Se me perguntassem qual a mais feia impostura da nossa época, eu daria a seguinte e fulminante resposta: — é a cínica promoção que se faz do jovem. Não há mais, como no passado, o conflito das gerações. Até os velhinhos nostálgicos, espectrais, da porta da Colombo, adulam a juventude. E, ainda ontem, um rapaz da puc bate o telefone para mim. Atendo e sou interpelado: — “O senhor é contra o jovem?”.
Ao ouvir falar em “o jovem”, respondi, com a mais singela e casta boa-fé: — “Nem conheço”. Realmente, não conheço “o jovem”, como não conheço “o artista”, como não conheço “o judeu”. Foi a Bernard Shaw, parece, que perguntaram sobre a multidão. Uma pergunta idiota, mais ou menos assim: — “Que é que o senhor acha da multidão?”. E ele retrucou: — “Gosto ou desgosto de quem tem uma cara só”.
Aliás, não tem nenhuma e, repito, a multidão não tem cara. Volto ao telefonema. O rapaz não gostou de minha resposta: — “O senhor está sofismando”, resmungou. E então, eu, com urbanidade, paciência, comecei: — “Se estou sofismando, vamos lá”. Perguntei-lhe pela cara, endereço e domicílio de “o jovem”. O rapaz zangou-se de vez. Disse: — “O senhor é um velho!”. Eu ia responder-lhe que sou realmente uma múmia, quando ele bateu com o telefone.
E eu, numa cava depressão, vim para a máquina escrever estas notas. Se bem entendi, a origem do telefonema é um episódio que contei há três ou quatro dias. Se vocês não se lembram, conto outra vez. Foi o caso de um padre progressista que resolveu — como direi? — atualizar Virgem Maria e Jesus. Hoje em dia, tudo é “pra frente”. Ama-se “pra frente”, trai-se “pra frente”, mata-se “pra frente” etc. etc. E o padre imaginou também um Nosso Senhor “pra frente”,
E, no primeiro sermão, saiu-se com esta: — “Virgem Maria, a mãe do jovem Salvador”. O toque promocional lhe pareceu da maior eficácia. O papel de puro e simples “Salvador” não bastava. A época exige a certidão de idade. E assim se insinuou a imagem de um Cristo “pra frente”.
Falei do “jovem” telefonema para chegar ao “jovem” teatro. Há, por aí, um “jovem” autor, o Plínio Marcos, que está fazendo um sucesso ultrajante. No momento, não há teatro que não o esteja representando. É um nome obsessivo, já irrespirável. Com uma fecundidade de Dumas pai acabará milionário, se os colegas não o liquidarem.
Disse eu que o brasileiro é um pobre ser, crispado de humildade. Bem. Já faço uma ressalva: — essa humildade pára no autor teatral. Portanto, a verdade retificada é a seguinte: — somos todos humildes, menos o autor teatral. Este não o é jamais. O sujeito que, aqui, faz uma peça é capaz de tudo. Toma-se de uma autopaixão, de um narcisismo homicida. Mas eu nada objetaria ao narcisismo ou à autopaixão. Para mim, tanto faz que um brasileiro viva a lamber a própria imagem com unção inaudita.
O diabo é que o nosso autor quer ser o único. Basta repassar a carreira do jovem Plínio Marcos. (Não tão jovem porque já fez os 32.) Sua história e sua lenda lembram as de Knut Hansum. Também Plínio Marcos foi tudo: — baleiro, camelô, palhaço, faxineiro, garçom, tudo. E acabou no Teatro de Arena de São Paulo. Ah, vocês não imaginam a ênfase do Teatro de Arena. Qualquer bate-papo, lá, chama-se “laboratório”; outro bate-papo é “seminário”. E, em cada metro quadrado, há um autor.
Plínio Marcos passou, no Teatro de Arena, meses, anos. Não saía de lá. Conversou mil vezes com Augusto Boal, com Guarnieri; e com os outros. Todos o viam com os flancos abarrotados de fecundidade. Ele faz, a bem dizer, uma peça por dia. Pois essa abundância autoral causava, no Teatro de Arena, o maior desgosto e nojo. Jamais Augusto Boal ou Guarnieri foi dizer ao pobre Plínio: — “Vamos te montar” (a frase saiu-me horrível).
Se o não tão jovem autor ainda lá estivesse, continuaria virginalmente inédito. Sim, não teria uma vírgula encenada. Até que, um dia, apanhou um original seu e foi representá-lo num boteco. E o público de paus-d’água, gigolôs, contrabandistas e senhoras indignas foi muito mais generoso e solidário do que o Teatro de Arena. Ali, começou a glória.
E explodiu, por toda a parte, a presença de Plínio Marcos. Eis o que eu queria dizer: — a ascensão só foi possível pela surpresa. O Teatro de Arena sabia do seu talento e preparou a resistência inexpugnável. Os outros, não. O talento do rapaz apanhou todo o mundo indefeso. E não foi só a glória. Dinheiro, também. Ainda sábado o dramaturgo recebia, do governador da Guanabara, um cheque de quatro mil cruzeiros novos. Por toda a parte, os milhões o atropelam.
É demais. No momento, lavram, no Brasil, duas indignações soberbas: — uma é o ordenado do Chacrinha. Assim somos nós. Nenhum brasileiro, vivo ou morto, está disposto a admitir que outro brasileiro ganhe, por mês, oitenta milhões. A outra indignação é a presença numerosa de Plínio Marcos no teatro nacional. O homem está faturando em todas as bilheterias. Dirá algum espírito estreita e amargamente positivo: — “É o palavrão”.
Não sei, nem conheço a influência do palavrão nas leis do sucesso. Admito que seja esse um dos fatores e explico. Nunca se viu uma época mais pornográfica do que a nossa. Aconteceu uma com um amigo meu que considero extremamente simbólica. O meu amigo, já quarentão, apaixonou-se por uma menina de 21. Menina “pra frente”, claro. Podemos imaginar a truculência das paixões tardias. E o meu amigo ia largar família, tudo; fugiria de carruagem como nos folhetins de Ponson Du Terrail. Até que, um dia, vai-se encontrar com a bem-amada; ela não lhe disse nem “oba”. Sem que, nem para que, a troco de nada, recebe-o com uma saraivada de palavrões jamais concebidos. Meu amigo rebentou em soluços. Sentado no meio-fio, chorava de se ouvir no fim da rua.
A indignação contra Plínio Marcos já se organiza. Vão queimá-lo. Anteontem, um crítico foi procurar o produtor Ginaldo de Sousa: — “Você vai levar o Plínio Marcos?”. Resposta: — “Vou”. O crítico só faltou trepar na mesa e fazer um comício: — “Não faça isso! O Plínio Marcos já encheu!”. E repetia: — “Não tem mais nada que dizer! Está obsoleto! Não percebe que o Plínio Marcos está obsoleto?”. Por coincidência, pouco depois entra lá o próprio Plínio Marcos. Começa uma discussão com o crítico. E o autor põe-se a berrar: — “Pois fique sabendo que não faço peça para meia dúzia. Vou sair dos teatros para os campos de futebol. Quero representar para duzentas mil pessoas!”. E, ao vociferar tudo isso, Plínio Marcos atirava patadas como num espasmo mediúnico.
[24/1/1968]
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