domingo, 12 de outubro de 2008

CADÁVER DE PRETO

Certa vez, entrei na redação e vi o secretário esbravejante. Sou um fascinado pelas grandes indignações; e o homem atira­va patadas como um centauro. (Isso foi há, talvez, dez, doze anos.) Há um momento em que pára, exausto da própria ira; passa as costas da mão na boca encharcada. Diante dele, esma­gado, estava o fotógrafo. A redação, parada, espiava só.
Eis o fato: — desabara um prédio em Petrópolis, matando quinze operários. Um dos nossos fotógrafos voara para a mon­tanha. Lá, batera chapas de tudo. Em seguida, descera a serra, numa fulminante velocidade. Mas, quando apareceu com o ser­viço, o secretário sapateou como em transe mediúnico. Esfre­gava as fotografias na cara do outro: — “Este jornal não publi­ca cadáver de preto”. Virava para os redatores e uivava:— “Ca­dáver de preto”.
Assim humilhado e assim ofendido, o fotógrafo percebia a enormidade da própria gafe. Note-se que era preto como o morto. Mas no fundo, no fundo, ele próprio dava razão ao che­fe. E, por fim, o secretário foi, de mesa em mesa, exibindo as fotografias. Uma delas, justamente a que mais o horrorizava, era de um preto gordo, de papada e olhos abertos. Uma viga desa­bara sobre o desgraçado, abrindo-lhe o crânio. Cada redator olhou aquilo e houve um escândalo racial como se defunto ne­gro, pelo fato de ser negro, fosse obsceno. A indignidade final foi a suspensão do fotógrafo.
Pode parecer um episódio solitário, irrelevante. Em abso­luto. Foi assim em todas as épocas da nossa imprensa. As ve­lhas gerações não comprometiam as suas primeiras páginas com um cadáver de “cor parda”. O morto branco saía. Eu me lembro de um avião que caiu na baía em 1929. Foi na chegada de Santos Dumont. O aparelho enfiou-se no mar. Uma semana de­pois, os escafandristas começaram a retirar os corpos.
No dia seguinte, cada primeira página era um necrotério fo­tográfico. Nunca me esqueci da cara do piloto em cinco colu­nas. Tinha os olhos brancos e a boca exagerada, violentada. Era a época das primeiras páginas heróicas. Eis o que eu queria di­zer: — os brancos podiam aparecer de olho vazado, de boca obscena. Ninguém dizia nada, Mas nenhum jornal publicaria o afogado preto.
Mais tarde, começaria uma nova época jornalística. À im­prensa passou a ter um novo texto e uma nova gravura. E o ca­dáver, mesmo de branco, foi barrado da primeira página. Ou melhor: — o defunto, para ser estampado, teria de ser um Pio xii, um João xxiii ou um rei, ou um presidente da Repúbli­ca. Getúlio saiu no seu caixão de vidro. Mas havia o vidro entre o leitor e a morte, entre o leitor e o martírio. O fuzilamento de Kennedy apareceu em seqüência. Mas estava, a seu lado, a bela viúva, a Jacqueline.
Sim, há, nas redações, um copydesk visual, que veta o ca­dáver. E, no entanto, vejam vocês: — todos os jornais fizeram uma exceção para um morto recente. E não era papa, nem rei, nem presidente. Falo do estudante fuzilado do Calabouço. Mor­reu mais uma vez, continuou morrendo, nas primeiras páginas. Eis o que me pergunto: — e por que, de repente, sumiu toda a aversão, todo o nojo gráfico pela morte?
Não foi uma promoção política, ideológica, ou a vontade mercenária de vender mais jornal. Não. A meu ver, o que fasci­nou foi a imagem linda. Tenho toda a fotografia, de cor, na ca­beça. Dizia o secretário que barrou o cadáver preto: — “O morto é feio. A morte é um bucho”. E afirmava isso, com uma certeza fanática, sem imaginar que um dia seria também defunto, com a hediondez que atribuía aos defuntos. Mas o estudante assassi­nado era espantosamente belo.
E menino, infinitamente menino. Na fotografia aparece seminu, como um santo. Lá está o peito varado. E eu começo a pensar. Seria parecido com quem? Uma senhora veio me mos­trar o retrato, trêmula de beleza: — “É Ofélia, não é Ofélia?”. Fez uma pausa e completou: — “Lindo como Ofélia!”. E come­çou a chorar.
Vejam vocês. Fora a fotografia, toda a cobertura foi, para o leitor, uma amarga frustração. Falo, sobretudo, das primeiras páginas. Ah, eu ainda apanhei a última geração romântica da im­prensa. Uma manchete era, por vezes, uma solução em oito co­lunas, em tipos garrafais. Quando mataram o rei e o príncipe herdeiro de Portugal, o nosso Correio da Manhã lançou várias manchetes e mais esta: — horrível emoção! Hoje, a primeira pá­gina não faz nenhuma concessão ao espanto, nenhuma conces­são ao horror, nenhuma concessão à misericórdia. Ao passo que a antiga primeira página pingava sangue e pingava lágrima. Em nossos dias, ela é a pura e radical objetividade.
Vejamos, ao acaso, o Jornal do Brasil. O fuzilamento do menino era uma catástrofe. Mas a catástrofe não foi tratada co­mo tal. De modo algum. Fui ler a primeira página do velho ór­gão. Eis os termos em que se apresenta a tragédia: “A morte do estudante Edson Luís de Lima Souto — baleado no peito, às 18h30m de ontem, durante um conflito da pm com estudantes no restaurante do Calabouço”. E só. Tenham paciência. Mas esse tom impessoal, sumário, desumano, seria apropriado para no­ticiar um atropelamento de cachorro. O leitor tem vontade de bater para o Departamento de Pesquisas do Jornal do Brasil e lembrar-lhe: — “Vocês estão falando de um estudante, um me­nino, um ser humano”.
E assim o patético da fotografia não existe no texto. Uma objetividade idiota arranca do fato as suas entranhas ou, se pre­ferirem outra imagem, castra todas as potencialidades do fato. Republiquei, acima, textualmente, o que disse a primeira pági­na do Jornal do Brasil sobre uma catástrofe. Eu escrevi “obje­tividade idiota” e é realmente idiota. E assim, estritamente objetivo, o Jornal do Brasil põe uma distância imensa entre o lei­tor e o acontecimento, entre o leitor e o espanto, entre o leitor e a misericórdia, entre o leitor e o ódio. Sim, essa meia dúzia de linhas humilha, desfeiteia, degrada o martírio.
[2/4/1968]

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