quinta-feira, 25 de setembro de 2008

A ESTRELA DO ATROPELADO

Ah, não me esqueço do Quintanilha Ribeiro. Perdão, per­dão. Não é o homem de Jânio. Falo do puro e simples Quinta­nilha, figura que jamais teve, na vida, o mais tênue e longínquo vínculo presidencial. Era repórter e já acrescento: — de polí­cia. O leitor, que é um ingênuo, não entende de hierarquia de redação. Eis o que eu queria dizer: — salvo em O Dia e na Luta Democrática, o repórter de polícia é, em nossa imprensa mo­derna, um sujeito antigo, obsoleto, como que espectral.
E pior: — deixou de existir em várias redações. No Jornal do Brasil, por exemplo, é mais fácil encontrar uma girafa do que um repórter de polícia. Na folha do dr. Brito (antigamente, chamava-se jornal de folha), na folha do dr. Brito, dizia eu, não abrem espaço para o crime. Todos os dias há a mulher que mata o marido e, inversamente, o marido que mata a mulher. O brasileiro é um fascinado pelo crime passional (cada um de nós se iden­tifica ou com a vítima, ou com o criminoso, ou com ambos).
Mas, em vão o brasileiro mata e se mata; em vão é atrope­lado e fica estendido, no asfalto, rente ao meio-fio; em vão os namorados fazem pactos de morte e os consumam (há cada vez menos namorados e cada vez menos pactos de morte). Tudo inútil. O dr. Brito não lhes dá cobertura nenhuma, nenhuma.
(Mas eu queria falar, ainda, do atropelado. Há sempre al­guém, jamais identificado, alguém sem nome e sem cara, que acende uma vela e a põe ao lado do morto de rua. É a estrela do atropelado; sim, estrela que nenhum vento apagará. E o Jor­nal do Brasil não pinga uma palavra sobre o defunto do asfal­to. Por que o silêncio cruel e aristocrático? Recusar uma notí­cia ao atropelado é o mesmo que furtar a vela que o alumia.)
Volto ao Quintanilha. Já o conheci velho, velho de uma ida­de inimaginável. Teria seus sessenta e tantos, quase setenta. Mais velho que o século, pertencia a uma geração prodigiosa. Nos bons tempos, o repórter de polícia estava a dois passos do pa­tético, a dois passos do sublime. O grande crime tinha primeira página e subia às manchetes.
Eu começava no jornal. Era garoto e fui ser repórter de po­lícia. Bem me lembro dos meus primeiros dias profissionais. Até os contínuos me fascinavam. Cada qual tinha seu patético. Re­visores, linotipistas, todos, todos sugeriam não sei que misté­rio. Mas, pouco a pouco, fui percebendo tudo. Acabei desco­brindo que os mais importantes eram os piores. Dois ou três faziam o artigo de fundo. E andavam pela redação como pavões enfáticos. Mas não tinham nada que dizer.
A grande figura da redação era mesmo o repórter de polí­cia. O Quintanilha, por exemplo, sabia de tudo, vira tudo. Por trás de suas histórias, havia toda uma cálida, maravilhosa expe­riência shakespeariana. Seria talvez analfabeto, sei lá. E estava sempre bêbado. Deixara de beber há meses, anos, e continua­va bêbado. Não importa. Contava coisas lindas.
Mas foi Quintanilha Ribeiro (agora vai assim mesmo) que me falou de Clementino. Clementino. Eis aí um nome que não diz nada, não insinua nenhum vaticínio, não emana nenhum mis­tério. Clementino, como Oliveira, é um nome de vizinho. Mui­to bem. Aos 23 anos, Clementino deixou o segundo ano de Me­dicina — para ser barbeiro de necrotério. A família esbugalhou-se, sem entender nada. Todos repetiam a pergunta, sem lhe achar a resposta: — e por quê? Se fosse barbeiro de salão, barbeiro de barbearia, vá lá. Nunca de necrotério.
