Alexis Carrel, que os comunistas chamavam de Conselheiro Acácio, escreveu um livro célebre. Ou por outra: — a celebridade não é do livro, mas do título. O homem, esse desconhecido. Um título bem-sucedido faz um bestseller. E, no caso de Carrel, foi um impacto irresistível. Quando saiu aqui a primeira edição, não se falava noutra coisa. Grã-finas, mulatas, funcionários, marinheiros, arquitetos, se juntavam na vitrina das livrarias. Uns entravam e compravam o livro. Outros não compravam, mas levavam o título na cabeça e no coração.
E aqui começa o mistério — foi o mais comprado dos livros e o menos lido. O leitor, ao parar no título, já se dava por satisfeito. E, nos saraus grã-finos, o título corria de boca em boca. Contam que um certo cavalheiro baixou a voz para uma jovem senhora. Junto de sua orelha pequenina e sensível, fez a pergunta: — “A senhora já leu O homem, esse desconhecido?”. A dama olha para os lados e suspira, baixando a vista: — “Já”. E foi esse tom de segredo e, repito, foi esse mistério de proposta obscena que os perdeu. O marido arremessou-se contra o rapaz: — “Não admito! Não admito!”. E quebrou-lhe a cara.
Depois, Alexis Carrel morreu, seu livro passou da moda. Mas o título sobreviveu ao autor e sobreviveu à obra. O homem, esse desconhecido. Só agora, depois de passadas várias gerações, é que outros títulos apareceram e se popularizaram. Creio que, em nosso tempo, já se poderia escrever sobre O homem, esse idiota.
Sim, hoje o homem é mais idiota do que desconhecido. (Falei do título de Carrel e não expliquei o seu êxito fulminante. Simplesmente, o leitor sentia-se lisonjeado de ser também “desconhecido”.) Reparem: — somos mais idiotas do que nunca. Ninguém tem vida própria, ninguém constrói um mínimo de solidão. O sujeito morre e mata por idéias, sentimentos, ódios que lhe foram injetados. Pensam por nós, sentem por nós, gesticulam por nós.
Na minha confissão de ontem, contei um episódio terrível de alienação. Era um desfile de jovens. E, um deles, um latagão esplêndido, barbado como um fauno de tapete, erguia um cartaz patético: — lá estava escrito, a piche, a palavra “muerte” etc. etc. Devia ser “muerte” aos imperialistas ou aos gorilas, sei lá.
Não vou aqui discutir como um Raskolnikov, se o homem tem, ou não tem, sob certas condições, o direito de matar. Isso é outro problema, cuja discussão exigiria muito papel e muita tinta. Mas o que não entendo é a palavra “muerte”. O rapaz e seus colegas não gostam dos imperialistas: querem corrê-los daqui a patadas salubérrimas. Ótimo. Mas por que não matar no próprio idioma? Por que odiar em espanhol? Por que chamar o inimigo de “perro” e não de cachorro? Por que, meu Deus, por quê?
O rapaz passou, por toda a avenida Rio Branco, empunhando sua “muerte”. E não espantou ninguém, ou por outra: — talvez tenha espantado os pombos da Cinelândia e os leões do antigo Senado. Mas os outros manifestantes e os curiosos, e a imprensa, e o Jornal do Brasil, ninguém se esbugalhou. Todo mundo achou naturalíssimo que um jovem brasileiro fosse patriota em castelhano.
Dirá o leitor que era apenas um idiota. De acordo. Um. E um idiota é, numericamente, secundário, irrelevante, nulo. Há, porém, um engano em nossa generosa estimativa. Era idiota o que carregava o cartaz e idiotas os que não se espantaram. Sim, são idiotas os que não perguntaram nas esquinas, retretas e velórios: — “Mas agora vamos morrer em espanhol?”.
Claro que os idiotas são de todos os tempos. Sempre existiram. Mas, no vasto passado humano, o idiota como tal se comportava. Até pouco tempo, os idiotas não existiam na História e na Lenda, e repito: — os personagens da História e da Lenda eram os melhores. Aí está dito tudo. Eram os melhores que falavam alto, que gesticulavam, que atiravam patadas e quebravam caras. O bom juiz de futebol é o que não se sente. Os idiotas eram igualmente imperceptíveis, incorpóreos, espectrais.
Mas não precisamos ir tão longe. Aqui mesmo, em nosso Brasil, o que havia era o “grande ministro”, o “grande deputado”, o “grande jornalista”, o “grande tribuno”. Os idiotas não exalavam um suspiro. No Império e na República não se conhece um único débil mental de babar na gravata. Na hora de morrer, o senador, ou ministro, ou jornalista, ou tribuno, sabia fazer uma última frase. O sujeito, de vela na mão, esculpia a sua derradeira pose.
E, de repente, tudo muda. Os idiotas perderam a modéstia, a humildade de vários milênios. Eles estão por toda parte. São os que mais berram. O sujeito que passa numa esquina, numa retreta ou num velório é logo cercado de idiotas. As casacas são usadas pelos idiotas; as condecorações pingam dos idiotas. E, de mais a mais, são numericamente esmagadores. Antigamente, o silêncio era dos imbecis; hoje, são os melhores que emudecem. O grito, a ênfase, o gesto, o punho cerrado, estão com os idiotas de ambos os sexos,
Na Rússia, prende-se, condena-se, encarcera-se um poeta por ser poeta. E os nossos intelectuais continuam maravilhados com a “Grande Revolução”. Mas pergunto: — que fazer se, por toda a parte, recebemos uma saraivada de idiotas? Não há opção à vista. Cada um tem de se tornar idiota para sobreviver.
Não sei se me entenderam. Mas a coisa me parece de uma cristalina evidência. Pela primeira vez os idiotas fazem a História. Mao Tsé-tung, um dos mais formidáveis estadistas do século, chama a bomba atômica de “tigre de papel”. E diz, com sábia malícia: — “Se uma guerra nuclear matar quatrocentos milhões de chineses, sobrarão outros quatrocentos milhões”. Com um piparote, o idiota assassina a metade do seu povo. E ninguém se espantou. Naturalíssimo o assassinato dos quatrocentos milhões. Estranho mundo idiota.
[11/4/1968]
domingo, 14 de setembro de 2008
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