAM DE COSTAS PARA A PORTA DE ENTRADA. TODAS COBREM O ROSTO, INCLUSIVE DAS DORES. REGRESSA D. ASSUNTA DA ABADIA, TRAZENDO UM EMBRULHO, AMARRADO EM CORDÃO DE PRESENTE)


D. ASSUNTA


- Eu, D. Assunta da Abadia, residente ali adiante, aqui deposito meu filho... (D. Assunta põe-se a desamarrar o embrulho)... Eusébio da Abadia... (encontra sérias dificuldades para desfazer o nó) Nó impossível! (Até que, enfim, o nó desfeito, surgem duas botinas desabotoadas) Coloco onde?


D. FLÁVIA


- Em cima da mesa!


D. ASSUNTA


- Não tem mesa...


D. FLÁVIA


- No chão mesmo...


(D. ASSUNTA PÕE AS DUAS BOTINAS EM CIMA DE UMA ESPÉCIE DE PEDESTAL.)


D. ASSUNTA


- Falando de viúva para viúva.


D. FLÁVIA (de costas)


- Como não, D. Assunta?


D. ASSUNTA


- ... quando devo passar por aqui para apanhar meu filho?


D. FLÁVIA


- Depende.


D. ASSUNTA


- Mais ou menos...






D. FLÁVIA


Às 11 horas, meia-noite, por aí... A não ser que a náusea venha antes... E como eu disse – depende... Essas coisas variam...


MAURA


- Mandaremos avisar na ocasião...


(D. ASSUNTA DESPEDE-SE DO FILHO E FÁ-LO COM UMA DRAMATICIDADE CARICATURAL.)


D. ASSUNTA


- Eusebiozinho – adeus... Cuidado com o sereno... Não apanhe friagem...


(D. ASSUNTA já vai saindo, em lágrimas, quando, de repente, pára e bate na testa.)


D. ASSUNTA (dramática)


- Quando saímos eu podia ter pingado em você o remédio de ouvido. E eme esqueci. (abandona a cena levando na alma o desespero atroz do lapso de memória.)


DAS DORES (num grito desesperado)


- Mãe!






D. FLÁVIA (para as primas)


- Ela pensa que tem cordas vocais...


MAURA


- Pensa que pode falar...


D. FLÁVIA (baixo, embora a distancia)


- Diz, minha filha...


DAS DORES (espantada)


- Ouviste?


D. FLÁVIA


- O quê?


DAS DORES (em desespero)


- Ela saiu e se esqueceu de pingar o remédio de ouvido...


D. FLÁVIA


- Que coisa, hem!...


DAS DORES


- Horrível!






D. FLÁVIA (num grito brusco)


- Das Dores, já está aí a tua noite de núpcias!


DAS DORES (ofegante)


- Sei...


D. FLÁVIA (Num crescendo declamatório)


- E arredondei, para tua noite de núpcias, uma cúpula de silêncio e azul... Bem como providenciei algumas estrelas vadias...


DAS DORES


- Posso, então, conhecer a minha primeira noite?


D. FLÁVIA (como quem dá a partida para uma prova de velocidade)


- Já!


DAS DORES


- Mas... E eu verei meu noivo, mãe?


D. FLÁVIA (num grito histérico)


- Não!


DAS DORES (humilhada)


- Nem precisava dizer... eu sei que não... eu sei que não o veria nunca... Quantas vezes me disseste que nenhuma de nós consegue ver um homem é um defeito de visão, eu sei, claro...


FLÁVIA


- Uma graça de Deus!


DAS DORES


- Uma graça de Deus... acredito que seja... e recebo esta graça... se chegar um homem perto de mim... e me carregar no colo... ainda assim eu serei cega... apenas sentirei seu hálito... poderei tateá-lo às cegas...


D. FLÁVIA


- Sim...


DAS DORES (fremente)


- Eu me sinto feliz de ser como vós...(muda de tom) mas tens certeza de que nunca verei meu marido?


D. FLÁVIA


- Nunca!


