sexta-feira, 12 de setembro de 2008

O MEDO DE PARECER IDIOTA

(Ontem, aliás, anteontem, escrevi: — “O povo desconfia do que entende” etc. etc. Pois bem: — e saiu assim: — “O po­vo desconfia do que não entende”. Novamente fui dominado por uma dessas fúrias sagradas e inúteis. A minha vontade foi sair de porta em porta, de errata em punho, aos berros: — “Eu disse ‘desconfia do que entende!’”. Mas logo desisti de qualquer protesto ou correção. Por trás da frase alterada estava meu velho e imortal conhecido: — o erro de revisão. Sim, o erro de revisão é um poder mais alto do que o próprio dono do jornal.)
Desdobro o parêntese: — disse “erro de revisão” e já não sei se foi mesmo erro de revisão. Talvez tenha sido um estilista. O copydesk emprega, de vez em quando, um Flaubert. Estou imaginando a cena. O Flaubert do copydesk apanha o meu ori­ginal e começa a ler. E, quando digo eu que o povo “desconfia do que entende”, o estilista põe fogo pelas ventas. Apanha o lápis vermelho (porque o vermelho é a cor mais enfática) e tro­ca o sentido de tudo. O povo passa a desconfiar do que não entende. E o simples e fulminante não, posto na frase, transfi­gura o copydesk. Ele arqueja como quem acaba de escrever Salambô.
Fecho o parêntese e passo ao meu amigo Otto Lara Resen­de. Ou por outra: — não é a hora ainda de entrar o meu amigo Otto Lara Resende. Primeiro, gostaria de dizer duas palavras so­bre o intelectual subdesenvolvido. O que o caracteriza, acima de tudo, é o pânico de parecer imbecil. O europeu, não. E já cito um nome que está acima de qualquer dúvida ou sofisma: — Jean-Paul Sartre.
Há quem o considere “a maior cabeça do mundo” (real­mente, Sartre tem inspirado algumas das mais abjetas admira­ções do nosso tempo). Eis o que eu queria dizer: — como todo grande espírito, ele não tem medo nenhum de ser imbecil. Sa­be que o idiota é também uma dimensão do gênio. Ainda re­centemente foi à África. Ao voltar, um repórter perguntou-lhe: — “Que me diz o senhor da literatura africana?”.
Sartre responde na hora: — “Muito mais importante do que toda a literatura africana é a fome de uma criancinha”. Disse isso e ainda lhe pingou um ponto de exclamação. Resposta exemplarmente idiota. E eu, lendo a entrevista do mestre, que­brava a cabeça. Quem, além de Sartre, podia falar assim? Eis o que me perguntava: — quem? E, súbito, ocorreu-me o nome certo: — Luvizaro.
Luvizaro, na Rocinha, cavando votos, diria a mesmíssima coisa, sem lhe retirar uma vírgula. E como se explica que um gênio assim se comporte? Por isso mesmo, porque é gênio, e repito: — o gênio tem, por vezes, a nostalgia do imbecil. Mas essa imbecilidade não seria possível no intelectual brasileiro. Aqui, a inteligência não aceita nenhum risco, jamais.
Agora passo, finalmente, a Otto Lara Resende. Estava em Portugal e atravessou um oceano para ver as bodas de ouro dos seus pais. Eu disse “um” oceano. E fossem dois, ou três, e o Otto os atravessaria do mesmo jeito e com a mesma e cálida efusão. Certa vez eu o chamei de “flor de imprestabilidade”. Fui injusto. Sabemos que o Diabo é um impotente do sentimen­to. Por este lado, Otto nada tem a ver com o abominável Pai da Mentira.
Quando vou julgar um brasileiro, trato de saber, prelimi­narmente, se ele chora. É vital chorar. E o Otto chora. Tempos atrás contei, por alto, um episódio decisivo na vida do meu ami­go. Ele ia partir no dia seguinte para Portugal. E André, seu filho mais velho, belo como um Werther, perguntou-lhe: “Papai, se você tivesse de me dizer uma coisa, de me dar um conselho. Um conselho para toda a vida — o que é que você diria?”.
