sexta-feira, 17 de outubro de 2008

SÓ O ÓDIO CONSTRÓI

Nenhum povo vive sem o “grande homem”. Vejam a Fran­ça. A França não tinha uma Joana d’Arc, nem tinha um Napo­leão. Tratou de providenciar um De Gaulle. E De Gaulle foi es­culpido às pressas, embrulhado e, por fim, inaugurado. Com o grande homem, a França encontrou a paz social, familiar, eco­nômica etc. etc.
Mas, eu pergunto, o que aconteceria se ela não achasse o seu De Gaulle? Se não fosse este, seria um outro De Gaulle. Mas vamos admitir que, de repente, por uma dessas insuportáveis fatalidades históricas, os franceses não descobrissem nenhum De Gaulle. Sem o “grande homem”, a velha nação seria como que uma cocote desdentada e gagá.
Outrora, o Brasil tinha o “grande homem” ou alguém que o imitasse. E, súbito, o brasileiro olha e não vê ninguém. Não há um único e escasso Rui Barbosa, não há um único e escasso Santos Dumont. Sim, não se vê um outro “Pai da Aviação”. E sentimos também, na paisagem brasileira, a falta desesperadora dos positivistas. Cada geração devia ter um Teixeira Mendes, um Reis Carvalho.
Mas, pergunto: — qual o papel do “grande homem”? Jus­tamente, ele desagrava o pobre-diabo de velhas e santas humi­lhações. Nunca me esqueço de um domingo (se não me enga­no, domingo) em que acordo e ouço o brado da minha cozi­nheira: — “Marta Rocha tirou o segundo lugar!”. Pulei da cama, ferido pela notícia. Era o rádio que estava dando, em fre­néticas edições extraordinárias.
Há muitos e muitos anos este povo não recebia um impac­to tão firme e tão puro. Era um segundo lugar (cínico segundo lugar, porque Marta Rocha merecia os dez primeiros lugares). Mas é preciso compreender que o brasileiro nasce marcado pe­la vergonha física. Não sei se me entendem. O brasileiro é um Narciso às avessas que cospe na própria imagem. Somos feios confessos. E, de repente, uma brasileira tira, num concurso mun­dial de beleza, o segundo lugar. A minha cozinheira sentiu-se atravessada de luz como uma santa de vitral.
Deu-me vontade de sair gritando: — “Somos lindos! So­mos lindos!”. Naquele dia, o Narciso patrício não precisou se autocuspir. E, por um segundo, a crioulinha favelada teve o seu toque de graça incomparável. Desde então, sempre que penso num elenco de “grandes homens” brasileiros, incluo Marta Ro­cha. Ela bem o merece. Tornou bonito um povo feio.
Não direi que todos amam o “grande homem”. Há quem o abomine e com justiça. Refiro-me à sua mulher. Que estranha figura shakespeariana, ferida pelo tédio, pelo rancor, pela soli­dão. Conversei, certa vez, com o médico de um “grande ho­mem”. E o médico, apavorado, me dizia: — “Estou com a mi­nha cara no chão!”. No seu espanto, perdera toda a polidez, to­da a cerimônia de linguagem e repetia: — “Estou besta! Besta!”.
O “grande homem” acabara de morrer. Não vou citar no­mes. O presidente da República fora visitá-lo nos últimos mo­mentos. Soube que estava agonizando e inclinou-se diante da quase viúva: — “Que lástima! Que lástima!”. Mas o que impres­sionara o médico não foram as homenagens oficiais, nem os mi­nistros que entupiam as salas, nem os automóveis que chega­vam e partiam. Tudo isso era secundário, irrelevante e vagamen­te humorístico.
Mas houve um momento em que o médico e a esposa do moribundo ficaram sozinhos, no quarto. Acabavam de sair duas tias, uma cunhada, um irmão. A esposa foi torcer a chave; nin­guém entraria mais, ninguém. E, então, ela pergunta: — “Ele vai morrer?”. Suspense. O outro vacila; insinua: — “Há sem­pre esperança”. A mulher fala baixo e fremente: — “O senhor não me entende. Eu quero que ele morra! Quero! E já! Enten­deu agora? Não agüento nem mais quinze minutos!”.
O médico, lívido, não sabia o que dizer, o que pensar. Ela o agarrou: “Diga que ele morre! Diga, doutor!”. Súbito, o mé­dico entendia tudo. O “grande homem” e a mulher viviam jun­tos há trinta anos. Passavam por bem casados. E agora que ele morria, as palavras da esposa vinham como um vômito de res­sentimento conjugai. O clínico balbuciava: — “Calma, minha senhora, calma! O momento não é próprio!”. E repetia, fora de si: — “O momento não é próprio!”.
Mas depois, falando comigo, e já enterrado o “grande ho­mem”, via as coisas com outra isenção e objetividade. Queria acreditar que é realmente difícil ser fiel a uma pose. Para a es­posa, ou amante, ou o que seja, o “grande homem” é uma po­se. No caso referido, a pobre mulher já se casara com o gênio reconhecido e proclamado. Coabitar com uma pose é o pró­prio inferno.
Bem. Fiz a meditação acima para chegar ao dr. Christian Barnard. Temos tal fome e sede de “grande homem” que toda a cidade veio para a rua adorá-lo. Hoje, o mundo é, para o amor, a Casa de Bernardo, Alba. Os maiores homens do nosso tempo não têm uma palavra irmã. Fuzilaram o pastor negro precisa­mente porque ele trouxe, para o seu povo, o puro gesto de amor.
Só o ódio é promocional. E é preciso odiar mais do que os outros. E berrar mais. O próprio sacerdote justifica e absol­ve certas “violências”. Há a “carnificina santa”. É assim no Brasil e no mundo. E, súbito, desembarca no Brasil o “grande homem” que não esbraveja, o “grande homem” não ressentido, não ho­micida. Podemos amá-lo na certeza de que não estamos aman­do o ódio.
E, em vez de matar e de morrer por ódio, ele simplesmen­te nos oferece a ressurreição. Como se não bastasse, é “grande homem” sem parecê-lo. Lembra mais um funcionário, um ban­cário, um namorado da Tijuca, um rapaz da praça Saenz Peña. Vimos o caso da esposa condenada a amar uma pose e com a pose coabitar. O nosso Barnard é o gênio sem pose nenhuma, nenhuma. Simples como um luminoso contínuo. Merecia que lhe beijassem, na calçada, a marca dos sapatos.
[18/4/1968]

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