Clementino tinha um tio que se dava com o então ministro da Fazenda. E o tio estava disposto a arranjar-lhe uma nomea­ção para fiscal do Imposto de Consumo. Era o emprego que qualquer brasileiro, vivo ou morto, pedia a Deus. Pois Clemen­tino ergueu a fronte e, trêmulo, respondeu: — “Obrigado, mas não aceito”. Pausa e completa: — “Vou ser barbeiro de necro­tério”. O tio foi o primeiro que soube e o primeiro que se hor­rorizou. No dia seguinte, o rapaz tomava posse.
Podia ser uma opção profissional. Assim como se nasce poe­ta, arquiteto, Chico Buarque de Hollanda, flautista ou domador, Clementino teria nascido barbeiro de necrotério. Nem isso. Não podia ver morto e jamais vira um cadáver. (Não comparecera nem ao velório da própria avó.) A morte era a sua náusea. E nin­guém entendia que, de repente, por vontade própria, o rapaz começasse a escanhoar defuntos. Uma tia veio de Belém do Pa­rá perguntar-lhe: — “Por que barbeiro de necrotério?”. Respon­dera apenas: — “Deus sabe”. Só uma pessoa nada perguntou, nada quis saber: — o pai.
Um ano depois, a mãe cai doente, muito doente. Depois se diria que seu desgosto mortal fora o emprego do filho. Do fundo da cama, chama o Clementino. Sua voz é um sopro: — “Meu filho, estou morrendo. Quero saber. Por que você foi ser barbeiro de necrotério? Diz”. E, então, só então, respondeu: — “Fui ser barbeiro de necrotério porque dei na cara do meu pai”. Pausa e repetiu: — “Dei na cara do meu pai”. A mãe, com a lucidez dos que vão morrer, deve ter entendido tudo, tudo. Suspirou: — “Morro feliz”. Pôs a mão diáfana na do filho. Sor­ria: — “Deus te abençoe”.
Era por expiação que estava no necrotério. Castigo. Um dia, discutira com o pai e o esbofeteara. Ninguém viu, ninguém sou­be. E ambos calaram. Só a morte arrancou o segredo que nem o pai, nem o filho contariam jamais. Seu horror aos mortos es­tava intacto; continuava a náusea em flor. Só não estourava os miolos porque teria nojo do próprio cadáver. E precisava so­frer. Fazia a barba até do defunto que ninguém reclama. Era uma autoflagelação de cada minuto. E nada o assombrava mais do que a nudez ofendida, a nudez humilhada da autópsia. Mil ve­zes tinha de sair para vomitar, atrás das portas.
Quintanilha me dizia sempre: — “Formidável o Clementi­no”. Isso aconteceu em 1925, por aí. E eu penso que as Novas Gerações não dariam um Clementino. De 25 para cá, algo mu­dou no brasileiro e repito: — há um novo brasileiro, de poten­cialidades imprevisíveis. Ainda ontem encontro, numa esquina da cidade, o Eduardo Chermont de Brito. Ele me chama para um canto: — “Seu Nelson, vem ouvir essa, vem ouvir essa”.
A tarde caía, invisível, por trás dos edifícios. E o Chermont me contou tudo. Eis o episódio: — certa mãe grã-fina surpreen­de o filho arrombando o cofre do pai. Balbucia: — “Que é isso, meu filho? Que é que você está fazendo?”. E o rapaz, sem pe­na, nem medo: — “Meu pai não morre e eu tenho que roubar”. Entupia os bolsos de dinheiro e repetia: — “O culpado é meu pai, que não morre”.
O ódio ao pai. O ódio ao pai que não morre. É a paixão que está encravada em tantos lares brasileiros. Não sei se já se pode falar num Brasil Karamazov. Imagino um jovem brasilei­ro que vê o pai como o velho Demétrio Karamazov e forma de­le essa imagem vil.

[6/2/1968]

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