DAS DORES (dolorosa)


- Graças, graças! (de novo inquieta) Mas não verei absolutamente nada? nem uma sobrancelha solta no ar?... Nem um botão de punho? ... Ou, quem sabe, um colarinho de ponta virada?


D. FLÁVIA (feroz)


- Nada!


DAS DORES


- Nada... E se uma mulher da família, uma de nós...


D. FLÁVIA


- Não!


DAS DORES (baixo)


- ... visse o colete de um homem, se conseguisse ver um colete...


D. FLÁVIA (sob terror)


- Nunca! Que seria de nós? Que seria das parentas mortas? Que seria dos véus que guardamos nas cômodas? Não teríamos consolo para a nossa vergonha – nem em vida, nem na morte!...


DAS DORES


- E agora? Posso virar?


D. FLÁVIA


- Sim, Das Dores, podes virar...


(DAS DORES VOLTA-SE LENTAMENTE, COM O MEDO NO CORAÇÃO. IMOBILIZA-SE DE COSTAS PARA AS BOTINAS, PROTEGIDAS SOB OS LEQUES DAS TRÊS VIÚVAS.)


D. FLÁVIA


- Estás olhando na direção do teu noivo?


DAS DORES (aproximando-se das botinas)


- Sim...


D. FLÁVIA (exultante)


- Eu não disse que não verias nada? Não te disse sempre?


DAS DORES


- Sempre...


D. FLÁVIA


- Te jurei que não verias...


DAS DORES (num sopro de voz)


- Juraste...


D. FLÁVIA


- ... nem um botão de punho...


DAS DORES


- Nem isso... (À medida que se aproxima, Das Dores exprime seu espanto e seu deslumbramento.)


D. FLÁVIA


- ... nem um pivô na boca.


(DAS DORES QUE VINHA RASTEJANDO EM DIREÇÃO DAS BOTINAS ERGUE-SE, FRENÉTICA)


DAS DORES


- Olha, então!


(AS TRÊS VIÚVAS VOLTAM-SE NUM MOVIMENTO ÚNICO. SOBEM NAS CADEIRAS E OLHAM POR CIMA DOS LEQUES.)


DAS DORES (num sopro)


- Estás vendo?


D. FLÁVIA (num sopro)


- Onde?


DAS DORES (exultante, gritando)


- Ali!


D. FLÁVIA (apavorada)


- Não... não vejo nada...


AS DUAS OUTRAS


- Nem nós...


(NUM MOVIMENTO SIMULTÂNEO AS TRÊS PRIMAS ABREM OS LEQUES DE CORES BERRANTES, DETRÁS DOS QUAIS ESCONDEM OS OLHOS.)


DAS DORES


- Por que mentes, mãe?


D. FLÁVIA


- Minto sim... eu vejo e não queria... são meus olhos que não me obedecem mais... vêem contra a minha vontade...


MAURA (sempre por detrás do leque)


- Antes não víamos nada... coisa nenhuma...


CARMELITA (sempre por detrás do leque)


- Antes não víamos nada... coisa nenhuma...


CARMELITA (sempre por detrás do leque)


- Eu não vi meu marido... deitei-me e não o vi... tive a náusea sem vê-lo...


MAURA


- Também não vi meu marido... nem homem nenhum... uma vez...


(JUNTAM-SE OS TRÊS ROSTOS DE VIÚVA PARA MELHOR OUVIREM O BREVÍSSIMO RELATO.)


CARMELITA (sôfrega)


- Quando?


MAURA (baixo)


- Há muito tempo... Acho até que eu usava meia curta e saia em cima do joelho...


D. FLÁVIA (sôfrega)


- Continua!...


CARMELITA


- Entrei num velório de homem...


(D. FLÁVIA E MAURA, RÁPIDAS, COBREM O ROSTO COM O LEQUE.)


MAURA (em pânico)


- Deus me livre!


CARMELITA (continuando


- Então, subi na escadinha de dois degraus... Espiei o homem que morrera. Não vi o defunto, não vi nem mesmo o lencinho que cobria o rosto... só vi as flores cansadíssimas da noite em claro e o sono dos círios...


