Cada época tem suas fatalidades próprias, inconfundíveis, inalienáveis. Por exemplo: — os golpes de ar. Não há, hoje, nada mais antigo, obsoleto, espectral. Ninguém fala em golpes de ar e ninguém os teme. Mas a geração do Eça, dos “Vencidos da vida”, conheceu esse pânico profundo.
E mais: — o golpe de ar era, inclusive, recurso literário. Eu citaria, ao acaso, a Correspondência de Fradique Mendes. Ao escrever a primeira parte do livro, o autor esbarrou num sério problema dramático e estilístico. Matar Fradique, eis a questão. Mas, como? Eça não pensou duas vezes. Transfixou-lhe o pulmão com um dos golpes de ar que eram igualmente válidos tanto na ficção como na vida real. E o que é a tuberculose da Dama das camélias senão, exatamente, outro golpe de ar?
Ah, a morte foi, para as gerações passadas, de uma simplicidade total. Bastava que uma mão imprudente abrisse, de supetão, uma porta ou uma janela. E o vento súbito vinha agredir o pulmão de uma tia, de um cunhado, de uma filha ou até de uma visita. E assim se instalava um processo pneumônico irreversível.
Mas o tempo passou e os golpes de ar sumiram dos romances e da vida prática. Se me perguntarem qual a fatalidade de nossa época, responderia que são as esquerdas. Dirá o leitor que elas sempre existiram. Gerações passadas também conheceram o seu gesto, a sua ênfase, o seu palavrão. E o próprio Eça já citado refere o caso de um rapaz esguio e pálido como um suicida.
Por onde andava ia exalando a sua cava depressão. Ainda por cima vestia-se de um luto pesado e inconsolável. Um dia, vendo-o suspirar perto da janela, alguém perguntou pela origem de tão funda melancolia. Ele alça a fronte e diz, cheirando uma camélia: — “Como posso sorrir se a Polônia sofre?”. A Polônia era o Vietnã da ocasião e o mancebo, uma flor das esquerdas.
Mas, nos dias do Eça, do Ramalho, a esquerda era minoritária como a torcida do Botafogo. Sim, estava reduzida a um grupo seletíssimo. E o personagem do Eça explica tudo. Já naquele tempo havia uma distância entre a esquerda e o perigo. Só que a distância de Portugal para a Polônia é menor que a do Antonio’s para o Vietnã.
Alguém poderá objetar que estou insistindo muito nas esquerdas. Mas explico. Primeiro, qualquer autor tem suas fixações fatais e o d. Hélder é um exemplo. Interrogado certa vez sobre o amor livre, respondeu: — “E a fome do Nordeste?”. De outra feita pediram sua opinião sobre o Egito e Israel e o arcebispo retrucou: — “E a fome do Nordeste?”. Vejam bem: — não interessam as outras fomes. Se, fora do Nordeste, há brasileiros bebendo, a mãos ambas, a água das sarjetas, não contem com d. Hélder. Deu exclusividade à fome do Nordeste.
Portanto, admitam que também cultive eu as minhas obsessões. Por outro lado, a esquerda é a fatalidade da nossa época. Eu sei que ela continua minoritária. Mas a torcida do Botafogo, também minoritária, é mais feroz que a do Flamengo (só o Salim Simão, com o seu berreiro individual, solitário, lota o Estádio Mário Filho).
Eis o que eu queria dizer: — não me interessa a expressão numérica da “festiva”. O que importa é a sua capacidade de influir nos usos, costumes, idéias, sentimentos, valores do nosso tempo. Ela não briga, nem ameaça as instituições. Mas, em todas as áreas, as pessoas assumem as poses das esquerdas.
Ontem, falei do teatro. Mas não é só o teatro, também a música popular. Outro dia, num programa de televisão, apareceu uma musiquinha sobre o Vietnã. Meu Deus, por que não sobre Magé? Temos solidariedades mais urgentes, mais prementes. Magé está ali, a dois passos. Podemos apalpá-la, podemos farejá-la. Assim como o rapaz do Eça suspirava pela Polônia, eis-nos aqui a arrotar pelo Vietnã. Há todo um Brasil para ser feito. Acontece que esse Brasil incriado é uma tarefa, sim, uma tarefa que ninguém quer assumir nem a tiro.
Passem no Antonio’s e façam esta singela e casta observação: — a “festiva” é morena. Nem se pense que se trata de uma cor nata e hereditária. Nunca. Essa pele dourada foi arduamente conquistada na praia. Lembrei-me de que, na terça-feira depois do Natal, passei de táxi por Copacabana. E confesso meu deslumbramento. Praia apinhada, de um Forte a outro Forte, isto é, da igrejinha ao Leme. Dia utilíssimo, depois de quatro feriados. E lá estavam as esquerdas, todas as esquerdas, lustrando-se ao sol, dourando-se ao sol, com o cavo umbigo à mostra. E, à noite, lá se instalam no Antonio’s, tomando cerveja em lata.
Mas insisto: — apesar da eugenia da manhã, da boêmia da noite, é uma potência. Não sai da praia nem do Antonio’s, mas influi em tudo. Influi num verso de modinha e até num decote de mulher. Vi, outro dia, num sarau de grã-finos, uma menina da “festiva”. Nas costas abria-se um generoso decote. Aparecia, de alto a baixo, a espinha dorsal ou, como queria o poeta, a “flauta de vértebras”. Eu imaginava que também aquele era um decote ideológico.
Ah, ninguém consegue ser nada, em nossa época, sem o empurrão promocional das esquerdas. Waldomiro Autran Dourado acaba de publicar sua Ópera dos mortos. É uma obra-prima. Mas ninguém escreve sobre a Ópera dos mortos. É apenas uma obra de arte, irredutível obra de arte e nada mais. A qualidade estilística parece uma alienação insuportável. E como é a “festiva” que promove o artista, ou o enterra, faz-se para o livro de Autran um feio e vil silêncio.
Mas há, de vez em quando, uma surpresa. Ligo para o Hélio Pellegrino. E me diz o poeta e psicanalista: — “Estou aqui com o doce radical”. O assim chamado “doce radical” é Antônio Callado. E continua o Hélio: — “Acaba de me ler um poema”. Há o suspense de uma pausa. O Hélio completa: — “De amor. Poema de amor”. Nada descreve e nada se compara ao meu espanto. Ainda perguntei: — “De amor mesmo? Tem certeza? É só de amor?”. O Hélio deu-me a sua palavra: — “Amor, e só de amor”.
Na minha crassa ingenuidade, imagino que o doce radical estivesse lendo um Verlaine, ou sei lá. Mas Hélio, qual um parnasiano, deixara para o fim a chave de ouro: — “Poema dele mesmo. O autor é o próprio radical”. Na minha confusão imaginava eu o que diriam as esquerdas, o escândalo amargo da “festiva”. Depois dos versos de amor, como poderá Callado voltar ao Antonio’s e lá exibir o seu bonito perfil de medalha, de moeda, de cédula? Mas esperem, esperem. O doce radical corre, sem o saber, um risco físico. Por enquanto, os rapazes das Belas Artes queimam os poemas. Um dia, queimarão os poetas.
[3/2/1968]
quarta-feira, 24 de setembro de 2008
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