segunda-feira, 13 de outubro de 2008

BIS, COMO NA ÓPERA

Bate o telefone. O contínuo chama: — “Nelson Rodrigues”. Lá vou eu. Uma voz feminina, que se identifica como “uma lei­tora”, começa: — “Posso lhe fazer uma pergunta?”. Digo: — “Duas”. E ela: — “O senhor é inimigo do dr. Alceu?”. O meu escândalo é total: — “Eu? Nunca! Nem me faça essa injustiça!”. Instintivamente, procuro uma madeira para bater as três pancadinhas. (Como é antigo, obsoleto, nostálgico o uso das três pancadinhas.)
Na ânsia de convencê-la, fui enfático: — “Gosto pra burro do dr. Alceu”. Em se tratando de uma senhora, não devia ter dito “pra burro”. Mas ela insistia: — “Como é que o senhor explica a sua ‘assinatura’?”. E repetia: — “O senhor tomou ‘as­sinatura’ com o dr. Alceu”. E, então, com as faces em fogo, tra­tei de me justificar. Eis o que disse: por azar, o dr. Alceu é um grande homem. E como não falar de um grande homem, como não me ocupar de seus atos, idéias, sentimentos?
No meu fervor polêmico, fui além. Ousei uma tese que, de momento, me pareceu engenhosa, a saber: — não há grande homem sem grandes bobagens. Também por esse lado, o dr. Alceu teria de ser um filão inexaurível. Mas quando, por cansa­ço vocal, fiz uma pausa, a voz feminina fustigou-me: — “O se­nhor não me convence. O senhor não gosta do dr. Alceu”. Até o fim, bateu na tecla do desamor e da má-fé com que trato o sábio católico.
Mal pode imaginar a leitora como foi injusta comigo e com os meus escritos. Só Deus sabe que fiz o diabo para ser amigo do nosso Tristão de Athayde. Durante cinco anos, telefonei-lhe em cada véspera de Natal: — “Sou eu, dr. Alceu”. E, já comovido, uma certa dispnéia emocional, prosseguia: — “Vim desejar-lhe um maravilhoso Natal para si e para os seus” etc. etc.
Tudo inútil. O dr. Alceu trancou-me o coração. Até que, na última vez, disse algo que, para mim, foi uma paulada. De­pois de ouvir os meus votos de felicidade eterna, suspirou: — “Ah, Nelson! Você aí nessa lama!”. E, assim, como um san­to que trata com um pulha, ele frustrou-me para sempre. O mestre insinuara que minha alma é um mangue, um pântano, um lamaçal (por certo, ao sair do telefone, dr. Alceu foi-se vacinar contra o tifo, a malária ou a febre amarela, que vivo a exalar).
E o que nos separa eternamente é, de um lado, a minha la­ma, e, de outro, a sua luz. Dito isto, passemos adiante. Escrevi mais acima que não há grande homem sem grandes bobagens. Pode parecer que aí está uma frase em forma de paradoxo. Nem tanto, nem tanto. Eu citaria, ao acaso, o nome Jean-Paul Sartre. Um gênio da nossa época. Há quem diga, de mãos postas e com que admiração abjeta: — “A maior inteligência do século”. Mas desejo mostrar que, em dado momento, o gênio pode agir e rea­gir como um cristalino idiota. Se não, vejamos.
Certa vez, Sartre foi à Índia. Na volta, os repórteres lhe caí­ram em cima como chacais. Um deles perguntou-lhe pela lite­ratura de lá. O gênio recuou dois passos, avançou outro tanto e solta esta bomba: — “Nenhuma literatura vale a fome de uma criancinha”. Um débil mental teria pudor de tal resposta. E o nosso Luvizaro, cavando votos na Rocinha, não chegaria a tan­to. Por aí se vê que os mais altos espíritos têm, por vezes, a nos­talgia da mais baixa burrice.
