Quando vi o Cláudio Mello e Souza pela primeira vez, fui levado a um paralelo irresistível. Sim, eu o comparei ao jovem da minha infância. E que abismo entre as duas gerações. O Cláudio era um havaiano de filme, um falso moreno de sol, de praia. E o rapaz de 1920?
Em primeiro lugar, cabe a seguinte observação: — o Brasil de 1920 era uma paisagem de velhos. Os moços não tinham função, nem destino. A época não suportava a mocidade. Lembro-me de casos como os de Rui Barbosa e Paulo de Frontin, dois septuagenários natos. Do último, dizia-se que nascera, como o personagem de Gogol, já de sapatos e já de guarda-chuva. Sim, o Brasil era um lúgubre ermo de rapazes.
De vez em quando, porém, aparecia um ou outro. Cabe então a pergunta: — e qual a dessemelhança entre os dois brasileiros, ou seja, entre o presente Cláudio Mello e Souza e o antigo rapaz da minha infância? Diria eu que tal dessemelhança estava, antes de mais nada, na pele.
As Novas Gerações não imaginam o que era, em 1919, 20, a pele do brasileiro. Hoje, desapareceram as espinhas. Há uns vinte anos que não vejo, na cara de ninguém, uma única e escassa espinha. Todo mundo tem uma pele salubérrima. Tanto é assim que, anos atrás, houve uma pequena e afetuosa altercação entre mim e Bibi Ferreira. Ela estava dirigindo, para o Municipal, a minha peça Senhora dos afogados. Gostava do texto e posso mesmo dizer que adorava o texto. Fazia-lhe, porém, uma restrição única, mas irredutível. É que, no 3º ato, ouvia-se a palavra “eczema”.
Senhora dos afogados é uma tragédia varrida de suicidas, adúlteras, insanos e incestuosos. A única coisa que agrediu a grande atriz foi justamente a palavra “eczema” e o que ela representa de horror visual e auditivo. Bibi não queria dirigir eczemas. Fiz-lhe a vontade e suprimi a palavra. Mas no meu tempo, o brasileiro ostentava seus eczemas com a mais cínica naturalidade.
Toda a minha infância transcorreu na época das espinhas. E por que elas floriam em todas as caras, em todas as costas e até nos cotovelos? Uma moça da vizinhança andou mostrando, e não sem vaidade, uma espinha que irrompeu justamente no cotovelo. Ora, um Cláudio Mello e Souza com espinhas não seria admissível. Mas insisto na pergunta: — e por quê?
Vejamos. Há certos insultos que marcam uma geração. No meu tempo, quando um brasileiro queria ofender outro brasileiro xingava-o de “sifilítico”. E o patrício assim chamado rangia os dentes de humilhação. Mas o que tornava o ultraje válido era, precisamente, a massa de espinhas. E imaginem caras com a cor da orquídea e da gangrena.
E assim o jovem vagava pelas esquinas, como um ser triste, feio e sifilítico. Em suma: — o brasileiro era o anti-Cláudio. Fiz toda esta introdução para chegar a um sarau de grã-finos, ao qual compareceu o nosso havaiano de filme. Mas acontece que o Cláudio não quer ser apenas uma festa visual para terceiros. Ele é bonito e, alem de bonito, inteligente. Foi crítico de cinema, de arte, poeta etc.
Seria melhor que o brasileiro bonito, por uma exigência do seu equilíbrio, fosse burro. Eis a composição perfeita: — bonito e burro. Mas, por azar, o Cláudio nasceu inteligentíssimo. No referido sarau, as damas cochichavam: — “Rapaz de talento!”. E, durante uma meia hora, o meu amigo foi, ali, uma espécie de solista. Só ele falava, só ele pensava, só ele brilhava. E, para delícia das senhoras, dizia tudo em forma de paradoxo. Esse êxito físico e espiritual chegava a ser humilhante. Até que um dos ouvintes, o Hélio Pellegrino, não se conteve. Virou-se para o Cláudio e fez-lhe o apelo: — “Seja burro, Cláudio, seja burro!”.
Deu-se o milagre. O crítico, o poeta, o libertário, caiu em si. Deixou o tom de Andrea Chénier no improviso. Coincidiu que, em seguida, uma dama fizesse a pergunta melíflua: — “E o que é que o senhor me diz do Proust?”. O Cláudio respondeu-lhe, com sublime descaro: — “Sossega, leoa”. (Já contei a mesmíssima história umas quinze vezes.) Ato contínuo, foi beber com o Hélio Pellegrino, às gargalhadas.
O que há de sábio no episódio acima é a exortação dramática à burrice. Nada mais atual, e repito: — o apelo do Hélio me parece de uma atualidade espetacular. Vejam o teatro brasileiro. Temos aí uma geração teatral inteligentíssima. E, sobretudo, os diretores. Do ator para o autor, do autor para o diretor, há graus diferentes de vaidade intelectual. Se fizéssemos um concurso hípico entre os três, o diretor ganharia por oito corpos de vantagem, no mínimo.
Outro dia, conversei com um dos nossos diretores. Ouvindo-o, eis o que dizia eu, de mim para mim: — “Como é inteligente! Como abusa do direito de ser inteligente!”. Pouco falei. Na verdade, o nosso diálogo foi o seu monólogo. E em tudo o que ele dizia estava o peso da infalibilidade. Claro que os atores, as atrizes e os autores são outras tantas vaidades suicidas e homicidas. Mas ninguém se compara ao diretor.
Falei ontem do copydesk. Escrevi que ele, na sua imodéstia, é capaz de reescrever qualquer Proust e qualquer Dante. Façam a seguinte experiência: — ponham um Dante na mesa do copydesk e não ficará de pé uma vírgula da Divina comédia. Do mesmo modo, o nosso diretor atual não concede a menor indulgência aos autores passados, presentes e futuros.
O leitor, que não conhece as sutilezas da vida teatral, há de querer saber como se exerce tamanha imodéstia. Explico: — reescrevendo os textos dramáticos. Nem se pense que os dramaturgos profanados sejam do nível do Zezinho dos Anzóis Carapuça. Em absoluto. O diretor está sempre disposto a cortar, o que seria o de menos. O patético é que reescreve, sim, reescreve. Seja Shakespeare, Sófocles ou Ibsen. O sujeito vai ver o Sófocles, e não é o Sófocles; vai ver Shakespeare, e não é Shakespeare: e tampouco o Ibsen é o Ibsen. Ninguém é ninguém, ou por outra: — é o diretor que anda por aí atropelando os textos eternos.
Degrada-se um Sófocles com os mais deslavados cacos. A platéia nunca sabe se está admirando um Ibsen ou um reles enxerto. Muitos poderão pensar que essa falta de respeito pelo autor, vivo ou morto, é uma feia e vil desonestidade. Não. Não é desonestidade e pelo contrário: — é inteligência. Os nossos diretores são inteligentíssimos. E fazem o bestial copydesk como se Sófocles fosse um repórter analfabeto de atropelamento. Eis o que eu quero dizer: — para salvar o teatro brasileiro, é preciso que o Hélio Pellegrino vá de diretor em diretor, repetindo a exortação patética: — “Seja burro, rapaz, seja burro!”.
[23/2/1968]
quarta-feira, 1 de outubro de 2008
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