quarta-feira, 24 de setembro de 2008

A FOME DO NORDESTE

Cada época tem suas fatalidades próprias, inconfundíveis, inalienáveis. Por exemplo: — os golpes de ar. Não há, hoje, na­da mais antigo, obsoleto, espectral. Ninguém fala em golpes de ar e ninguém os teme. Mas a geração do Eça, dos “Vencidos da vida”, conheceu esse pânico profundo.
E mais: — o golpe de ar era, inclusive, recurso literário. Eu citaria, ao acaso, a Correspondência de Fradique Mendes. Ao escrever a primeira parte do livro, o autor esbarrou num sério problema dramático e estilístico. Matar Fradique, eis a questão. Mas, como? Eça não pensou duas vezes. Transfixou-lhe o pul­mão com um dos golpes de ar que eram igualmente válidos tanto na ficção como na vida real. E o que é a tuberculose da Dama das camélias senão, exatamente, outro golpe de ar?
Ah, a morte foi, para as gerações passadas, de uma simpli­cidade total. Bastava que uma mão imprudente abrisse, de supetão, uma porta ou uma janela. E o vento súbito vinha agredir o pulmão de uma tia, de um cunhado, de uma filha ou até de uma visita. E assim se instalava um processo pneumônico irre­versível.
Mas o tempo passou e os golpes de ar sumiram dos roman­ces e da vida prática. Se me perguntarem qual a fatalidade de nossa época, responderia que são as esquerdas. Dirá o leitor que elas sempre existiram. Gerações passadas também conheceram o seu gesto, a sua ênfase, o seu palavrão. E o próprio Eça já ci­tado refere o caso de um rapaz esguio e pálido como um suicida.
Por onde andava ia exalando a sua cava depressão. Ainda por cima vestia-se de um luto pesado e inconsolável. Um dia, vendo-o suspirar perto da janela, alguém perguntou pela origem de tão funda melancolia. Ele alça a fronte e diz, cheirando uma camélia: — “Como posso sorrir se a Polônia sofre?”. A Po­lônia era o Vietnã da ocasião e o mancebo, uma flor das esquer­das.
Mas, nos dias do Eça, do Ramalho, a esquerda era minori­tária como a torcida do Botafogo. Sim, estava reduzida a um grupo seletíssimo. E o personagem do Eça explica tudo. Já na­quele tempo havia uma distância entre a esquerda e o perigo. Só que a distância de Portugal para a Polônia é menor que a do Antonio’s para o Vietnã.
Alguém poderá objetar que estou insistindo muito nas es­querdas. Mas explico. Primeiro, qualquer autor tem suas fixa­ções fatais e o d. Hélder é um exemplo. Interrogado certa vez sobre o amor livre, respondeu: — “E a fome do Nordeste?”. De outra feita pediram sua opinião sobre o Egito e Israel e o arcebispo retrucou: — “E a fome do Nordeste?”. Vejam bem: — não interessam as outras fomes. Se, fora do Nordeste, há bra­sileiros bebendo, a mãos ambas, a água das sarjetas, não con­tem com d. Hélder. Deu exclusividade à fome do Nordeste.
Portanto, admitam que também cultive eu as minhas ob­sessões. Por outro lado, a esquerda é a fatalidade da nossa épo­ca. Eu sei que ela continua minoritária. Mas a torcida do Bota­fogo, também minoritária, é mais feroz que a do Flamengo (só o Salim Simão, com o seu berreiro individual, solitário, lota o Estádio Mário Filho).
Eis o que eu queria dizer: — não me interessa a expressão numérica da “festiva”. O que importa é a sua capacidade de in­fluir nos usos, costumes, idéias, sentimentos, valores do nosso tempo. Ela não briga, nem ameaça as instituições. Mas, em to­das as áreas, as pessoas assumem as poses das esquerdas.
Ontem, falei do teatro. Mas não é só o teatro, também a música popular. Outro dia, num programa de televisão, apare­ceu uma musiquinha sobre o Vietnã. Meu Deus, por que não sobre Magé? Temos solidariedades mais urgentes, mais premen­tes. Magé está ali, a dois passos. Podemos apalpá-la, podemos farejá-la. Assim como o rapaz do Eça suspirava pela Polônia, eis-nos aqui a arrotar pelo Vietnã. Há todo um Brasil para ser feito. Acontece que esse Brasil incriado é uma tarefa, sim, uma tarefa que ninguém quer assumir nem a tiro.
Passem no Antonio’s e façam esta singela e casta observa­ção: — a “festiva” é morena. Nem se pense que se trata de uma cor nata e hereditária. Nunca. Essa pele dourada foi arduamen­te conquistada na praia. Lembrei-me de que, na terça-feira de­pois do Natal, passei de táxi por Copacabana. E confesso meu deslumbramento. Praia apinhada, de um Forte a outro Forte, isto é, da igrejinha ao Leme. Dia utilíssimo, depois de quatro feriados. E lá estavam as esquerdas, todas as esquerdas, lustrando-se ao sol, dourando-se ao sol, com o cavo umbigo à mostra. E, à noite, lá se instalam no Antonio’s, tomando cerve­ja em lata.
Mas insisto: — apesar da eugenia da manhã, da boêmia da noite, é uma potência. Não sai da praia nem do Antonio’s, mas influi em tudo. Influi num verso de modinha e até num decote de mulher. Vi, outro dia, num sarau de grã-finos, uma menina da “festiva”. Nas costas abria-se um generoso decote. Apare­cia, de alto a baixo, a espinha dorsal ou, como queria o poeta, a “flauta de vértebras”. Eu imaginava que também aquele era um decote ideológico.
Ah, ninguém consegue ser nada, em nossa época, sem o empurrão promocional das esquerdas. Waldomiro Autran Dou­rado acaba de publicar sua Ópera dos mortos. É uma obra-prima. Mas ninguém escreve sobre a Ópera dos mortos. É apenas uma obra de arte, irredutível obra de arte e nada mais. A qualidade estilística parece uma alienação insuportável. E como é a “festiva” que promove o artista, ou o enterra, faz-se para o livro de Autran um feio e vil silêncio.
Mas há, de vez em quando, uma surpresa. Ligo para o Hé­lio Pellegrino. E me diz o poeta e psicanalista: — “Estou aqui com o doce radical”. O assim chamado “doce radical” é Antô­nio Callado. E continua o Hélio: — “Acaba de me ler um poe­ma”. Há o suspense de uma pausa. O Hélio completa: — “De amor. Poema de amor”. Nada descreve e nada se compara ao meu espanto. Ainda perguntei: — “De amor mesmo? Tem certeza? É só de amor?”. O Hélio deu-me a sua palavra: — “Amor, e só de amor”.
Na minha crassa ingenuidade, imagino que o doce radical estivesse lendo um Verlaine, ou sei lá. Mas Hélio, qual um par­nasiano, deixara para o fim a chave de ouro: — “Poema dele mesmo. O autor é o próprio radical”. Na minha confusão imaginava eu o que diriam as esquerdas, o escândalo amargo da “fes­tiva”. Depois dos versos de amor, como poderá Callado voltar ao Antonio’s e lá exibir o seu bonito perfil de medalha, de moe­da, de cédula? Mas esperem, esperem. O doce radical corre, sem o saber, um risco físico. Por enquanto, os rapazes das Belas Ar­tes queimam os poemas. Um dia, queimarão os poetas.

[3/2/1968]

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