E se falo nas bobagens do dr. Alceu, não vejam nas minhas palavras nenhuma intenção restritiva. São contingências dos es­píritos superiores. De mais a mais, há uma circunstância alta­mente elucidativa e que a minha leitora não conhece. É que, hoje, o nosso Tristão de Athayde está só, entregue às suas paté­ticas fragilidades. Vejam a tragédia: — quem pensa pelo dr. Al­ceu é o próprio dr. Alceu. Dirá alguém que o d. Hélder lhe dará uma mãozinha. Infelizmente, há, entre os dois, uma inexorável distância geográfica. E, muitas vezes, um sábio tem que pensar rápido. Digamos que, à queima-roupa, uma repórter pergunte ao mestre: — “O que é que o senhor acha da guerrilha?”. Não há tempo para chamar o d. Hélder no interurbano. Lá está a repórter, de orelhas frementes, exigindo a resposta fulminante. É trágico.
(Por outro lado, o d. Hélder também precisa de alguém que pense por ele.) E perguntará o leitor, ainda a propósito do dr. Alceu: — “Antes não era assim?”. Exatamente, não era assim. No passado, o notável pensador sempre teve quem o levasse, espiritualmente, pela mão. Primeiro, foi o Jackson de Figueire­do, que, por sinal, o convertera. E, se me permitem a irreve­rência, o dr. Alceu dançava de acordo com o Jackson.
Mas o Guia morreu e foi substituído, imediatamente, por d. Leme. Viria, em seguida, o jesuíta Leonel Franca. E, assim, o nosso Tristão podia manter uma coerente, límpida, harmo­niosa estrutura católica. Até que, de repente, morre também Leo­nel Franca. Começou a enorme solidão. Sempre precisara de al­guém que lhe injetasse a Fé. E, agora, não havia mais Jackson, nem d. Leme, nem Leonel Franca. Agora o dr. Alceu tinha que pensar. Mas ele nunca pensara, nunca, nunca.
A minha leitora há de ver, por trás das minhas palavras, o que ela chama de “assinatura”. Eis o que eu queria afirmar: — em vida do Jackson, ou de d. Leme, ou de Leonel Franca, o dr. Alceu jamais falaria, como o fez em São Paulo. O Jornal do Brasil publica a sua conferência (e como o velho órgão foi inclemen­te com o seu ilustre colaborador ao publicar o impublicável).
Eis o que diz o sábio católico, textualmente: — “Certa vez, um camponês nordestino entrou num ônibus com um passari­nho na gaiola. O motorista o fez descer, porém, alegando que não poderia viajar com a gaiola. Humildemente, o camponês levantou-se e foi descendo. No momento em que saltava do ôni­bus, o motorista movimentou o veículo e o passarinho, livre, fugiu. O camponês, revoltado, entrou no ônibus e atacou o mo­torista com a sua peixeira. Esta história é um exemplo de caso onde a violência se justifica”.
Se excluíssemos o nome e a respeitabilidade do dr. Alceu, imaginaríamos que o conferencista era o próprio conde Drácu­la. Porque só um vampiro nato e hereditário poderia aprovar esse esguicho de cálido e rútilo sangue humano. Vejam como o dr. Alceu, na hora de pensar por conta própria, perde toda e qualquer noção de valores. Vamos admitir que o passarinho valha uma vida humana. Acontece, porém, que o passarinho não morreu. Ganhou a liberdade, o que o dr. Alceu devia achar óti­mo. Portanto, não se trata de uma vida pela outra. E, além do mais, o motorista era tão miserável como o camponês. Como a fome é prolifera, devia ser pai de uns oito filhos e, conseqüen­temente, oito órfãos. Vamos imaginar a cena: — o motorista, no meio da estrada, estirado, os intestinos ao sol. Pois o dr. Al­ceu aplaude a carnificina e só falta pedir bis como na ópera.
[4/4/1968]

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