quinta-feira, 16 de outubro de 2008

A FEIA SOLIDÃO

Que brasileiro não tem uma vizinha gorda e cheia de vari­zes como uma viúva machadiana? Dirá alguém que a vizinhan­ça forma um elenco abundante e diversificado. Não é bem as­sim. A vizinha autêntica e universal há de ser obesa. E mais: — é preciso que, na estação cálida, use um colar de brotoejas.
Eis o que eu queria dizer: — uma dessas minhas vizinhas patuscas é uma maníaca de velório. Todo o santo dia, lá vai ela para a Capelinha de Real Grandeza, Catumbi ou São Francisco Xavier. E, como a capela possibilita a simultaneidade de veló­rios, ela passa de um para outro e pranteia os vários defuntos. Ao vê-la assoar-se no lencinho, perguntam: — “A senhora é pa­rente?”. Não é nada. Não conhece o morto nem de vista, nem de nome, nem de cumprimento.
(E a santa senhora chora, de preferência, o desconhecido absoluto. Tem um inconfesso e irritado preconceito contra o cadáver de suas relações.) Um dia, cruzo com a vizinha macha­diana. Dou-lhe um “bom-dia” e ia passar adiante. Ela, porém, crispa no meu braço a sua mão pequena e voraz de gorda. Diga-se de passagem que é a única senhora de minhas relações que preserva o uso inatual e nostálgico do leque.
Era um dia irrespirável. A canícula lavrava por toda a cida­de. Ao mesmo tempo que falava comigo ela abanava, sim, re­frescava as brotoejas do pescoço. Simplesmente, a vizinha queria dizer-me, com uma convicção forte: — “Não há mais enterros como o do barão do Rio Branco”. Ela, que não saía dos cemité­rios, falava de cadeira. Eu, grave, concordei. Ficamos um mo­mento, em pé, na calçada. E a vizinha e eu parecíamos achar que, entre outras coisas, um grande enterro é quase uma atra­ção turística, assim como o Pão de Açúcar ou Paquetá.
Despedi-me. A santa senhora rumou não sei se para o São João Batista, Catumbi ou Caju. E eu vim para a cidade. Não era a primeira vez que me falavam dos funerais do barão. Na minha infância, outras vizinhas obesas lembravam muito a morte de Rio Branco. A cidade parou. Todo mundo veio para cima do meio-fio.
O grande enterro não tem a menor tristeza. Havia uma ex­citação, uma euforia e uma massa inédita de coroas. Honras de chefe de Estado. E foi um espetáculo encantado e concorrido como um domingo de regatas. E, na volta do cemitério, a cida­de só deplorava que o barão não morresse todos os dias. Muito bonito eram as dálias que ficavam boiando no asfalto, em todo o fúnebre itinerário.
Mas, como eu ia dizendo: — deixei a vizinha e apanhei con­dução para o Centro. E me causou uma certa pena a constata­ção da gorda: não há mais grande enterro no Rio. E uma coisa explica a outra: — não há grande enterro porque falta o grande defunto. Outrora, o Brasil tinha um Rio Branco para enterrar; ou um Rui Barbosa, ou um Floriano, ou um Nilo ou um Deodoro. No momento do crime político, havia um Pinheiro Macha­do para se apunhalar. Na rua, o sujeito cruzava com o grande homem e o cumprimentava (tínhamos o instrumento da reve­rência, que é o chapéu).
Aí está dito tudo: — o “grande homem”. Havia o “grande homem” e não há mais. E que é a crise de liderança que nos dilacera? O Brasil procura em vão um líder para o seu amor, ou um líder para o seu ódio. Mas onde achá-lo, se nos falta pre­cisamente o “grande homem”? Dirá alguém que os meios pro­mocionais são infinitos. Com as técnicas modernas, é possível vender bem uma mediocridade.
Não, não é possível. Há uma grandeza que o defunto mais enfático não consegue fingir. E, de mais a mais, não basta nem o gênio, nem a vitalidade histórica do cadáver. Para o “grande enterro” é preciso um conjunto de fatores. E já estou aqui pen­sando numa bela figura — Baudelaire, que, segundo o nosso Afrânio Peixoto, é um “torpe realista”.
Em dia e ano que não me ocorrem, o “torpe realista” mor­reu. Teria, se não me falha a memória, seus 43 anos. De que morreu, não sei, nem importa. Morreu. Ora, era de esperar que seu enterro tivesse a concorrência de um simples aniversário de Victor Hugo. Quando o velho Hugo completou setenta, Pa­ris inteira desfilou na sua porta, atirando-lhe braçadas de rosas. Foi uma apoteose nunca vista.
Pois Baudelaire devia merecer pelo menos um bonito en­terro. E, no entanto, vejam vocês: — cinco pessoas, exatamen­te cinco, nem mais, nem menos, foram levá-lo ao cemitério. Era um grande homem sem um grande enterro. Mas dizia eu que certos fatores influem no brilho dos funerais. O artista, o herói, o santo, precisam morrer na hora certa, nem um minuto antes, nem um minuto depois. E Baudelaire morreu, impropriamen­te, quando não era mais escândalo, não era mais apelo. Sim, mor­reu no justo instante em que sua figura e sua obra mereciam um certo cansaço, um certo tédio provisório. Devia ter morri­do ou muito antes ou muito depois.
Outro que não teve o enterro do barão do Rio Branco foi Mozart. Também morreu no momento impróprio. Dirá alguém que, mais feliz do que o “torpe realista”, teve um acompanha­mento de trinta pessoas. Acontece, porém, que, no meio do ca­minho, começou a chover, a ventar, a relampejar. Era o chama­do mau tempo de 5° ato do Rigoletto. E, então, houve uma de­bandada feroz. Largaram o caixão e todos dispararam fisicamen­te. Até hoje perdura o mistério: — ninguém sabe onde enterra­ram Mozart e se o enterraram.
Mas vejam vocês como a singela observação de uma vizi­nha desencadeou, em mim, todo um processo de angústia. E, súbito, passo a entender melhor a solidão do Brasil. De vez em quando sentimos na vida brasileira uma aridez de três desertos. Eis a constatação humilhante: — o Brasil está triste porque não tem um “grande homem” para enterrar.
[17/4/1968]

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