quarta-feira, 15 de outubro de 2008

OS FALSOS CRETINOS

Anteontem, falei dos idiotas. Sinto, porém, que disse mui­to pouco, quase nada. O assunto foi apenas insinuado, e repi­to: — o assunto está diante de nós como uma Sibéria imensa, à espera de que outros a invadam, e a ocupem, e a fertilizem. E quem não percebeu a invasão dos idiotas não entenderá, ja­mais, o Brasil dos nossos dias.
Sei que em todo o mundo é assim. Mas deixemos o mun­do. Tratemos do Brasil. Dizia eu, na minha confissão de anteon­tem, que Magé me fascina mais do que o Vietnã. E, portanto, vou-me limitar aos idiotas da casa (o Paulo de Castro que cuide dos internacionais).
Outro dia, morreu Assis Chateaubriand. Disse “outro dia” e preciso fazer uma correção de tempo. Em verdade, morrera antes, muito antes de ser enterrado. Aquele homem chumbado à cadeira, entrevado, de riso torto, não era o Chateaubriand, era o anti-Chateaubriand, a negação do Chateaubriand. Mas a sua queda ocorreu no momento exato. Passara a época do “gran­de jornalista”. Sim, o “grande jornalista” teria de vagar, por entre as mesas, cadeiras e estagiárias das redações, como uma lívida figura sem função e sem destino.
Portanto, quem matou Chateaubriand não foi a trombose, mas a inatualidade. Pouco antes, morrera J. E. de Macedo Soa­res. Outro “grande jornalista”. Eu me lembro do que dizia Gil­berto Freyre: — “Como escreve bem! Como escreve bem!”. E, por isso mesmo, porque escrevia bem, tornara-se mais secun­dário, mais irrelevante, em nossa imprensa moderna, do que uma estagiária. Quando morreu, teve nos jornais uma meia dúzia de linhas. Pompeu de Sousa, Danton Jobim e mais três ou quatro acompanharam o seu enterro. O “senador” era um estilista e, como tal, tornara-se mais antigo do que o fraque de Pinheiro Machado.
Penso no meu pai. Um artigo de Mário Rodrigues era lido, em voz alta, nos botecos mais analfabetos. E a pura delícia au­ditiva de sua prosa aumentava a tiragem do jornal em trinta mil exemplares ou mais. Era a época em que uma boa frase derru­bava um ministério. As instituições tremiam com uma penada do “grande jornalista”.
Ainda outro dia, um velho profissional chamou-me a um canto. Simplesmente queria sussurrar-me este conselho de uma sabedoria infinita: — “Não escreva bem, nunca, em hipótese nenhuma”. Ao dizer isso, arquejava de uma bronquite velha, nostálgica, de passadas gerações. E, de fato, o que importa, no momento, é ser idiota.
Nas minhas notas de anteontem, escrevi que o idiota sem­pre se comportara como idiota. Era de uma modéstia exemplar, de uma humildade total. Não em nossa época. De repente, em nossa época, o idiota explode. Na minha infância, não passava do curso primário e já se dava por muito satisfeito. Nascia, cres­cia, namorava e morria sem jamais pensar por conta própria. Podiam pichar-lhe o túmulo com a seguinte inscrição: “Nunca pensou”. O idiota era quase um santo.
O trágico da nossa época ou, melhor dizendo, do Brasil atual, é que o idiota mudou até fisicamente. Não faz apenas o curso primário, como no passado. Estuda, forma-se, lê, sabe. Põe os melhores ternos, as melhores gravatas, os sapatos mais impecáveis. Nas recepções do Itamaraty, as casacas vestem os idiotas. E mais: — eles têm as melhores mulheres e usam mais condecorações do que um arquiduque austríaco.
Não sei se me entendem e se concordam comigo. Mas é o próprio óbvio. A olho nu, qualquer um percebe a ascensão social, econômica, cultural, política do idiota. Outro dia, pas­sou por mim um automóvel das Mil e uma noites, sim, um des­ses Mercedes irreais, com cascata artificial e filhote de jacaré. Lá dentro ia um idiota flamejante.
Desde Noé e antes de Noé, jamais um idiota ousaria ser es­tadista. É verdade que, na velha Roma, um cavalo foi senador. Mas o cavalo é um nobre animal, de maravilhoso frêmito nas ventas. E nunca se viu um idiota relinchar. Pois bem. Hoje, tudo é possível, tudo. Há idiotas liderando povos, fazendo Histó­ria e fazendo lendas. Mao Tsé-tung seria impossível em outra época. Em nosso tempo, passa por ser um estadista gigantesco. Há rapazes, aqui, que se dizem da “linha chinesa”. Embora a distância geográfica que os separa, jovens brasileiros estão por conta de Mao Tsé-tung.
E, assim, lidos, viajados, falando vários idiomas, maridos das melhores mulheres — os nossos idiotas têm também os me­lhores cargos e exercem as funções mais transcendentes. Eu dis­se que estão por toda a parte: — na política como nas letras, nas finanças como no cinema, no teatro como na pintura. Ou­trora, os melhores pensavam pelos idiotas; hoje, os idiotas pen­sam pelos melhores. Criou-se uma situação realmente trágica: — ou o sujeito se submete ao idiota ou o idiota o extermina.
Dirão que exagero. Absolutamente. E é tão importante ser idiota, tão decisivo, que já desponta a fauna, sem precedentes, dos “falsos cretinos”. São rapazes inteligentíssimos, bem-dotadíssimos, alguns beirando a genialidade. Pois bem. O su­jeito, para viver, ou sobreviver, enterra o próprio espírito, co­mo as jóias de Raskolnikov. E, se for preciso, ele finge debilida­de mental e põe-se a babar na gravata, copiosamente.
Eu citaria o exemplo do Ferreira Gullar. Ex-poeta maravi­lhoso. Seu livro A luta corporal ficou, se me permitem a ênfa­se, como um momento de eternidade. Mas o Ferreira Gullar foi cercado, envolvido, triturado pelos idiotas. E, hoje, só consen­te em ter espírito, à meia-noite, num terreno baldio, sob a luz de fúnebres lampiões.
[15/4/1968]

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