Na confissão de sábado, chamava eu a atenção dos leitores para o salário profético do Chacrinha. O formidável animador ganha, por mês, 80 milhões; e pior: — no fim de um ano de contrato, passará a ganhar 100 milhões. Se um brasileiro consegue ganhar 80 ou 100 milhões por mês, este simples fato nada tem de simples ou de intranscendente.
Na Índia, há milhões de sujeitos que nunca moraram, nunca tiveram um teto, uma mesa, uma cama. Nascem na rua, vivem na rua, amam na rua e morrem na rua. Sim, agonizam rente ao meio-fio, com a cara enfiada no ralo. Isso na Índia. Mas não precisa ir tão longe. O Nordeste de d. Hélder. Há, por lá, populações inteiras que, do berço ao túmulo, não ganham tanto.
Falei em d. Hélder e sinto nas minhas palavras o tom do nosso arcebispo. Não, não e Deus me livre. Juro que não estou aqui pregando o ódio social. Pelo contrário: — o Chacrinha é nosso irmão, o irmão da miséria, o irmão das necessidades. No passado, sua fatia de pão nem tinha manteiga para lhe barrar por cima. Por trás de sua abundância presente, ainda gemem velhas humilhações e fomes jamais esquecidas.
Chacrinha é a gigantesca vitória do pé-rapado, é a flamejante ascensão do pobre-diabo. Portanto, tratemos de abençoá-lo e que os seus 80 ou os seus 100 milhões se reproduzam por longos e dilatados anos. E volto ao que dizia. Escrevi que tal salário profetizava um novo Brasil.
E já não sei se será “um” novo Brasil ou se convém pluralizar. Vejam as redações, as escolas, as famílias, as festas, as esquinas e os botecos. Por tudo que se diz, e ouve, e lê, percebemos que há vários projetos do novo Brasil. Qual deles há de vingar, finalmente? Qual deles terá bastante vitalidade histórica?
Há muita gente disposta a matar e a morrer pelo Brasil do ódio. Pode parecer que eu esteja exagerando. Mas os sintomas estão à nossa vista com apavorante nitidez. Nunca me esqueço de um concurso de romances que a revista Leitura promoveu. Na época, eu ainda acreditava em prêmios e ainda os desejava. Fui, correndo, ler as condições. (E já me via tirando o primeiro lugar, recebendo o dinheiro, sob os delirantes aplausos da assistência.) Os concorrentes podiam escrever sobre tudo, menos sobre amor.
Sobre amor, não e nunca. Era uma revista de cultura que vinha dizer, de fronte alta e voz cava: — "Tudo, menos amor!". Foi um dos espantos mais cruéis de toda a minha vida literária. Graças a Deus, alguém protestou: — o romancista Lúcio Cardoso. Escreveu ele, se não me engano na Manhã, um maravilhoso artigo. Eis o título — "Os romances do ódio".
Se aparecesse lá uma Ana Karenina, seria expulsa a pontapés pela comissão julgadora. Ou um Romeu e Julieta e quantas e quantas obras-primas? Li o artigo de Lúcio Cardoso e passei-lhe o mais veemente telegrama da minha gratidão. Mas o concurso era um sintoma — começava aqui o ódio ao amor.
Não seria apenas no Brasil, evidentemente. Anos depois, Sartre andou por aqui e deu uma entrevista. Declarou o seguinte: — "Eu não escreveria um romance de amor". Disse isso ao lado de Simone de Beauvoir. Olhando a santa senhora, cochichou um brasileiro a outro brasileiro: — "Está explicado por que ele não gosta do amor". Mas que Sartre fizesse a greve do amor, ótimo, ótimo. O que me apavorava era um Brasil sem amor, um Brasil árido, árido como três desertos.
Este povo está vivendo uma época de pouquíssimo amor. O ódio é mais promovido do que marca de refrigerante. No ano passado, fui testemunha auditiva e ocular de duas rixas familiares. Em ambas as ocasiões, um filho berrou para o pai: — "Te parto a cara! Te parto a cara!". E só não se engalfinharam, à vista da mãe, das tias, dos cunhados, dos outros filhos e das visitas, porque nas duas vezes o velho capitulou. "Ficou por isso mesmo?", perguntará o leitor. Não, não ficou por isso mesmo. Num dos episódios, o pai chamou o filho e deu-lhe um Galaxie.
Eu citaria outros exemplos, e outros, e outros. Falta-me, porém, espaço. Mas não concluirei sem falar do "poder jovem" Pergunto: — quem é o verdadeiro autor do "poder jovem?". Será o próprio jovem? Eu não teria nada a objetar se o próprio jovem apanhasse no chão, a mãos ambas, o Poder. Mas aqui começa o divertidíssimo equívoco: — o autor ou autores do "poder jovem" são os velhos, os mais velhos.
O jovem propriamente não moveu uma palha para tornar-se poderoso. Foram os pais, as tias e, numa palavra, a família; foram os professores, os sociólogos, os sacerdotes, os jornalistas, os políticos. De repente, os velhos resolveram conferir ao jovem, e de graça, méritos e potencialidades jamais suspeitadas.
Quando me iniciei no jornalismo, um velho profissional me dizia: — "Rapaz, das duas uma: — ou o jovem é um Rimbaud ou uma besta". Pois bem. Hoje, o jovem sofre a promoção obsessiva de um sabonete. Cada artigo do dr. Alceu parece investir "o jovem" de uma liderança absurda, utópica, delirante, que nunca houve. Por vezes, dá-me vontade de telefonar para o dr. Alceu e pedir-lhe: "O senhor podia me apontar um líder de 17, 18, 19 ou, vá lá, de 20 anos?". Mas convencionou-se que "o jovem" tem o gênio de Rimbaud. E se duvidarem, os velhos estarão dispostos a admitir os vícios de Rimbaud.
Justificado, absolvido, adulado pelos velhos, que faz o jovem? Nunca odiou tanto. Agora mesmo estou lendo numa primeira página de jornal esta chamada: — "Queima de poemas na Cinelândia". No primeiro momento, imaginei que se tratasse de uma reportagem evocativa da alucinação nazista. Na Alemanha de Hitler houve algo parecido, algo, sim, que estarreceu o mundo: — a queima de livros. Mas não, especificamente, poemas, sonetos etc. etc. Lendo o texto, localizei a coisa no tempo e no espaço: — o fogaréu ocorrerá amanhã, ou hoje, ou já ocorreu ontem. A data exata, não sei. E os Neros são estudantes brasileiros, da Escola Nacional de Belas Artes.
O local escolhido: a doce, a lírica, a carioquíssima Cinelândia. Vejam vocês: — na Cinelândia há pombos. E os estudantes, em vez de lhes dar milho, vão queimar poemas. Nem se pense que é uma crítica literária exdercida com archotes. Nada disso, Não é ódio aos versos, mas ao sentimento. Eles querem e vão queimar versos de amor e porque são de amor.
Isso é a negação do Brasil, o anti-Brasil, o antibrasileiro. Alguém dirá que já começou a nossa desumanização. Leio a notícia e não sei o que pensar, e o que dizer de uma geração que se vinga do amor e crava o ódio no próprio coração.
[29/1/1968]
domingo, 14 de setembro de 2008
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