(LEVADAS PELO MEDO COMUM, FOGEM PARA A OUTRA EXTREMIDADE DO PALCO, ONDE SE AGACHAM FAZENDO DO LEQUE UM FRÁGIL ESCUDO DE PUDOR.)


DAS DORES


- Pensei que não veria coisa nenhuma... nem mesmo um pivô entre os dentes vivos...


CARMELITA


- Tenho medo!


MAURA


- E agora?


CARMELITA


- Ó Deus de todas as misericórdias!...


D. FLÁVIA (erguendo os dois braços, num fundo gemido)


- Por que nos destes olhos?


(NO SEU DESLUMBRAMENTO NUPCIAL, DAS DORES ESTÁ EM PLENO IDÍLIO. ELA MESMA, PORÉM, EMPURRA AS BOTINAS PELOS CALCANHARES. ESTE MOVIMENTO SIGNIFICA QUE AS BOTINAS SE AFASTAM DA NOIVA.)


DAS DORES (persuasiva)


- Não fuja... te juro que tomarei conta de ti direitinho... melhor que tua mãe... não te deixarei apanhar friagem nunca... não te deixarei andar descalço no ladrilho frio... nem consentirei que o sereno te resfrie... e nunca esquecerei de pingar o remédio de ouvido... Por que foges de mim, se não te fiz nada?


D. FLÁVIA


- O noivo não quer a noiva!


MAURA (rápida)


- Refuga!


DAS DORES


- Talvez não me aches bonita... mas se eu fosse bonita me perderias... não me incomodo que tenhas dores de ouvido... te dou minha palavras que não considero isso defeito – Deus me livre! E se tivesses ataques eu não ligaria também... Cuidaria ainda de ti...


(AS TRÊS VIÚVAS, TEMEROSAS, APROXIMAM-SE DO IDÍLIO. MAS OS FESTIVOS LEQUES ESTÃO NA FRENTE.)


MAURA


- E a náusea?


D. FLÁVIA


- Virá...


MAURA


- E se não vier?






D. FLÁVIA (grave e profética)


- Eu sei... De repente virá, de repente... E Das Dores se torcerá diante de nós...


MAURA (gritando)


- Pode não vir!


D. FLÁVIA (ameaçadora)


- Veio para nós...


MAURA (em desespero)


- Para nós veio... Para mim veio... e eu me torci... eu gritei ... mas Das Dores não gritou, nem se torceu...


D. FLÁVIA (ameaçadora)


- Ou duvidas?


MAURA (recuando)


- Não, não...


D. FLÁVIA (feroz)


- É pecado duvidar da náusea!


MAURA


- Sei que é... ou deve ser... pecado... mas...


(MAURA FASCINADA PÕE-SE NA PONTA DOS PÉS, OLHA O IDÍLIO POR CIMA DO LEQUE.)


CARMELITA (num grito)


- Maura está olhando!


MAURA (cobrindo o rosto com o leque)


- Alguma coisa mudou o ar desta casa...


CARMELITA (apavorada)


- Olhaste por cima do leque!


D. FLÁVIA (para Maura)


- Estás doida?


MAURA (num sopro)


- Doida? Por que não? Posso estar doida sem saber... (muda de tom) Mas se estou doida, salva-me, então, da minha loucura! Salva-me do que eu fizer, salva-me dos meus próprios atos!


(MAURA AGARRA D. FLÁVIA PELOS DOIS BRAÇOS, SACODE-A)


MAURA (lenta e feroz)


- Tu que és a mais velha de nós e a mais feia...


D. FLÁVIA


- Sou...


MAURA (num crescendo)


- Tu que inicias as orações na mesa e, no final, dizes Amém... salva-me do que eu estou pensando...


(SEM TRANSIÇÃO AS VIÚVAS VOLTAM-SE NA DIREÇÃO DE DAS DORES E DAS BOTINAS.)


