“Não me compreendam tão depressa”, pedia Gide, pelo amor de Deus. Morreu, o velho Demônio, com mais de setenta anos, quase oitenta. (Nos últimos tempos, sem um fio de cabelo, era só testa. Não me lembro de sua cara. Só vejo a testa obsessiva, lustrosa, quase dizia fluorescente.)
Eis o que importa lembrar: — durante anos e anos, Gide foi incompreendido em todos os idiomas. E essa resistência mundial era o seu orgulho perverso. Depois, tudo mudou. Consagraram o estilista. Até o seu homossexualismo passou a ser promocional. E, por fim, sofreu a humilhação crudelíssima do Prêmio Nobel. Era agora o Ex-Diabo e, pior, tão glória oficial como Victor Hugo.
Mas, até o fim, Gide preservou a nostalgia das velhas incompreensões. Hoje, repassando a sua experiência humana e estilística, aprendemos o seguinte: — sua morte literária ocorreu quando o mundo passou a compreender seus escritos e até sua pederastia.
Passo de Gide para o teatro brasileiro. (Desculpem a minha insistência na meditação dramática: mas sou, como disse o Cláudio Mello e Souza, uma “flor de obsessão”.) Segundo leio nos jornais, explodiu uma experiência teatral “nova” no Brasil. Uma furiosa aventura sem precedentes. Algo jamais concebido.
Se bem entendi, a novidade está na “agressão”. Cada espetáculo tem de ser um soco na cara do espectador. Cessam as fronteiras convencionais entre platéia e palco. Nem se pense que o personagem agride apenas por gestos e falas. Seria quadrado demais. Ao que me informam, chegam a agredir, fisicamente, o espectador.
Vejamos um exemplo. Está na platéia uma santa senhora, mãe de oito filhos. Veio da Tijuca, com o marido, viver o feérico, inefável sábado. E, de repente, um dos personagens de Roda viva sai do palco para a vida real. O homem senta-se no colo da mãe de família, ou puxa-lhe as bochechas, ou dá-lhe uma palmada. Há um fígado na peça (fígado de boi, fígado de açougue). É possível que esguichem sangue bovino no olho da gorda dona-de-casa.
E das duas uma: — ou o marido não faz nada, ou mete o braço. Na hipótese do revide corporal, melhor. É a sopa no mel. O que os teóricos do novo teatro pretendem é justamente isso: — o tumulto, o alarido, o pé na cara, o grito, o horror. Só não se admite o público apático, a comer pipocas.
Sim, para o teatro em causa, tudo é permitido. Ainda ontem me dizia o Eduardo Chermont de Brito: — “Qualquer dia entro num teatro e, no meio do quinto ato, um personagem me bate a carteira”. E vamos e venhamos: — não me parece de todo inviável semelhante hipótese. Cabe então a pergunta: — “E daí?”. A platéia leva um soco na cara. Batem-lhe a carteira. Mas repito: — “E daí”. Por que e para que agressão tamanha? Não sei, ninguém sabe, nem Deus.
Comecei com Gide e volto a ele. Eis o que importa observar: — o novo teatro já não corre qualquer risco de incompreensão. Imagino a amarga perplexidade do leitor. Realmente, custa crer que a novidade não cause o impacto da novidade; que a surpresa passe sem surpresa, e que o público aceite o nunca visto com a mais cordial naturalidade.
Qualquer novidade em teatro tem de exigir do espectador uma lenta, progressiva acomodação visual e auditiva. O sujeito está vendo e ouvindo o que nunca viu e ouviu, o que desafia toda a sua experiência e todo o seu raciocínio. Portanto, uma incompreensão inicial é obrigatória. E, de mais a mais, por que a obra de arte há de ser de uma transparência burríssima? Até um soneto parnasiano preserva um mínimo de mistério, de solidão.
E as novas tentativas teatrais não insinuam nenhum mistério, não sugerem nenhuma dúvida. Falar em Artaud, aqui, seria monstruoso. Que distância infinita, milenar, separa Roda viva de Artaud. Mas o que eu dizia é que nem Roda viva nem Rei da vela conseguiram a homenagem de uma incompreensão.
Cabe então a pergunta: — e por que se frustrou toda uma ingênua e otimista intenção de choque, de escândalo, de soco na cara? Aqui entra um tipo realmente fascinante do nosso tempo: — o “compreensivo”. Em capítulo recente, contei um episódio familiar realmente patético. Certo filho vira-se para o pai e diz-lhe: — “Papai, cala a boca ou te parto a cara!”. O pai foi magistral. Reagindo como um “compreensivo”, deu ao filho um Ford Galaxie.
Os “compreensivos” são cada vez em maior número. Nós os encontramos por toda parte. Estão nas salas, nos escritórios, nas alcovas, nos tribunais, nas igrejas. O dr. Alceu é um “compreensivo”; o padre Ávila, outro. É justamente essa compreensão urgente e fulminante que desesperava Gide.
O “compreensivo” vai ao teatro, recebe um esguicho de sangue e não se espanta. E aqui chegamos à palavra certa. Reparem como o brasileiro se espanta cada vez menos. Somos, hoje, um povo de pouquíssimos espantos. Li ontem uma senhora “compreensiva”. Redigiu uma crônica que era o seu deslumbramento impresso. Eu, se fosse o Chico, ou fosse o Zé Celso, estaria frustrado e humilhado com uma compreensão assim ultrajante.
Ah, uma senhora “compreensiva” é capaz de tudo. Se lhe servirem, num banquete, uma ratazana ensopada, não pensem que fará a concessão de uma surpresa. Jamais. Nada a espanta. Tem sempre, e nas emergências mais cruéis, uma aristocrática naturalidade, uma melíflua negligência. Suprimiu dos seus hábitos o ponto de exclamação. É ratazana? Pois que seja ratazana, e com abóbora.
Mas há pior, amigos, há pior. Outrora, só uma seletíssima elite tinha esse cinismo superior e inteligentíssimo. Tal elite compreendia o mistério de tudo e o resto não. O homem comum era o que ainda se espantava. Se me perguntarem onde estão os “compreensivos”, eu diria que os há em todas as classes. Há o cínico grã-fino e o cínico favelado. Há também, na classe média, essa incapacidade para o horror. Sim, há quanto tempo nós não nos horrorizamos?
E insisto na pornografia. Eu me lembro da geração anterior. Havia uma cerimônia entre o brasileiro e o palavrão, havia como que uma solenidade recíproca. O palavrão tinha a sua hora certa e dramática. Vejo hoje meninas, senhoras, de boca suja, e nas melhores famílias. Diria, se me permitem, que o palavrão se instalou entre os usos mais amenos e familiares da cidade.
Mas nem tudo é vão no novo teatro. Quem o diz é o José Celso. Segundo o jovem diretor, nem só os “compreensivos” enchem a sua platéia. Há uma meia dúzia que, chocadíssima, “muda de lugar”. Ótimo, ótimo. E, realmente, isso jamais aconteceu com Sófocles, Shakespeare ou, mais recentemente, Ibsen. A platéia de tais autores nunca trocou de cadeira. Não há dúvida. Aí está uma deslumbrante conseqüência ética, sociológica, ideológica ou que outro nome tenha. O Chermont de Brito tem razão. Chegará um dia em que ninguém irá ver Shakespeare, com medo que o Hamlet lhe bata a carteira.
[2/2/1968]
segunda-feira, 15 de setembro de 2008
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