quarta-feira, 10 de setembro de 2008

O “JOVEM” MONSTRO

O velho Dumas dos Três Mosqueteiros escreveu uns du­zentos livros e todos de seiscentas, oitocentas e até mil páginas (foi autor, inclusive, de folhetins que outros escreviam e ele as­sinava, com um impudor jucundo e mercenário). Pode-se dizer que, ao vir ao mundo, trazia no ventre uma biblioteca inimagi­nável. E, no entanto, vejam vocês: — esse romancista numerosíssimo tinha um elenco mínimo: — dois tipos únicos: — de um lado o gentil-homem; e do outro lado o resto.
A rigor, o folhetinista só levava em conta o gentil-homem. O resto era a massa sem cara, sem nome, sem alma, vagamente abjeta. Já o gentil-homem merecia do velho Dumas todo o seu amor autoral.
E, página a página, por toda uma obra imensa, há o frêmi­to, o resplendor do gentil-homem. Era este um prodigioso ser, de uma graça a um só tempo alada e viril, de uma voluptuosidade quase feminina, sem nenhum medo no coração e com um aristocrático desprezo pela morte.
Dirá alguém que o Conde de Monte Cristo, e outros, e ou­tros, nada tinham de gentil-homem. De acordo, nem importa. A verdade é que o Dumas pai teve, até morrer, a obsessão de um tipo seletíssimo, quase irreal de tão melífluo. Bem. Fiz a divagação para chegar ao brasileiro de minha infância. Por mais absurdo que pareça, o antigo brasileiro teve um toque, mínimo talvez, mas perceptível, de gentil-homem.
Faltavam os punhos, as rendas, as plumas, o salto alto, a peruca e a gesticulação tão plástica e enfática. Sim, tudo é cer­to. Mas tínhamos certas maneiras, certos requintes de sociabilidade e uma atitude reverencial que vinham de um passado ilus­tre. E aqui abro um tópico especial para o cumprimento.
Hoje, o brasileiro é um povo que cumprimenta pouco. Ou­trora, não. O Brasil de 1919 cumprimentava como nenhum ou­tro país. O sujeito tirava o chapéu para todo mundo. Igreja, en­terro, casamento, tudo era saudado. Em nossos dias, o brasilei­ro é um ser crispado de solidão. Cada um leva no peito uma sensação de orfandade. Cabe então a pergunta: — e por quê?
Bem. Os motivos, os fatores, são inumeráveis. Primeiro: — já não temos o instrumento da reverência, que é o chapéu. Co­meça aí a morte de nossa cordialidade. Quando passamos pelo nosso semelhante fazemos, no máximo, a concessão de um “oba”, de um “olá”. E vamos e venhamos: — “oba” é um va­go, direi mesmo, um torpe som. Ah, somos solitários porque cumprimentamos menos.
Mas o desaparecimento do chapéu não explica tudo. Anti­gamente o brasileiro era mais cálido, mais úmido (havia tam­bém o fraque. O fraque influía na nossa correção, e repito: — estava a dois passos do sublime). E há também certo esnobismo de linguagem que passou, sumiu.
As pessoas se saudavam assim: — “Olá, ilustre” ou “Como vai, poeta?” ou ainda “Escuta aqui, batuta”. Certa ocasião vi meu pai chamando um menino da vizinhança: — “Vem cá, poeta”. Nunca me esqueci de um francês, de Marselha, que veio parar em Copacabana. (Já estávamos, então, na Zona Sul.) E aqui não admirou o Pão de Açúcar, o Corcovado, a baía, nada. Andara na batalha do Marne e veio daí a sua incompatibilidade com a vida (acabou se matando). A primeira vez em que o francês se comoveu no Brasil foi ao notar que os brasileiros se tratavam de poetas. O rico, o pobre, o pé-rapado, todos se chamavam de poetas, ou, na pior das hipóteses, de ilustre ou, por último, de batuta.
Havia nessa abundância de alma, nesses rapapés generosís­simos, a nostalgia de um defunto gentil-homem. Hoje entendo o enternecimento do francês, neurótico em último grau, ao ver um país só de poetas. Mas tudo isso desapareceu, até o último vestígio. Eis a amarga verdade: — ninguém tem vontade de cha­mar ninguém de “poeta”, de “ilustre”, de “batuta”. Tanto o “poeta”, como o “ilustre”, como o “batuta” falam de um Rio, ou por outra, de um Brasil definitivamente enterrado.
E vamos e venhamos: — quem quer ser “poeta”, ou “ilus­tre”, ou que outro nome tenha? Ninguém. Lavra por aí um ou­tro tipo de obsessão. Sim, todo mundo quer ser “jovem”. Não importam os méritos, os feitos, as virtudes, os pecados de nin­guém. Só importa ser ou não ser jovem. E os que, por indescul­pável azar, envelheceram, procuram uma espécie de rejuvenescimento no convívio das Novas Gerações.
Quem o diz é d. Avelar: — “Precisamos acreditar no jo­vem”. Li tal declaração e a reli. Mas como? Temos de acreditar numa certidão de idade? E por que não acreditar no sujeito de 35 anos, de 47 anos, ou de 53? O jovem, o jovem. Esse miste­rioso “jovem”, vago, difuso, impessoal, sem cara, sem caráter, só me convence como um monstro.
E se for um pulha? Sim, se for um desses que atiram Aída Cury pela janela? Eis a casta, a singela verdade: — esse “jovem” utópico, ideal, jamais existiu. Corção me dizia: — “É como se alguém dissesse: — vamos acreditar no homem de 43 anos”. Ou, imaginem, o sujeito prova que tem 43 anos ou, então, não entra em casa de família.
Um dia me pediram para falar contra o palavrão. Expliquei ao repórter: — “Contra, não posso”. Dei-lhe a minha explica­ção: — “Todas as palavras são rigorosamente lindas. Nós é que as corrompemos”. Exato, exato. O que se vê é o seguinte: — parte do clero, e bem minoritária, está degradando a palavra, fazendo da palavra gato e sapato.
Diz-se “jovem”, e eis o que acontece: — instala-se no Bra­sil um “jovem” que está acima do bem e do mal, ser terrível, ab­surdo. É irreal, mas não importa: — temos que acreditar no mons­tro. Note-se: — não no monstro como tal. Não, não. O monstro há de ser o Guia, o Líder.
Mas há pior e, repito, há pior. Por toda a parte, a mesma adulação do jovem. Todos querendo estar bem com o “jovem”, isto é, bem com um sujeito que não existe. Outro dia, num ba­tizado, o padre arranjou um jeito de exaltar a juventude. Estava lá o garoto com dor de barriguinha; e o outro a falar da juven­tude. Passou. Mas vim para casa e imaginava: — “Esse é um pa­dre ‘pra frente’”. Dois ou três dias depois, entro numa igreja, já em pleno sermão. Ao primeiro olhar, reconheço o padre “pra frente”. Já me assustei. Está falando em Virgem Maria. Que di­ria ele sobre Nossa Senhora? Não perdi por esperar. Erguendo a voz, como num dó de peito, brama: — “Virgem Maria, a mãe do jovem salvador”. Até Jesus Cristo teria de ser “jovem”, até Jesus Cristo precisa desse toque promocional. Jovem, jovem. Se fosse o velho Salvador, convenceria menos do que um Jesus do Teatro Recreio.

[22/1/1968]

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