D. FLÁVIA


- O que foi que ela disse?


DAS DORES (doce e arrebatada)


- Bonito como um nome de barco...


D. FLÁVIA (em pânico)


- Ela disse isso?


AS DUAS (categóricas)


- Não!


D. FLÁVIA (lenta e aliviada)


- Não disse... Nós que ouvimos mal... Não podia ter dito...


AS DUAS (com acento doloroso)


- Sim, ouvimos mal...


MAURA (num brusco lamento)


- Se eu pudesse não pensar, se pudesse não sonhar!


D. FLÁVIA


- Pensas em quê?


MAURA


- Tenho medo!


D. FLÁVIA


- Que sonho é o teu?


MAURA (recuando)


- Não diria a ninguém, nem a mim mesma – nunca...


D. FLÁVIA (persuasiva)


- Diz baixinho...


(MAURA CAI DE JOELHOS)


MAURA (num sopro)


- Não!...


D. FLÁVIA


- Pensas...


MAURA (completando)


- ... em botinas!


D. FLÁVIA (num sopro)


- Em quê?


MAURA


- ... em botinas e muitas... vejo, em toda parte (baixa a voz e conclui) botinas...


CARMELITA (fascinada)


- Desabotoadas?


MAURA (no seu pavor)


- Desabotoadas, sim...


D. FLÁVIA (num grito feroz)


- Não!


MAURA (feroz, também, e na sua euforia)


- Não há mais horizontes, nem águas, nem proas, nem vôos... (em adoração) e sim botinas...


(VIRA-SE, RÁPIDA, PARA OLHAR E APONTAR AS BOTINAS.)


MAURA


- Onde havia um vôo – botinas... Onde havia um grito – outras...


(D. FLÁVIA E CARMELITA, APAVORADAS, JUNTAM-SE, NO CANTO DA CENA, AGACHADAS, PARA VER O DELÍRIO DA OUTRA)


D. FLÁVIA


- Está possessa!


MAURA


- Aquilo que Das Dores disse – “bonito como um nome de barco”... Ou não disse? ... talvez seja uma falsa lembrança minha... mas “quem” ou “que” seria bonita assim? quem? Imagino... o noivo...


(MAURA APROXIMA-SE DAS PRIMAS QUE SE LIGAM MAIS NUM MEDO MAIOR.)


MAURA


- Tu sabes...


D. FLÁVIA (num sopro)


- Não...


MAURA (feroz)


- Só o noivo podia ser bonito assim ou mais... (mudando de tom) Estou possessa, sim!


D. FLÁVIA (num sopro)


- Perdida...


MAURA (violenta)


- E tu? ... és a mesma... continuas a mesma?...


D. FLÁVIA


- SEMPRE!


MAURA


- Não tens medo?


D. FLÁVIA


- Nenhum!


MAURA (soluçando)


- Juro que queria odiá-las e não consigo... ou esquecê-las.. mas não posso... queria estrangulá-las, assim... com as minhas próprias mãos... porém sinto o que nunca senti... ensina-me um meio de esquecê-las e para sempre de não pensar nelas... (lenta) E se, ao menos, eu não as visse desabotoadas... (num lamento) como poderei viver depois que as vi desabotoadas?


D. FLÁVIA (doce)


- Eu te salvarei...


MAURA


- Ó graças... Porque, enquanto viva, eu pensarei nelas... Viva eu mil anos e elas estaria diante de mim, espiando até no meu sono, no fundo do meu sono...


D. FLÁVIA (doce)


- Dormirias?...


MAURA


- Dormiria, sim... (veemente) mas o sono não me salvaria... o sono é pouco... e eu poderia sonhar...


D. FLÁVIA


- Imagino...


MAURA (com medo)


- Não quero nenhum sonho!


D. FLÁVIA (baixo)


- Morrer?


MAURA


- Talvez... mas queria uma morte em que não houvesse botinas...


D. FLÁVIA (com secreta alegria)


- Esta morte sim... e não outra... te darei esta morte...


