domingo, 14 de setembro de 2008

O ANTI-BRASIL

Na confissão de sábado, chamava eu a atenção dos leitores para o salário profético do Chacrinha. O formidável animador ganha, por mês, 80 milhões; e pior: — no fim de um ano de contrato, passará a ganhar 100 milhões. Se um brasileiro con­segue ganhar 80 ou 100 milhões por mês, este simples fato na­da tem de simples ou de intranscendente.
Na Índia, há milhões de sujeitos que nunca moraram, nun­ca tiveram um teto, uma mesa, uma cama. Nascem na rua, vi­vem na rua, amam na rua e morrem na rua. Sim, agonizam rente ao meio-fio, com a cara enfiada no ralo. Isso na Índia. Mas não precisa ir tão longe. O Nordeste de d. Hélder. Há, por lá, populações inteiras que, do berço ao túmulo, não ga­nham tanto.
Falei em d. Hélder e sinto nas minhas palavras o tom do nosso arcebispo. Não, não e Deus me livre. Juro que não estou aqui pregando o ódio social. Pelo contrário: — o Chacrinha é nosso irmão, o irmão da miséria, o irmão das necessidades. No passado, sua fatia de pão nem tinha manteiga para lhe barrar por cima. Por trás de sua abundância presente, ainda gemem velhas humilhações e fomes jamais esquecidas.
Chacrinha é a gigantesca vitória do pé-rapado, é a flame­jante ascensão do pobre-diabo. Portanto, tratemos de abençoá-lo e que os seus 80 ou os seus 100 milhões se reproduzam por longos e dilatados anos. E volto ao que dizia. Escrevi que tal salário profetizava um novo Brasil.
E já não sei se será “um” novo Brasil ou se convém pluralizar. Vejam as redações, as escolas, as famílias, as festas, as es­quinas e os botecos. Por tudo que se diz, e ouve, e lê, percebemos que há vários projetos do novo Brasil. Qual deles há de vingar, finalmente? Qual deles terá bastante vitalidade histórica?
Há muita gente disposta a matar e a morrer pelo Brasil do ódio. Pode parecer que eu esteja exagerando. Mas os sintomas estão à nossa vista com apavorante nitidez. Nunca me esqueço de um concurso de romances que a revista Leitura promoveu. Na época, eu ainda acreditava em prêmios e ainda os desejava. Fui, correndo, ler as condições. (E já me via tirando o primeiro lugar, recebendo o dinheiro, sob os delirantes aplausos da as­sistência.) Os concorrentes podiam escrever sobre tudo, menos sobre amor.
Sobre amor, não e nunca. Era uma revista de cultura que vinha dizer, de fronte alta e voz cava: — "Tudo, menos amor!". Foi um dos espantos mais cruéis de toda a minha vida literária. Graças a Deus, alguém protestou: — o romancista Lúcio Car­doso. Escreveu ele, se não me engano na Manhã, um maravi­lhoso artigo. Eis o título — "Os romances do ódio".
Se aparecesse lá uma Ana Karenina, seria expulsa a ponta­pés pela comissão julgadora. Ou um Romeu e Julieta e quantas e quantas obras-primas? Li o artigo de Lúcio Cardoso e passei-lhe o mais veemente telegrama da minha gratidão. Mas o con­curso era um sintoma — começava aqui o ódio ao amor.
Não seria apenas no Brasil, evidentemente. Anos depois, Sar­tre andou por aqui e deu uma entrevista. Declarou o seguinte: — "Eu não escreveria um romance de amor". Disse isso ao la­do de Simone de Beauvoir. Olhando a santa senhora, cochichou um brasileiro a outro brasileiro: — "Está explicado por que ele não gosta do amor". Mas que Sartre fizesse a greve do amor, ótimo, ótimo. O que me apavorava era um Brasil sem amor, um Bra­sil árido, árido como três desertos.
Este povo está vivendo uma época de pouquíssimo amor. O ódio é mais promovido do que marca de refrigerante. No ano passado, fui testemunha auditiva e ocular de duas rixas familia­res. Em ambas as ocasiões, um filho berrou para o pai: — "Te parto a cara! Te parto a cara!". E só não se engalfinharam, à vis­ta da mãe, das tias, dos cunhados, dos outros filhos e das visi­tas, porque nas duas vezes o velho capitulou. "Ficou por isso mesmo?", perguntará o leitor. Não, não ficou por isso mesmo. Num dos episódios, o pai chamou o filho e deu-lhe um Galaxie.
Eu citaria outros exemplos, e outros, e outros. Falta-me, po­rém, espaço. Mas não concluirei sem falar do "poder jovem" Pergunto: — quem é o verdadeiro autor do "poder jovem?". Se­rá o próprio jovem? Eu não teria nada a objetar se o próprio jo­vem apanhasse no chão, a mãos ambas, o Poder. Mas aqui começa o divertidíssimo equívoco: — o autor ou autores do "poder jo­vem" são os velhos, os mais velhos.
O jovem propriamente não moveu uma palha para tornar-se poderoso. Foram os pais, as tias e, numa palavra, a família; foram os professores, os sociólogos, os sacerdotes, os jorna­listas, os políticos. De repente, os velhos resolveram conferir ao jovem, e de graça, méritos e potencialidades jamais suspei­tadas.
Quando me iniciei no jornalismo, um velho profissional me dizia: — "Rapaz, das duas uma: — ou o jovem é um Rimbaud ou uma besta". Pois bem. Hoje, o jovem sofre a promo­ção obsessiva de um sabonete. Cada artigo do dr. Alceu pare­ce investir "o jovem" de uma liderança absurda, utópica, de­lirante, que nunca houve. Por vezes, dá-me vontade de telefo­nar para o dr. Alceu e pedir-lhe: "O senhor podia me apontar um líder de 17, 18, 19 ou, vá lá, de 20 anos?". Mas conven­cionou-se que "o jovem" tem o gênio de Rimbaud. E se duvi­darem, os velhos estarão dispostos a admitir os vícios de Rim­baud.
Justificado, absolvido, adulado pelos velhos, que faz o jo­vem? Nunca odiou tanto. Agora mesmo estou lendo numa pri­meira página de jornal esta chamada: — "Queima de poemas na Cinelândia". No primeiro momento, imaginei que se tratas­se de uma reportagem evocativa da alucinação nazista. Na Ale­manha de Hitler houve algo parecido, algo, sim, que estarreceu o mundo: — a queima de livros. Mas não, especificamente, poe­mas, sonetos etc. etc. Lendo o texto, localizei a coisa no tempo e no espaço: — o fogaréu ocorrerá amanhã, ou hoje, ou já ocor­reu ontem. A data exata, não sei. E os Neros são estudantes bra­sileiros, da Escola Nacional de Belas Artes.
O local escolhido: a doce, a lírica, a carioquíssima Cinelân­dia. Vejam vocês: — na Cinelândia há pombos. E os estudan­tes, em vez de lhes dar milho, vão queimar poemas. Nem se pen­se que é uma crítica literária exdercida com archotes. Nada disso, Não é ódio aos versos, mas ao sentimento. Eles querem e vão queimar versos de amor e porque são de amor.
Isso é a negação do Brasil, o anti-Brasil, o antibrasileiro. Al­guém dirá que já começou a nossa desumanização. Leio a notí­cia e não sei o que pensar, e o que dizer de uma geração que se vinga do amor e crava o ódio no próprio coração.
[29/1/1968]

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