quarta-feira, 1 de outubro de 2008

SÓ OS IDIOTAS RESPEITAM SHAKESPEARE

Quando vi o Cláudio Mello e Souza pela primeira vez, fui levado a um paralelo irresistível. Sim, eu o comparei ao jovem da minha infância. E que abismo entre as duas gerações. O Cláu­dio era um havaiano de filme, um falso moreno de sol, de praia. E o rapaz de 1920?
Em primeiro lugar, cabe a seguinte observação: — o Brasil de 1920 era uma paisagem de velhos. Os moços não tinham fun­ção, nem destino. A época não suportava a mocidade. Lembro-me de casos como os de Rui Barbosa e Paulo de Frontin, dois septuagenários natos. Do último, dizia-se que nascera, como o personagem de Gogol, já de sapatos e já de guarda-chuva. Sim, o Brasil era um lúgubre ermo de rapazes.
De vez em quando, porém, aparecia um ou outro. Cabe en­tão a pergunta: — e qual a dessemelhança entre os dois brasi­leiros, ou seja, entre o presente Cláudio Mello e Souza e o anti­go rapaz da minha infância? Diria eu que tal dessemelhança es­tava, antes de mais nada, na pele.
As Novas Gerações não imaginam o que era, em 1919, 20, a pele do brasileiro. Hoje, desapareceram as espinhas. Há uns vinte anos que não vejo, na cara de ninguém, uma única e es­cassa espinha. Todo mundo tem uma pele salubérrima. Tanto é assim que, anos atrás, houve uma pequena e afetuosa altercação entre mim e Bibi Ferreira. Ela estava dirigindo, para o Mu­nicipal, a minha peça Senhora dos afogados. Gostava do texto e posso mesmo dizer que adorava o texto. Fazia-lhe, porém, uma restrição única, mas irredutível. É que, no 3º ato, ouvia-se a pa­lavra “eczema”.
Senhora dos afogados é uma tragédia varrida de suicidas, adúlteras, insanos e incestuosos. A única coisa que agrediu a grande atriz foi justamente a palavra “eczema” e o que ela re­presenta de horror visual e auditivo. Bibi não queria dirigir eczemas. Fiz-lhe a vontade e suprimi a palavra. Mas no meu tem­po, o brasileiro ostentava seus eczemas com a mais cínica natu­ralidade.
Toda a minha infância transcorreu na época das espinhas. E por que elas floriam em todas as caras, em todas as costas e até nos cotovelos? Uma moça da vizinhança andou mostrando, e não sem vaidade, uma espinha que irrompeu justamente no cotovelo. Ora, um Cláudio Mello e Souza com espinhas não se­ria admissível. Mas insisto na pergunta: — e por quê?
Vejamos. Há certos insultos que marcam uma geração. No meu tempo, quando um brasileiro queria ofender outro brasi­leiro xingava-o de “sifilítico”. E o patrício assim chamado ran­gia os dentes de humilhação. Mas o que tornava o ultraje válido era, precisamente, a massa de espinhas. E imaginem caras com a cor da orquídea e da gangrena.
E assim o jovem vagava pelas esquinas, como um ser tris­te, feio e sifilítico. Em suma: — o brasileiro era o anti-Cláudio. Fiz toda esta introdução para chegar a um sarau de grã-finos, ao qual compareceu o nosso havaiano de filme. Mas acontece que o Cláudio não quer ser apenas uma festa visual para tercei­ros. Ele é bonito e, alem de bonito, inteligente. Foi crítico de cinema, de arte, poeta etc.
Seria melhor que o brasileiro bonito, por uma exigência do seu equilíbrio, fosse burro. Eis a composição perfeita: — bonito e burro. Mas, por azar, o Cláudio nasceu inteligentíssi­mo. No referido sarau, as damas cochichavam: — “Rapaz de talento!”. E, durante uma meia hora, o meu amigo foi, ali, uma espécie de solista. Só ele falava, só ele pensava, só ele brilhava. E, para delícia das senhoras, dizia tudo em forma de paradoxo. Esse êxito físico e espiritual chegava a ser humi­lhante. Até que um dos ouvintes, o Hélio Pellegrino, não se conteve. Virou-se para o Cláudio e fez-lhe o apelo: — “Seja burro, Cláudio, seja burro!”.
Deu-se o milagre. O crítico, o poeta, o libertário, caiu em si. Deixou o tom de Andrea Chénier no improviso. Coincidiu que, em seguida, uma dama fizesse a pergunta melíflua: — “E o que é que o senhor me diz do Proust?”. O Cláudio respondeu-lhe, com sublime descaro: — “Sossega, leoa”. (Já contei a mesmíssima história umas quinze vezes.) Ato contínuo, foi beber com o Hélio Pellegrino, às gargalhadas.
O que há de sábio no episódio acima é a exortação dramá­tica à burrice. Nada mais atual, e repito: — o apelo do Hélio me parece de uma atualidade espetacular. Vejam o teatro brasilei­ro. Temos aí uma geração teatral inteligentíssima. E, sobretu­do, os diretores. Do ator para o autor, do autor para o diretor, há graus diferentes de vaidade intelectual. Se fizéssemos um con­curso hípico entre os três, o diretor ganharia por oito corpos de vantagem, no mínimo.
Outro dia, conversei com um dos nossos diretores. Ouvin­do-o, eis o que dizia eu, de mim para mim: — “Como é inteli­gente! Como abusa do direito de ser inteligente!”. Pouco falei. Na verdade, o nosso diálogo foi o seu monólogo. E em tudo o que ele dizia estava o peso da infalibilidade. Claro que os ato­res, as atrizes e os autores são outras tantas vaidades suicidas e homicidas. Mas ninguém se compara ao diretor.
Falei ontem do copydesk. Escrevi que ele, na sua imodéstia, é capaz de reescrever qualquer Proust e qualquer Dante. Fa­çam a seguinte experiência: — ponham um Dante na mesa do copydesk e não ficará de pé uma vírgula da Divina comédia. Do mesmo modo, o nosso diretor atual não concede a menor indulgência aos autores passados, presentes e futuros.
O leitor, que não conhece as sutilezas da vida teatral, há de querer saber como se exerce tamanha imodéstia. Explico: — reescrevendo os textos dramáticos. Nem se pense que os dra­maturgos profanados sejam do nível do Zezinho dos Anzóis Ca­rapuça. Em absoluto. O diretor está sempre disposto a cortar, o que seria o de menos. O patético é que reescreve, sim, reescreve. Seja Shakespeare, Sófocles ou Ibsen. O sujeito vai ver o Sófocles, e não é o Sófocles; vai ver Shakespeare, e não é Sha­kespeare: e tampouco o Ibsen é o Ibsen. Ninguém é ninguém, ou por outra: — é o diretor que anda por aí atropelando os tex­tos eternos.
Degrada-se um Sófocles com os mais deslavados cacos. A platéia nunca sabe se está admirando um Ibsen ou um reles en­xerto. Muitos poderão pensar que essa falta de respeito pelo au­tor, vivo ou morto, é uma feia e vil desonestidade. Não. Não é desonestidade e pelo contrário: — é inteligência. Os nossos diretores são inteligentíssimos. E fazem o bestial copydesk co­mo se Sófocles fosse um repórter analfabeto de atropelamento. Eis o que eu quero dizer: — para salvar o teatro brasileiro, é preciso que o Hélio Pellegrino vá de diretor em diretor, repe­tindo a exortação patética: — “Seja burro, rapaz, seja burro!”.
[23/2/1968]

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