MAURA


- Então depressa... quero morrer... ainda as vejo...É delírio...


D. FLÁVIA


- É teu delírio...


(MAURA DE JOELHOS)


MAURA (feroz)


- Delírio ou não, estão diante de mim... As duas...


(D. FLÁVIA, A DISTANCIA, ESTRANGULA, APENAS SIMBOLICAMENTE, A PRIMA. CARMELITA COBRE O ROSTO COM O LEQUE. MAURA MORRE SEM SER TOCADA.)


CARMELITA


- Estamos sozinhas...


D. FLÁVIA


- Mas existe uma morta entre nós duas...


(MAURA ESTÁ, REALMENTE, DEITADA ENTRE AS DUAS. D. FLÁVIA COLOCA O LEQUE SOBRE O ROSTO DA MORTA)


CARMELITA


- Só uma morta?


D. FLÁVIA


- Sim...


CARMELITA


- Só uma morta.. (outro tom) Viste? No último momento ela perdeu a alma...


D. FLÁVIA


- Agora é a tua vez...


CARMELITA


- Não, não!


D. FLÁVIA


- Tens medo?...


CARMELITA


- Morrer por quê?






D. FLÁVIA


- Sei em que pensas, com que sonhas...


CARMELITA (apavorada)


- Não penso em nada, nem sonho...


D. FLÁVIA


- Confessa...


CARMELITA


- Eu não pensaria em botinas nem sonharia... (feroz) E aqui não há só uma morta... Alguém morreu, além de Maura...


D. FLÁVIA


- Quem?


CARMELITA


- E não sei se já é morte ou agonia... Alguém está morrendo ou agonizando dentro da família... Alguém se retorce e agoniza... (grita) Não imaginaste ainda? Não adivinhas quem?


D. FLÁVIA


- Não.


CARMELITA (exultando)


- A náusea . . . Agonia ou morte, não sei . . . Mas se não morreu ainda,


morrerá... atravessada por uma lança, como na gravura de S. Jorge...


D. FLÁVIA (espantada)


- É mentira!... Não morreu...


CARMELITA (em tom de monólogo)


- Devo morrer? ... Preciso morrer?... (espantada) Sim, devo (destacando as sílabas) Preciso... (exaltada) Depois de tantas vigílias, a febre cinge minha fronte, um delírio rompe de mim... E se, ao menos, eu pudesse mergulhar o rosto numa chama e levá-lo no fogo!...


D. FLÁVIA


- Te darei uma morte sem sonhos...


CARMELITA (dolorosa)


- Não!


D. FLÁVIA


- Precisas morrer...


CARMELITA


- Não...


D. FLÁVIA


- Blasfemaste contra a náusea... nenhuma outra mulher da família ousou tanto.. E por isso deves expiar a tua culpa...


CARMELITA


- Prefiro a vida... antes, queria morrer, e agora não...


D. FLÁVIA


- É tarde...


CARMELITA (em delírio)


- Não eram tantas... Só um par.. E agora são muito mais.. Quantas... morreria mil vezes se me prometesses...


(D. FLÁVIA JÁ ESTÁ COM AS MÃOS EM TORNO DO PESCOÇO DA PRIMA.)


CARMELITA


- ... se me prometesses uma morte como nenhuma outra mulher teve...


D. FLÁVIA


- Fala.


CARMELITA (arquejante)


- Uma outra eternidade... (veemente) Eu não aceitaria uma eternidade em que não houvesse um par de botinas...


D. FLÁVIA


- Sim.


CARMELITA


- Eu não desejaria nada mais... As botinas, só... E bastariam... Não haveria testemunha... (veemente) Tudo que não tem testemunha deixa de ser pecado...


D. FLÁVIA


- Agora escuta...


CARMELITA (arquejantes)


- Escuto...


D. FLÁVIA


- Grava na tua agonia estas minhas palavras... Estou apertando, mas não o bastante para perderes os sentidos.. Tua morte será um deserto de botinas... Não verás um único par na tua eternidade... E agora morre assim, morre...


