sábado, 13 de setembro de 2008

DEZOITO QUILÔMETROS DE MULHER NUA

A barriga do Chacrinha é uma paisagem. Digo isso e paro. Não ia começar com o homem da buzina e sim com Dostoievski. (Chacrinha virá depois.) Eis o que eu queria dizer: — num aniversário da morte de Pushkin, o romancista fez-lhe um dis­curso. Falou uma hora, duas, sei lá. E o discurso foi uma aluci­nação. O olhar de Dostoievski vazava luz como o de um santo.
Pushkin foi apresentado como um profeta. O poeta tem de ser profético ou não é poeta. E o que anunciava Pushkin? A No­va Rússia. Sim, anunciava uma Rússia que se virava e revirava no ventre do tempo. E essa Rússia ainda não revelada diria ao mundo a grande Palavra Nova. Foi isso, se bem me lembro, o que disse Dostoievski.
E, quando acabou, o auditório enlouqueceu. As pessoas se abraçavam, as pessoas se beijavam. Havia um choro unânime, um gemido geral e grosso, como que vacum. Uns trepavam nas cadeiras, outros as cavalgavam. Um velhinho soluçava: — “Que­ro morrer, quero morrer”. Ninguém entendia essa brusca e se­nil nostalgia da morte. E uma moça, de uma beleza jamais con­cebida, veio do fundo do salão. Caminhava, ereta, de fronte al­ta, como uma sonâmbula.
E, diante de Dostoievski, cai-lhe aos pés. Foi terrível o que se viu. Ela curva-se e beija as botas do romancista. Depois levanta-se e desaparece, para sempre, como se jamais tivesse existido. De repente, todos sentiram que o profeta não era Push­kin, mas Dostoievski. Era ele que via a Rússia ainda uterina, a Rússia não nascida.
Passo finalmente ao Chacrinha. Disse eu, no início da pre­sente confissão, que a sua barriga é uma paisagem. Mas o que me importa, mais do que essa plenitude do ventre, é o ordena­do do Chacrinha. Já disse e aqui repito: — seu ordenado defla­gra, no momento, toda uma indignação nacional. Oitenta mi­lhões por mês.
A princípio ninguém acreditou. Nenhum brasileiro mere­cia tanto. Mas chegou um momento em que a evidência varreu a última dúvida. Era a pura, santa e imaculada verdade. Lembro-me de colegas que, na redação, abriam os braços para o céu: — “Como pode? Como pode?”. Cabe então a pergunta: — e onde nasceu a primeira irritação? Resposta: — nas esquerdas.
Não sei que crudelíssimo fatalismo está sempre a empurrar as nossas esquerdas para o erro, para o equívoco, para a aliena­ção. Um brasileiro ganha oitenta milhões. As esquerdas deviam estar exultantes. Sim, elas deviam sonhar com um Brasil de Chacrinhas. Seríamos oitenta milhões a ganhar oitenta milhões.
Mas as esquerdas não aceitam o Chacrinha ou, melhor di­zendo, não aceitam o salário do Chacrinha. É o salário, e não vagos preconceitos éticos e estéticos, que explica o feio, o torvo ressentimento. Num domingo recente saiu um imenso en­saio, quase uma página inteira, em corpo seis. Seu autor era, jus­tamente, uma flor das esquerdas. E metia o pau no Chacrinha, e não só no Chacrinha: — também na música popular, na esco­la de samba, no Chico Buarque, no Fla-Flu e, por fim, no sexo.
O esquerdista negava tudo o que o brasileiro adora. Li aqui­lo e saí perguntando: — “Você gosta de sexo? De música popu­lar? De futebol?”. E, de repente, relendo o tal artigo, percebi por que a nossa esquerda não se comunica com ninguém e vi­ve na mais obtusa solidão. Repito: — a nossa esquerda só fala, escreve, gesticula e só doutrina para si mesma. Por isso é que no 31 de março e no 1º de abril ela ficou mais só do que um Robinson Crusoé sem radinho de pilha.
