quinta-feira, 11 de setembro de 2008

AMA-SE, TRAI-SE, MATA-SE “PRA FRENTE”

Se me perguntassem qual a mais feia impostura da nossa época, eu daria a seguinte e fulminante resposta: — é a cínica promoção que se faz do jovem. Não há mais, como no passa­do, o conflito das gerações. Até os velhinhos nostálgicos, es­pectrais, da porta da Colombo, adulam a juventude. E, ainda ontem, um rapaz da puc bate o telefone para mim. Atendo e sou interpelado: — “O senhor é contra o jovem?”.
Ao ouvir falar em “o jovem”, respondi, com a mais singela e casta boa-fé: — “Nem conheço”. Realmente, não conheço “o jovem”, como não conheço “o artista”, como não conheço “o judeu”. Foi a Bernard Shaw, parece, que perguntaram so­bre a multidão. Uma pergunta idiota, mais ou menos assim: — “Que é que o senhor acha da multidão?”. E ele retrucou: — “Gosto ou desgosto de quem tem uma cara só”.
Aliás, não tem nenhuma e, repito, a multidão não tem ca­ra. Volto ao telefonema. O rapaz não gostou de minha respos­ta: — “O senhor está sofismando”, resmungou. E então, eu, com urbanidade, paciência, comecei: — “Se estou sofismando, va­mos lá”. Perguntei-lhe pela cara, endereço e domicílio de “o jovem”. O rapaz zangou-se de vez. Disse: — “O senhor é um velho!”. Eu ia responder-lhe que sou realmente uma múmia, quando ele bateu com o telefone.
E eu, numa cava depressão, vim para a máquina escrever estas notas. Se bem entendi, a origem do telefonema é um epi­sódio que contei há três ou quatro dias. Se vocês não se lem­bram, conto outra vez. Foi o caso de um padre progressista que resolveu — como direi? — atualizar Virgem Maria e Jesus. Hoje em dia, tudo é “pra frente”. Ama-se “pra frente”, trai-se “pra frente”, mata-se “pra frente” etc. etc. E o padre imaginou tam­bém um Nosso Senhor “pra frente”,
E, no primeiro sermão, saiu-se com esta: — “Virgem Ma­ria, a mãe do jovem Salvador”. O toque promocional lhe pare­ceu da maior eficácia. O papel de puro e simples “Salvador” não bastava. A época exige a certidão de idade. E assim se insi­nuou a imagem de um Cristo “pra frente”.
Falei do “jovem” telefonema para chegar ao “jovem” tea­tro. Há, por aí, um “jovem” autor, o Plínio Marcos, que está fazendo um sucesso ultrajante. No momento, não há teatro que não o esteja representando. É um nome obsessivo, já irrespirá­vel. Com uma fecundidade de Dumas pai acabará milionário, se os colegas não o liquidarem.
Disse eu que o brasileiro é um pobre ser, crispado de hu­mildade. Bem. Já faço uma ressalva: — essa humildade pára no autor teatral. Portanto, a verdade retificada é a seguinte: — so­mos todos humildes, menos o autor teatral. Este não o é jamais. O sujeito que, aqui, faz uma peça é capaz de tudo. Toma-se de uma autopaixão, de um narcisismo homicida. Mas eu nada ob­jetaria ao narcisismo ou à autopaixão. Para mim, tanto faz que um brasileiro viva a lamber a própria imagem com unção inaudita.
O diabo é que o nosso autor quer ser o único. Basta repas­sar a carreira do jovem Plínio Marcos. (Não tão jovem porque já fez os 32.) Sua história e sua lenda lembram as de Knut Hansum. Também Plínio Marcos foi tudo: — baleiro, camelô, pa­lhaço, faxineiro, garçom, tudo. E acabou no Teatro de Arena de São Paulo. Ah, vocês não imaginam a ênfase do Teatro de Arena. Qualquer bate-papo, lá, chama-se “laboratório”; outro bate-papo é “seminário”. E, em cada metro quadrado, há um autor.
Plínio Marcos passou, no Teatro de Arena, meses, anos. Não saía de lá. Conversou mil vezes com Augusto Boal, com Guarnieri; e com os outros. Todos o viam com os flancos abarrota­dos de fecundidade. Ele faz, a bem dizer, uma peça por dia. Pois essa abundância autoral causava, no Teatro de Arena, o maior desgosto e nojo. Jamais Augusto Boal ou Guarnieri foi dizer ao pobre Plínio: — “Vamos te montar” (a frase saiu-me horrível).
Se o não tão jovem autor ainda lá estivesse, continuaria virginalmente inédito. Sim, não teria uma vírgula encenada. Até que, um dia, apanhou um original seu e foi representá-lo num boteco. E o público de paus-d’água, gigolôs, contrabandistas e senhoras indignas foi muito mais generoso e solidário do que o Teatro de Arena. Ali, começou a glória.
E explodiu, por toda a parte, a presença de Plínio Marcos. Eis o que eu queria dizer: — a ascensão só foi possível pela sur­presa. O Teatro de Arena sabia do seu talento e preparou a re­sistência inexpugnável. Os outros, não. O talento do rapaz apa­nhou todo o mundo indefeso. E não foi só a glória. Dinheiro, também. Ainda sábado o dramaturgo recebia, do governador da Guanabara, um cheque de quatro mil cruzeiros novos. Por toda a parte, os milhões o atropelam.
É demais. No momento, lavram, no Brasil, duas indigna­ções soberbas: — uma é o ordenado do Chacrinha. Assim so­mos nós. Nenhum brasileiro, vivo ou morto, está disposto a ad­mitir que outro brasileiro ganhe, por mês, oitenta milhões. A outra indignação é a presença numerosa de Plínio Marcos no teatro nacional. O homem está faturando em todas as bilhete­rias. Dirá algum espírito estreita e amargamente positivo: — “É o palavrão”.
Não sei, nem conheço a influência do palavrão nas leis do sucesso. Admito que seja esse um dos fatores e explico. Nunca se viu uma época mais pornográfica do que a nossa. Aconteceu uma com um amigo meu que considero extremamente simbó­lica. O meu amigo, já quarentão, apaixonou-se por uma meni­na de 21. Menina “pra frente”, claro. Podemos imaginar a tru­culência das paixões tardias. E o meu amigo ia largar família, tudo; fugiria de carruagem como nos folhetins de Ponson Du Terrail. Até que, um dia, vai-se encontrar com a bem-amada; ela não lhe disse nem “oba”. Sem que, nem para que, a troco de nada, recebe-o com uma saraivada de palavrões jamais con­cebidos. Meu amigo rebentou em soluços. Sentado no meio-fio, chorava de se ouvir no fim da rua.
A indignação contra Plínio Marcos já se organiza. Vão queimá-lo. Anteontem, um crítico foi procurar o produtor Ginaldo de Sousa: — “Você vai levar o Plínio Marcos?”. Resposta: — “Vou”. O crítico só faltou trepar na mesa e fazer um co­mício: — “Não faça isso! O Plínio Marcos já encheu!”. E repe­tia: — “Não tem mais nada que dizer! Está obsoleto! Não perce­be que o Plínio Marcos está obsoleto?”. Por coincidência, pouco depois entra lá o próprio Plínio Marcos. Começa uma dis­cussão com o crítico. E o autor põe-se a berrar: — “Pois fique sabendo que não faço peça para meia dúzia. Vou sair dos tea­tros para os campos de futebol. Quero representar para duzen­tas mil pessoas!”. E, ao vociferar tudo isso, Plínio Marcos atira­va patadas como num espasmo mediúnico.

[24/1/1968]

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