Nenhum povo vive sem o “grande homem”. Vejam a França. A França não tinha uma Joana d’Arc, nem tinha um Napoleão. Tratou de providenciar um De Gaulle. E De Gaulle foi esculpido às pressas, embrulhado e, por fim, inaugurado. Com o grande homem, a França encontrou a paz social, familiar, econômica etc. etc.
Mas, eu pergunto, o que aconteceria se ela não achasse o seu De Gaulle? Se não fosse este, seria um outro De Gaulle. Mas vamos admitir que, de repente, por uma dessas insuportáveis fatalidades históricas, os franceses não descobrissem nenhum De Gaulle. Sem o “grande homem”, a velha nação seria como que uma cocote desdentada e gagá.
Outrora, o Brasil tinha o “grande homem” ou alguém que o imitasse. E, súbito, o brasileiro olha e não vê ninguém. Não há um único e escasso Rui Barbosa, não há um único e escasso Santos Dumont. Sim, não se vê um outro “Pai da Aviação”. E sentimos também, na paisagem brasileira, a falta desesperadora dos positivistas. Cada geração devia ter um Teixeira Mendes, um Reis Carvalho.
Mas, pergunto: — qual o papel do “grande homem”? Justamente, ele desagrava o pobre-diabo de velhas e santas humilhações. Nunca me esqueço de um domingo (se não me engano, domingo) em que acordo e ouço o brado da minha cozinheira: — “Marta Rocha tirou o segundo lugar!”. Pulei da cama, ferido pela notícia. Era o rádio que estava dando, em frenéticas edições extraordinárias.
Há muitos e muitos anos este povo não recebia um impacto tão firme e tão puro. Era um segundo lugar (cínico segundo lugar, porque Marta Rocha merecia os dez primeiros lugares). Mas é preciso compreender que o brasileiro nasce marcado pela vergonha física. Não sei se me entendem. O brasileiro é um Narciso às avessas que cospe na própria imagem. Somos feios confessos. E, de repente, uma brasileira tira, num concurso mundial de beleza, o segundo lugar. A minha cozinheira sentiu-se atravessada de luz como uma santa de vitral.
Deu-me vontade de sair gritando: — “Somos lindos! Somos lindos!”. Naquele dia, o Narciso patrício não precisou se autocuspir. E, por um segundo, a crioulinha favelada teve o seu toque de graça incomparável. Desde então, sempre que penso num elenco de “grandes homens” brasileiros, incluo Marta Rocha. Ela bem o merece. Tornou bonito um povo feio.
Não direi que todos amam o “grande homem”. Há quem o abomine e com justiça. Refiro-me à sua mulher. Que estranha figura shakespeariana, ferida pelo tédio, pelo rancor, pela solidão. Conversei, certa vez, com o médico de um “grande homem”. E o médico, apavorado, me dizia: — “Estou com a minha cara no chão!”. No seu espanto, perdera toda a polidez, toda a cerimônia de linguagem e repetia: — “Estou besta! Besta!”.
O “grande homem” acabara de morrer. Não vou citar nomes. O presidente da República fora visitá-lo nos últimos momentos. Soube que estava agonizando e inclinou-se diante da quase viúva: — “Que lástima! Que lástima!”. Mas o que impressionara o médico não foram as homenagens oficiais, nem os ministros que entupiam as salas, nem os automóveis que chegavam e partiam. Tudo isso era secundário, irrelevante e vagamente humorístico.
Mas houve um momento em que o médico e a esposa do moribundo ficaram sozinhos, no quarto. Acabavam de sair duas tias, uma cunhada, um irmão. A esposa foi torcer a chave; ninguém entraria mais, ninguém. E, então, ela pergunta: — “Ele vai morrer?”. Suspense. O outro vacila; insinua: — “Há sempre esperança”. A mulher fala baixo e fremente: — “O senhor não me entende. Eu quero que ele morra! Quero! E já! Entendeu agora? Não agüento nem mais quinze minutos!”.
O médico, lívido, não sabia o que dizer, o que pensar. Ela o agarrou: “Diga que ele morre! Diga, doutor!”. Súbito, o médico entendia tudo. O “grande homem” e a mulher viviam juntos há trinta anos. Passavam por bem casados. E agora que ele morria, as palavras da esposa vinham como um vômito de ressentimento conjugai. O clínico balbuciava: — “Calma, minha senhora, calma! O momento não é próprio!”. E repetia, fora de si: — “O momento não é próprio!”.
Mas depois, falando comigo, e já enterrado o “grande homem”, via as coisas com outra isenção e objetividade. Queria acreditar que é realmente difícil ser fiel a uma pose. Para a esposa, ou amante, ou o que seja, o “grande homem” é uma pose. No caso referido, a pobre mulher já se casara com o gênio reconhecido e proclamado. Coabitar com uma pose é o próprio inferno.
Bem. Fiz a meditação acima para chegar ao dr. Christian Barnard. Temos tal fome e sede de “grande homem” que toda a cidade veio para a rua adorá-lo. Hoje, o mundo é, para o amor, a Casa de Bernardo, Alba. Os maiores homens do nosso tempo não têm uma palavra irmã. Fuzilaram o pastor negro precisamente porque ele trouxe, para o seu povo, o puro gesto de amor.
Só o ódio é promocional. E é preciso odiar mais do que os outros. E berrar mais. O próprio sacerdote justifica e absolve certas “violências”. Há a “carnificina santa”. É assim no Brasil e no mundo. E, súbito, desembarca no Brasil o “grande homem” que não esbraveja, o “grande homem” não ressentido, não homicida. Podemos amá-lo na certeza de que não estamos amando o ódio.
E, em vez de matar e de morrer por ódio, ele simplesmente nos oferece a ressurreição. Como se não bastasse, é “grande homem” sem parecê-lo. Lembra mais um funcionário, um bancário, um namorado da Tijuca, um rapaz da praça Saenz Peña. Vimos o caso da esposa condenada a amar uma pose e com a pose coabitar. O nosso Barnard é o gênio sem pose nenhuma, nenhuma. Simples como um luminoso contínuo. Merecia que lhe beijassem, na calçada, a marca dos sapatos.
[18/4/1968]
sexta-feira, 17 de outubro de 2008
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário