Certa vez, entrei na redação e vi o secretário esbravejante. Sou um fascinado pelas grandes indignações; e o homem atirava patadas como um centauro. (Isso foi há, talvez, dez, doze anos.) Há um momento em que pára, exausto da própria ira; passa as costas da mão na boca encharcada. Diante dele, esmagado, estava o fotógrafo. A redação, parada, espiava só.
Eis o fato: — desabara um prédio em Petrópolis, matando quinze operários. Um dos nossos fotógrafos voara para a montanha. Lá, batera chapas de tudo. Em seguida, descera a serra, numa fulminante velocidade. Mas, quando apareceu com o serviço, o secretário sapateou como em transe mediúnico. Esfregava as fotografias na cara do outro: — “Este jornal não publica cadáver de preto”. Virava para os redatores e uivava:— “Cadáver de preto”.
Assim humilhado e assim ofendido, o fotógrafo percebia a enormidade da própria gafe. Note-se que era preto como o morto. Mas no fundo, no fundo, ele próprio dava razão ao chefe. E, por fim, o secretário foi, de mesa em mesa, exibindo as fotografias. Uma delas, justamente a que mais o horrorizava, era de um preto gordo, de papada e olhos abertos. Uma viga desabara sobre o desgraçado, abrindo-lhe o crânio. Cada redator olhou aquilo e houve um escândalo racial como se defunto negro, pelo fato de ser negro, fosse obsceno. A indignidade final foi a suspensão do fotógrafo.
Pode parecer um episódio solitário, irrelevante. Em absoluto. Foi assim em todas as épocas da nossa imprensa. As velhas gerações não comprometiam as suas primeiras páginas com um cadáver de “cor parda”. O morto branco saía. Eu me lembro de um avião que caiu na baía em 1929. Foi na chegada de Santos Dumont. O aparelho enfiou-se no mar. Uma semana depois, os escafandristas começaram a retirar os corpos.
No dia seguinte, cada primeira página era um necrotério fotográfico. Nunca me esqueci da cara do piloto em cinco colunas. Tinha os olhos brancos e a boca exagerada, violentada. Era a época das primeiras páginas heróicas. Eis o que eu queria dizer: — os brancos podiam aparecer de olho vazado, de boca obscena. Ninguém dizia nada, Mas nenhum jornal publicaria o afogado preto.
Mais tarde, começaria uma nova época jornalística. À imprensa passou a ter um novo texto e uma nova gravura. E o cadáver, mesmo de branco, foi barrado da primeira página. Ou melhor: — o defunto, para ser estampado, teria de ser um Pio xii, um João xxiii ou um rei, ou um presidente da República. Getúlio saiu no seu caixão de vidro. Mas havia o vidro entre o leitor e a morte, entre o leitor e o martírio. O fuzilamento de Kennedy apareceu em seqüência. Mas estava, a seu lado, a bela viúva, a Jacqueline.
Sim, há, nas redações, um copydesk visual, que veta o cadáver. E, no entanto, vejam vocês: — todos os jornais fizeram uma exceção para um morto recente. E não era papa, nem rei, nem presidente. Falo do estudante fuzilado do Calabouço. Morreu mais uma vez, continuou morrendo, nas primeiras páginas. Eis o que me pergunto: — e por que, de repente, sumiu toda a aversão, todo o nojo gráfico pela morte?
Não foi uma promoção política, ideológica, ou a vontade mercenária de vender mais jornal. Não. A meu ver, o que fascinou foi a imagem linda. Tenho toda a fotografia, de cor, na cabeça. Dizia o secretário que barrou o cadáver preto: — “O morto é feio. A morte é um bucho”. E afirmava isso, com uma certeza fanática, sem imaginar que um dia seria também defunto, com a hediondez que atribuía aos defuntos. Mas o estudante assassinado era espantosamente belo.
E menino, infinitamente menino. Na fotografia aparece seminu, como um santo. Lá está o peito varado. E eu começo a pensar. Seria parecido com quem? Uma senhora veio me mostrar o retrato, trêmula de beleza: — “É Ofélia, não é Ofélia?”. Fez uma pausa e completou: — “Lindo como Ofélia!”. E começou a chorar.
Vejam vocês. Fora a fotografia, toda a cobertura foi, para o leitor, uma amarga frustração. Falo, sobretudo, das primeiras páginas. Ah, eu ainda apanhei a última geração romântica da imprensa. Uma manchete era, por vezes, uma solução em oito colunas, em tipos garrafais. Quando mataram o rei e o príncipe herdeiro de Portugal, o nosso Correio da Manhã lançou várias manchetes e mais esta: — horrível emoção! Hoje, a primeira página não faz nenhuma concessão ao espanto, nenhuma concessão ao horror, nenhuma concessão à misericórdia. Ao passo que a antiga primeira página pingava sangue e pingava lágrima. Em nossos dias, ela é a pura e radical objetividade.
Vejamos, ao acaso, o Jornal do Brasil. O fuzilamento do menino era uma catástrofe. Mas a catástrofe não foi tratada como tal. De modo algum. Fui ler a primeira página do velho órgão. Eis os termos em que se apresenta a tragédia: “A morte do estudante Edson Luís de Lima Souto — baleado no peito, às 18h30m de ontem, durante um conflito da pm com estudantes no restaurante do Calabouço”. E só. Tenham paciência. Mas esse tom impessoal, sumário, desumano, seria apropriado para noticiar um atropelamento de cachorro. O leitor tem vontade de bater para o Departamento de Pesquisas do Jornal do Brasil e lembrar-lhe: — “Vocês estão falando de um estudante, um menino, um ser humano”.
E assim o patético da fotografia não existe no texto. Uma objetividade idiota arranca do fato as suas entranhas ou, se preferirem outra imagem, castra todas as potencialidades do fato. Republiquei, acima, textualmente, o que disse a primeira página do Jornal do Brasil sobre uma catástrofe. Eu escrevi “objetividade idiota” e é realmente idiota. E assim, estritamente objetivo, o Jornal do Brasil põe uma distância imensa entre o leitor e o acontecimento, entre o leitor e o espanto, entre o leitor e a misericórdia, entre o leitor e o ódio. Sim, essa meia dúzia de linhas humilha, desfeiteia, degrada o martírio.
[2/4/1968]
domingo, 12 de outubro de 2008
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