(A DISTÂNCIA, SEM TOCAR NA VÍTIMA, D. FLÁVIA FAZ OUTRO ESTRANGULAMENTO “SIMBÓLICO”. CARMELITA MORRE.)


D. FLÁVIA


- Morta.


(D. FLÁVIA PREPARA UMA ESPÉCIE DE CÂMARA ARDENTE PARA AS DUAS PRIMAS. COBRE O ROSTO DE CARMELITA COM UM LEQUE E AOS PÉS DE CADA UMA, UMA VELA ACESA. QUANDO ACABA, DOROTÉIA APARECE NA PORTA.)


D. FLÁVIA (aproximando-se, sôfrega, da outra)


- Viste o Nepomuceno?


DOROTÉIA (com angústia)


- Deixei-o agora mesmo!


(PAUSA)


D. FLÁVIA (ávida)


- Fala!


DOROTÉIA


- Me recebeu muito bem... É um senhor educado... E no fim me acompanhou à porta...


D. FLÁVIA (ávida)


- Pediste as chagas?


DOROTÉIA (baixando a cabeça e virando o rosto em sinal de pudor)


- Pedi...


D. FLÁVIA


- Que mais?






DOROTÉIA


- Ele disse que eu escolhesse a que quisesse...


(AINDA MAIS SENSÍVEL O PUDOR DE DOROTÉIA.)


D. FLÁVIA (feroz, gritando)


- Escolheste uma só?


DOROTÉIA (cedendo ao desespero)


- Muitas!


D. FLÁVIA (traindo a própria alegria)


- Quanto , mais ou menos?


DOROTÉIA (como sonâmbula)


- Não sei direito... Não me lembro bem...


D. FLÁVIA (curiosa)


- Mas eu quero saber, preciso saber... (arquejante) Preciso... o número exato... (frenética) Quanto?


DOROTÉIA (com sofrimento)


- Umas quatro ou cinco... (quase alegre) Mas ele pôs todas à minha disposição...


D. FLÁVIA (dolorosa)


- Devias ter pedido mais, por que não pediste mais?


DOROTÉIA (fremente)


- O senhor Nepomuceno me mostrou umas que ardiam mais, que consumiam como fogo... E outras nem tanto... (sonhadora) Depois me chamou de menina... (num suspiro de reconhecimento) Foi distintíssimo comigo...


D. FLÁVIA (atormentada)


- Quatro ou cinco... Bastará para consumir tua beleza?... para comer teu riso?... E, se no fim de tudo, continuares linda...


DOROTÉIA (apavorada)


- Não!


D. FLÁVIA (violenta)


- E para onde as chagas que trouxeste? Para que lugar?


DOROTÉIA


- Pois foi este o ponto que eu e o senhor Nepomuceno discutimos... (hesita) Uma no ombro...


D. FLÁVIA


- Teu ombro não importa... Sei que é bonito...






DOROTÉIA (encantada)


- Muito!


D. FLÁVIA


- ... mas importa menos... primeiro o teu rosto... depois do rosto, ainda vem o seio... Só no fim, o ombro... Eu quero saber, para o rosto... quantas para o rosto?...


DOROTÉIA (sem prestar atenção)


- Outra num ponto qualquer da coluna vertebral...


D. FLÁVIA (com mímica de choro)


- Para o rosto quantas?...


DOROTÉIA (dolorosa, caindo em si, cobre o rosto com uma das mãos)


- Umas duas...


D. FLÁVIA (frenética)


- Não!... não!... É pouco: é muito pouco!... (baixa a voz, atracada à outra) Não disseste que os parentes têm o direito de exigir? Ou negas agora?...


DOROTÉIA (desesperada)


- Não nego... O que eu disse confirmo... (suplicante) Claro, não é? Os parentes podem menosprezar uma fisionomia...E ainda mais sendo uma fisionomia como esta (encosta a mão no próprio rosto) que reconheço ser agradável...


