O velho Dumas dos Três Mosqueteiros escreveu uns duzentos livros e todos de seiscentas, oitocentas e até mil páginas (foi autor, inclusive, de folhetins que outros escreviam e ele assinava, com um impudor jucundo e mercenário). Pode-se dizer que, ao vir ao mundo, trazia no ventre uma biblioteca inimaginável. E, no entanto, vejam vocês: — esse romancista numerosíssimo tinha um elenco mínimo: — dois tipos únicos: — de um lado o gentil-homem; e do outro lado o resto.
A rigor, o folhetinista só levava em conta o gentil-homem. O resto era a massa sem cara, sem nome, sem alma, vagamente abjeta. Já o gentil-homem merecia do velho Dumas todo o seu amor autoral.
E, página a página, por toda uma obra imensa, há o frêmito, o resplendor do gentil-homem. Era este um prodigioso ser, de uma graça a um só tempo alada e viril, de uma voluptuosidade quase feminina, sem nenhum medo no coração e com um aristocrático desprezo pela morte.
Dirá alguém que o Conde de Monte Cristo, e outros, e outros, nada tinham de gentil-homem. De acordo, nem importa. A verdade é que o Dumas pai teve, até morrer, a obsessão de um tipo seletíssimo, quase irreal de tão melífluo. Bem. Fiz a divagação para chegar ao brasileiro de minha infância. Por mais absurdo que pareça, o antigo brasileiro teve um toque, mínimo talvez, mas perceptível, de gentil-homem.
Faltavam os punhos, as rendas, as plumas, o salto alto, a peruca e a gesticulação tão plástica e enfática. Sim, tudo é certo. Mas tínhamos certas maneiras, certos requintes de sociabilidade e uma atitude reverencial que vinham de um passado ilustre. E aqui abro um tópico especial para o cumprimento.
Hoje, o brasileiro é um povo que cumprimenta pouco. Outrora, não. O Brasil de 1919 cumprimentava como nenhum outro país. O sujeito tirava o chapéu para todo mundo. Igreja, enterro, casamento, tudo era saudado. Em nossos dias, o brasileiro é um ser crispado de solidão. Cada um leva no peito uma sensação de orfandade. Cabe então a pergunta: — e por quê?
Bem. Os motivos, os fatores, são inumeráveis. Primeiro: — já não temos o instrumento da reverência, que é o chapéu. Começa aí a morte de nossa cordialidade. Quando passamos pelo nosso semelhante fazemos, no máximo, a concessão de um “oba”, de um “olá”. E vamos e venhamos: — “oba” é um vago, direi mesmo, um torpe som. Ah, somos solitários porque cumprimentamos menos.
Mas o desaparecimento do chapéu não explica tudo. Antigamente o brasileiro era mais cálido, mais úmido (havia também o fraque. O fraque influía na nossa correção, e repito: — estava a dois passos do sublime). E há também certo esnobismo de linguagem que passou, sumiu.
As pessoas se saudavam assim: — “Olá, ilustre” ou “Como vai, poeta?” ou ainda “Escuta aqui, batuta”. Certa ocasião vi meu pai chamando um menino da vizinhança: — “Vem cá, poeta”. Nunca me esqueci de um francês, de Marselha, que veio parar em Copacabana. (Já estávamos, então, na Zona Sul.) E aqui não admirou o Pão de Açúcar, o Corcovado, a baía, nada. Andara na batalha do Marne e veio daí a sua incompatibilidade com a vida (acabou se matando). A primeira vez em que o francês se comoveu no Brasil foi ao notar que os brasileiros se tratavam de poetas. O rico, o pobre, o pé-rapado, todos se chamavam de poetas, ou, na pior das hipóteses, de ilustre ou, por último, de batuta.
Havia nessa abundância de alma, nesses rapapés generosíssimos, a nostalgia de um defunto gentil-homem. Hoje entendo o enternecimento do francês, neurótico em último grau, ao ver um país só de poetas. Mas tudo isso desapareceu, até o último vestígio. Eis a amarga verdade: — ninguém tem vontade de chamar ninguém de “poeta”, de “ilustre”, de “batuta”. Tanto o “poeta”, como o “ilustre”, como o “batuta” falam de um Rio, ou por outra, de um Brasil definitivamente enterrado.
E vamos e venhamos: — quem quer ser “poeta”, ou “ilustre”, ou que outro nome tenha? Ninguém. Lavra por aí um outro tipo de obsessão. Sim, todo mundo quer ser “jovem”. Não importam os méritos, os feitos, as virtudes, os pecados de ninguém. Só importa ser ou não ser jovem. E os que, por indesculpável azar, envelheceram, procuram uma espécie de rejuvenescimento no convívio das Novas Gerações.
Quem o diz é d. Avelar: — “Precisamos acreditar no jovem”. Li tal declaração e a reli. Mas como? Temos de acreditar numa certidão de idade? E por que não acreditar no sujeito de 35 anos, de 47 anos, ou de 53? O jovem, o jovem. Esse misterioso “jovem”, vago, difuso, impessoal, sem cara, sem caráter, só me convence como um monstro.
E se for um pulha? Sim, se for um desses que atiram Aída Cury pela janela? Eis a casta, a singela verdade: — esse “jovem” utópico, ideal, jamais existiu. Corção me dizia: — “É como se alguém dissesse: — vamos acreditar no homem de 43 anos”. Ou, imaginem, o sujeito prova que tem 43 anos ou, então, não entra em casa de família.
Um dia me pediram para falar contra o palavrão. Expliquei ao repórter: — “Contra, não posso”. Dei-lhe a minha explicação: — “Todas as palavras são rigorosamente lindas. Nós é que as corrompemos”. Exato, exato. O que se vê é o seguinte: — parte do clero, e bem minoritária, está degradando a palavra, fazendo da palavra gato e sapato.
Diz-se “jovem”, e eis o que acontece: — instala-se no Brasil um “jovem” que está acima do bem e do mal, ser terrível, absurdo. É irreal, mas não importa: — temos que acreditar no monstro. Note-se: — não no monstro como tal. Não, não. O monstro há de ser o Guia, o Líder.
Mas há pior e, repito, há pior. Por toda a parte, a mesma adulação do jovem. Todos querendo estar bem com o “jovem”, isto é, bem com um sujeito que não existe. Outro dia, num batizado, o padre arranjou um jeito de exaltar a juventude. Estava lá o garoto com dor de barriguinha; e o outro a falar da juventude. Passou. Mas vim para casa e imaginava: — “Esse é um padre ‘pra frente’”. Dois ou três dias depois, entro numa igreja, já em pleno sermão. Ao primeiro olhar, reconheço o padre “pra frente”. Já me assustei. Está falando em Virgem Maria. Que diria ele sobre Nossa Senhora? Não perdi por esperar. Erguendo a voz, como num dó de peito, brama: — “Virgem Maria, a mãe do jovem salvador”. Até Jesus Cristo teria de ser “jovem”, até Jesus Cristo precisa desse toque promocional. Jovem, jovem. Se fosse o velho Salvador, convenceria menos do que um Jesus do Teatro Recreio.
[22/1/1968]
quarta-feira, 10 de setembro de 2008
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário