terça-feira, 14 de outubro de 2008

“O VERDADEIRO CRISTO É MARX!”

Nos momentos pânicos do Brasil, corro aos grã-finos. Bem os conheço. Têm uma fina sensibilidade histórica e, direi mes­mo, um agudo faro profético. E, no último sábado, lá fui eu pa­ra um palácio no Alto da Boa Vista (o banheiro da dona da casa, todo em mármore e com bicas de ouro, é desses que exigem uma Paulina Bonaparte). Chego e caio nos braços do anfitrião. Qual um Bórgia obeso, ele me arrasta de convidado em convi­dado, fazendo as apresentações. Bem. já apertei todas as mãos presentes. E, então, ele me pergunta: — “Você não é marxista?”.
Alcei a fronte: — “Não sou marxista”. O Bórgia recua dois passos e avança outros dois, num desolado escândalo: — “Co­mo pode? Como pode?”. E, de fato, em certas recepções, o não-marxista é olhado como se fosse uma girafa. O dono da casa atraca-se a mim, patético: — “Você tem de ser marxista!”. E, de olho rútilo e lábio trêmulo, repete o apelo: — “Seja marxista!”.
Aquela reunião tinha belas senhoras por toda parte. Eu pró­prio estou cercado de decotes. E, então, para me justificar e me absolver, falo de uma velha entrevista que fiz com o Otto Lara Resende, a quatro mãos. Lá está dito o óbvio, isto é, que falta a Marx a dimensão da morte. Em nenhum escrito marxista há uma linha, uma escassa linha sobre o nosso destino eterno. E, como Marx nos tirara a alma imortal, queríamos que ele a devolvesse.
Um dos decotes presentes tomou a palavra. Afirmou que, não sendo eu marxista, o meu teatro estaria mais obsoleto do que a primeira audição do “Danúbio azul”. O anfitrião secun­dou: — “Todo teatro moderno tem de ser marxista. Ou é mar­xista ou não é nem moderno, nem teatro”. Afastei-me um momento para largar o cigarro no cinzeiro. Quando voltei, o anfi­trião falava para uma senhora, de belíssimo decote. Dizia ele, mais interessado no decote do que na luta de classes: — “Marx é tudo!”.
Houve uma concordância unânime (eu era a única e muda oposição). Durante duas ou três horas, Marx deixou de ser Marx e passou a ser “o velho”. E, quando as senhoras diziam “o ve­lho”, havia um frêmito geral e voluptuosíssimo nos decotes. Foi então que arrisquei: — “O marxismo é o ópio do povo”. Fiz a frase, sem lhe acrescentar um ponto de exclamação. A coisa saiu em tom modesto e, mesmo, tímido. Tive o cuidado de evi­tar qualquer ênfase. Todavia, percebi, imediatamente, a minha inconveniência brutal. Ninguém disse nada; e esse mudo hor­ror me agrediu mais do que um soco na cara.
Fui posto de lado. Fiquei confinado no fundo da sala, e só olhando. Lá adiante, o Bórgia falava, a outro decote, sobre o Sudeste Asiático. Mas eu era um pobre-diabo, sem função e sem destino, naquela festa. Mais um pouco e me despedi. Por coin­cidência, saiu comigo um conhecido. E ele veio me dizendo: — “Chamar marxismo de ópio do povo é uma boa piada”. Lo­go, porém, corrigiu: — “Mas você deu um fora. Não se diz tu­do”. Retruquei-lhe que as coisas não ditas apodrecem em nós. Com uma condescendência superior, o outro suspira: — “Vo­cê é literário demais”.
Mais tarde, em casa, trato de adular a minha úlcera com um prato de mingau. E não me sai da cabeça o sarau de grã-finos. Tomando a papinha analgésica, ainda via aquelas belas senho­ras sob a embriaguez marxista. Eram ninfas decotadas falando de “o velho” como de um luminoso sátiro vadio. E pensava no “ópio do povo”. Realmente, é uma imprudência, um risco, um mau negócio não ser marxista. Ou por outra: — não se trata de ser marxista, mas de se dizer marxista. “Dizer-se marxista” é uma maneira de ser inteligente sem ler o próprio Marx e muito menos o próprio Marx. Mas falei no “ópio do povo” e já não sei se posso totalizar. Certas populações do Brasil ainda não che­garam nem à República e ainda estão em Pedro ii. Todavia, nas grandes cidades, o Pedro ii das elites é Marx. Intelectuais, estudantes, grã-finos fumam o ópio marxista.
De vez em quando, um desses fumantes me diz: — “Marx é maior do que Cristo”. E um outro viciado jurou-me: — “O verdadeiro Cristo é Marx”, Ambos usavam a mesma ênfase alucinatória. Bem os entendo. O Brasil atual é um pouco a Velha China. Sabemos o que foi, historicamente, para o antigo chi­nês, o papel do ópio. Houve uma espantosa deliqüescência de valores. O vício maravilhoso destruía o sentimento de terra, de nação, de história, de família. Tudo apodrecia no êxtase supre­mo. (Mas a China não pode viver sem ópio. Hoje o ópio, o so­nho, o delírio é Mao Tsé-tung.)
Julgo perceber uma certa semelhança entre o aviltamento da China do ópio e a atitude de certas áreas ideológicas do Bra­sil. Procurem me entender. Fumamos o ópio marxista. Muito bem. E, na fumaça leve e encantada que sopramos, não aparece a silhueta do Brasil. É cada vez mais cruel a distância entre as esquerdas e o Brasil. De vez em quando, vejo muros pichados com vivas a Cuba. Eis o que me pergunto, gelado de pavor: — “Vivas a Cuba e não ao Brasil?”. Nunca, até hoje, se sujou um muro brasileiro com um honesto e desesperado viva ao Brasil.
Ainda ontem recebi um telefonema patético. Era uma estu­dante da puc. Não fez nenhum mistério: — “Sou marxista”. Per­guntei, risonhamente: — “Ah, você também gosta de ópio?”. Ela não entendeu. Mas, quando falou em “o jovem”, fui taxati­vo. Expliquei o meu ponto de vista. Para mim, “o jovem” é tão falso, tão irreal como “o artista”, “o judeu”, “o negro” etc. etc. Mas ela queria falar do Vietnã, de Cuba, da China, da Rússia e, para xingar, dos Estados Unidos.
Com relativa paciência, fiz-lhe ver a sua confusão geográfi­ca. Isto aqui é o Brasil. E repeti: — “Ponha-se no Brasil! Ponha-se no Brasil!”. Finalmente, tomei a palavra e não a larguei mais. Disse-lhe que, no momento, só me interessa um fato: — a soli­dão do Brasil. Cuidar do Vietnã, de Cuba, da África, é a melhor maneira de não fazer nada, de não sair do Antonio’s, de não dei­xar a praia. Há todo um Brasil por fazer. E o ópio ideológico justifica e absolve a nossa deslavada ociosidade. Vamos dar vi­vas a Cuba e ninguém precisa mover uma palha, tirar uma ca­deira do lugar. Por fim, eu estava exausto do meu próprio fer­vor polêmico. Furiosa, a aluna da puc já me tratava de você. Ex­plodiu: — “Sabe de uma coisa? Você é um velho gagá!”. Bateu com o telefone. Fiquei, por um momento, meio alado, contem­plativo. Depois, me levantei. E me sentia realmente uma múmia.
[16/4/1968]

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