Claro que no caso dos oitenta milhões há uma unanimida­de. Até o Walther Moreira Salles está em pânico. Se um brasilei­ro passa a ganhar oitenta milhões mensais, algo mudou ou vai mudar. Semelhante fato não pode ser intranscendente. Por trás dessa abundância salarial esconde-se alguma ameaça apavorante.
Foi isso, mais ou menos isso, o que eu disse ao Otto Lara Resende; e foi isso, mais ou menos isso, o que ele me disse. On­tem, almoçamos juntos; o Hélio Pellegrino foi a terceira pre­sença. E depois saímos. O Hélio foi para o consultório. Vim para a cidade na carona do Otto. Propus-lhe um itinerário praia­no para pôr uma paisagem no nosso papo. Seguimos então a orla que vai do Forte ao Leme. O Otto bramava: — “São os mais lindos brotos do mundo. Olha ali, rapaz, olha!”.
“E o Chacrinha?” — perguntará o leitor. Já voltaremos a ele. Por enquanto, abro um parêntese paisagístico. O Otto rea­gia como se ele fosse a Idade Média atirada no meio dos umbi­gos em flor. Ele próprio reconhecia: — “Eu sou a Idade Mé­dia!”. E íamos dizendo, um ao outro, que somos o povo mais lindo do mundo. O Otto gemia: — “Dezoito quilômetros de mulher nua!”. Sentíamos que essa nudez, múltipla, molhada, iné­dita no mundo, era o aviso de um Brasil novo.
Há dois Ottos: — um, público, e outro, do terreno baldio. E poucos provam do bom, do legítimo, do escocês Otto secre­tíssimo. Ah, o que ele disse da esquerda. Claro que a esquerda tem o direito de ser esquerda. O que lhe negamos é o direito de ser tão inepta, tão incompetente, tão irrealista, tão alienada do Brasil e, repito, tão antibrasileira. Examine-se um esquerdis­ta. Ele não chove uma chuva própria. Pensa “idéias feitas”, diz “frases feitas”, sente “sentimentos feitos”. Seu ódio aos Esta­dos Unidos não é realmente um ódio, um sentimento, uma pai­xão. Não. É uma Palavra de Ordem. Se aqui faz calor, e nos Es­tados Unidos, frio, foi o imperialismo norte-americano que rou­bou a nossa neve e a faz chover como papel picado.
E já que o Otto chovia a própria chuva, eu quis chover a minha. Voltamos ao Chacrinha. Perguntei-lhe: — “E o padre Ávi­la?”. Que fazia o padre Ávila ou que faziam os outros sociólo­gos? Os oitenta milhões de Chacrinhas eram um dado socioló­gico gravíssimo. Não é por acaso que um brasileiro, altamente subdesenvolvido, passa a ganhar oitenta milhões. Minto, minto.
O Chacrinha vai ganhar cem. Não mais oitenta. Cem mi­lhões. Quem o afirma é, não o Otto público, inautêntico, das salas, mas o luminoso Otto do terreno baldio. A partir da Pri­meira Missa até a semana passada, o brasileiro não ganharia tan­to, nem juntando cada vintém de várias encarnações. Hoje, em trinta dias, o Chacrinha vai ganhar cem milhões.
Eis o que eu queria dizer: — isso significa que começou to­do um processo. Certas coisas não acontecem de graça. Há, nos milhões de Chacrinhas, um toque de mistério. Ou por outra: — é um mistério não tão misterioso, Se a nossa sociologia limpasse a poeira das próprias lentes, veria o óbvio ululante. Na ver­dade, o salário do Chacrinha é, para nós, o que Pushkin foi pa­ra a Rússia. Sim, o salário do Chacrinha profetiza um Brasil que vem por aí com uma saúde de centauro.
Foi isso o que eu disse ao Otto, foi isso o que o Otto me disse. O amigo me deixou na porta de O Globo. Assim me des­pedi: — “Até logo, Idade Média”. Ainda fiquei, por um momen­to, em cima do meio-fio vendo sumir na primeira esquina o seu medieval Fusca.
[27/1/1968]

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