Na véspera de uma partida, o homem é um pobre ser crispado e indefeso. O Otto pensa um momento. Procurava uma palavra para sempre. E, então, falou: “Meu filho, eu diria: — ‘Ama o próximo como a ti mesmo’”. Foi um desses momen­tos de pai e filho que nem o Otto, nem o André vão esquecer, jamais. Passou. Pouco depois estava o Otto na casa do Hélio Pellegrino. E foram os dois para a cozinha. O Otto não tem úlcera, não tem nada. Mas bebe leite como se tivesse uma víbora cra­vada no duodeno. Depois de tomar a preciosa rubiácea. Minto: — foi leite e não café. Depois de beber o leite, contou a Hélio toda a conversa com o André.
E, quando chegou ao “Ama o próximo como a ti mesmo”, não agüentou mais. Começou a chorar. A casa estava cheia de visitas. E o Hélio, em pânico, arrastou o amigo para o banheiro. Lá se trancaram. Estavam num banheiro sobressalente da casa, estreito, íntimo, como um túmulo. Toda a tensão do Otto se dissolvia em ternura, pena, amor e não sei que mais. E que fez o Hélio Pellegrino? Ah, o Hélio, o Hélio! Metade mineiro, me­tade siciliano, foi mais irmão, mais solidário do que nunca. As duas metades choraram no ombro do Otto.
Bem. Só agora percebo que me alonguei demais num epi­sódio estritamente sentimental. O que eu queria dizer é que o Otto, como eu, como o Hélio ou qualquer outro intelectual bra­sileiro, também tem medo de parecer idiota. Não somos como o genial Sartre que, não raro, chega à debilidade mental. Imagi­nem vocês que eu e Otto opinamos sobre dois quadros de Volpi.
Na véspera de partir para a Europa, o sociólogo Luciano Martins passa na casa do Hélio Pellegrino e deixa lá os dois qua­dros referidos. Criou-se para nós, visitas, a obrigação de gostar de Volpi. Na véspera eu sondara o Mário Pedrosa; cheguei mes­mo à inconveniência de propor um paralelo entre aqueles dois quadros e todo o Portinari; Mário Pedrosa foi taxativo: — “Portinari é um acadêmico”. Esbugalhei-me: — “Acadêmico?”. E já o Mário Pedrosa apontava o Volpi. Aquilo, sim. Volpi era mui­to maior que Portinari.
No pânico de parecer um analfabeto plástico, não insinuei qualquer objeção. O Mário Pedrosa ainda perguntou: — “Você não acha?”. Respondi, com descaro: — “Acho”. Pouco depois, estava eu diante dos quadros de Volpi, dizendo, de puro cinis­mo: — “Muito bom”. Suspense de uma pausa e acrescentei, mais enfático: — “Muito bom mesmo”.
No dia seguinte eu e Otto fomos ver os dois quadros. A questão era saber quem seria melhor, Volpi ou Portinari. Disputou-se, na sala do Hélio Pellegrino, uma acirrada pelada crítica. Paramos no quadro grande, que o anfitrião achava melhor. Eram quatro velas. Talvez uma macumba. Depois lembrei-me do título de um filme: — Candelabro italiano. Já a macum­ba me parecia menos provável do que o candelabro. E súbito, o Hélio Pellegrino solta a última palavra: “É uma porta”. Eu e Otto nos entreolhamos, cobertos de horror.
Bem. Eis o que eu pensava, eis o que o Otto pensava: — “Se aquilo era porta, tudo é permitido, tudo”. Daí a pouco o amigo me puxava e nos trancamos, os dois, no banheiro, o mes­mo banheiro onde ele estrebuchara no mais lindo choro de sua vida. Lá dentro, ele me cochicha: — “Sou muito mais Portinari”. Sussurrei, em seguida: — “Também sou muito mais Portinari”. E, ali, no banheiro inescrutável do Hélio Pellegrino, ca­da um de nós se concedeu o direito de ser, por um momento, um pleno, chapado, eufórico idiota plástico.

[25/1/1968]

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