D. FLÁVIA (terminante)


- Pis eu sou tua parente... A única que te resta... As outras duas morreram e minha filha nasceu morta... (cresce de energia) E eu, com esta autoridade que ninguém me tira!...


DOROTÉIA (humilde)


- Concordo...


D. FLÁVIA (bruscamente doce)


- ... eu te digo que (novamente feroz) se não mudares de rosto, continuarás perdendo a todos os homens e a ti mesma... Continuarás separando os casais... Ardendo em paixão.. pensa, um momento que seja, nas tuas feições...


(D. FLÁVIA ACARICIA O ROSTO DE DOROTÉIA.)


DOROTÉIA (doce e triste)


- São muito delicadas...


D. FLÁVIA


- E sabes o que te aconteceria, se não fosse eu?... (agressiva) Não, não, não imaginas...


DOROTÉIA (apavorada)


- Cálculo!






D. FLÁVIA


- Mas eu te direi... (sinistra) Teu rosto estaria sempre contigo!...


DOROTÉIA (apavorada)


- Não!


D. FLÁVIA


- Tuas feições te perseguiriam... e se te escondesses, debaixo de qualquer coisa, teus braços ainda estariam contigo... (violenta) Imagina por um instante, imagina!


DOROTÉIA (em pânico)


- Não imagino, nem quero...


D. FLÁVIA


- Acabarias louca... louca de todo, vendo que tua beleza nem por momento te largaria... Sempre em ti, na vigília e no sonho... em ti...


DOROTÉIA (soluçante)


- Acredito!... Eu acabaria louca sim... Vendo a minha beleza em todos os espelhos, refletida em todas as águas e no chão, nas paredes.. (num apelo feroz) Passa a mão pelo meu rosto...as unhas... (sôfrega agarra as mãos da outra, examina as unhas) (ofegante) ou garras... Arranca minhas feições... Para longe de mim...






D. FLÁVIA (muito doce)


- Eu não posso... Desejaria, mas não posso... (ainda mais doce) Eu, não.. Elas..


DOROTÉIA (num fio de voz)


- As chagas...


D. FLÁVIA (ainda doce)


- Nepomuceno te deu certa quantidade de sua moléstia, que suponho bastante... Tua beleza vai ser destruída, não por mim, que só tenho unhas ou garras, mas por elas...


DOROTÉIA (num suspiro)


- Sim...


D. FLÁVIA


- Deixarás de ter esse rosto... Compreendes agora? ... Porque teu rosto precisa pagar... não o ombro...


DOROTÉIA


- Estou compreendendo...


D. FLÁVIA


- ... nem as costas, nem os joelhos... (violenta) Tua beleza está toda aqui... (aperta entre as mãos o rosto de Dorotéia)


DOROTÉIA (veemente)


- Agora sei que meu rosto é culpado... E lhe digo que você foi muito boa comigo... Se me humilhou foi para meu bem... até me aconselhou a procurar o senhor Nepomuceno... lhe agradeço novamente... posso ter todos os defeitos e agi mal quando entrei para aquela vida... mas reconheço o bem que me fazem...


D. FLÁVIA


- Sei... e agora vamos esperar... (na sua felicidade realizada) esperar a moléstia que vai reinar em ti, e a náusea que vai reinar na minha filha... (iluminada) E se viessem ao mesmo tempo?


DOROTÉIA (doce)


- Seria tão bom!...


(D. FLÁVIA SENTA-SE DE FRENTE PARA A PLATÉIA; ABRE SOBRE OS JOELHOS UM NOVELO DE LÃ E INICIA A MAIS CASTA DAS ATIVIDADES; O TRICÔ. DOROTÉIA DE PÉ, A SEU LADO, ERGUE O ROSTO, OS OLHOS FECHADOS, AS MÃOS POSTAS.)


(FIM DO SEGUNDO ATO)

Um comentário:

Coordenação de Artes Cênicas - CAC disse...

Olá Janaína!
Os currículos dos ministrantes das oficinas já estão no ar no nosso blog.
Um abraço da Coordenação de Artes Cênicas!