
Também sozinho constrói a sua morte. Matou e agora se mata. Eis o que eu queria dizer: — não sabia que, assim como um elefante desgarra do seu povo, também há rios que se tornam possessos. Quem me disse isso foi o meu amigo Eucyro Pereira. Acaba de chegar do Amazonas, como integrante do Projeto Rondon. Ele, que é cirurgião-dentista, e mais seiscentos estudantes deram um pulo ao “Inferno Verde”.
As intenções nobilíssimas do Projeto Rondon podem ser assim resumidas: — “Integrar para não entregar”. Por aí se vê e por aí se sente o nosso brio nacional. O sujeito que ali do Antonio’s ou do Castelinho declama sobre o Amazonas é, na melhor das hipóteses, um cínico. Temos que ir lá fisicamente, temos que farejar, apalpar aquela imensa e florestal Sibéria.
Volto ao elefante que, tocado por uma tara irresistível, parte para a sua tremenda aventura solitária. O que me diz Eucyro Pereira, de volta daqueles mundos, é que uma fantástica loucura induz um certo rio a tomar um itinerário inesperado e absurdo. Que misteriosa tara fluvial é essa que desvia águas tranqüilas e as enfurece?
Em certas regiões, não são possíveis as paisagens fixas, imutáveis. De repente, a loucura de um rio pode mudar tudo. O nosso Eucyro conta que certa vez (passou lá, se bem me lembro, trinta e tantos dias) estava diante de um grande rio. Era um afluente do rio Negro. Nós, que só conhecemos os poentes do Leblon, nem podemos imaginar o que seja um poente explodindo naquelas solidões.
E conta o Eucyro que, muitas vezes, teve uma sensação paradisíaca. (Vamos entender por paraíso uma paisagem virginal-mente analfabeta, sem jornal, sem manchete, sem radinho de pilha. Se, naqueles dias, ocorresse o duplo suicídio atômico dos Estados Unidos e da Rússia, Eucyro e os outros expedicionários não iam perceber nada.) O meu amigo via, lá adiante, no meio do rio, uma ilha maravilhosa. Era doce, muito doce. E, na margem, o Eucyro ficava ouvindo o silêncio da ilha.
Até que um dia ele acorda e olha. Não via nada. Põe a boca no mundo: — “Cadê a ilha? Cadê a ilha?”. Outros vieram e ninguém viu a ilha. E, além disso, também a paisagem mudara, também a paisagem era outra, outros os rumores, outros os silêncios. Era o rio. Como um elefante tarado, o rio destruíra a ilha, ou a enxotara. Ela estaria submersa ou fora levada para outras paisagens.
Eis o nosso Eucyro num mundo que parecia ser recriado de quinze em quinze minutos. O sujeito fazia a sua acomodação visual para uma paisagem. Do dia para a noite, a paisagem podia ser outra, exigindo todo um novo reajustamento óptico. Era de alucinar.
Mas vejamos. O nosso Eucyro era uma visita no chamado “Inferno Verde”. E como se comportam os que lá habitam? Sim, os que nascem, vivem e morrem junto aos rios que lambem e devoram as ilhas? Perguntei ao meu amigo: — “E os índios? E os índios?”.
Preliminarmente, o meu amigo informa que o Serviço de Proteção aos índios é uma lúgubre piada. Eucyro andou fazendo suas observações sobre a tribo Arapago, que vive no alto rio Uaupés, afluente do rio Negro. Ora, nós que passamos as noites no Antonio’s, tomando cerveja em lata — não podemos imaginar o que seja a miséria dos índios. Vamos fazer um paralelo entre eles e os nossos favelados.
O favelado carioca é um Walther Moreira Salles diante dos arapagos. Estes comem farinha com água. Perguntará alguém: — “E a pesca?”. Está aqui o Eucyro, a meu lado, informando: — “Nem todos pescam”. Há os que morrem de fome e não pescam. Alguns índios são alfabetizados. Estes formam uma pequena elite, com maiores possibilidades vitais. Mas a primeira providência do índio alfabetizado é passar para a Bolívia, não voltando nunca mais, nem a tiro. O índio que aprende a ler torna-se cínico como o branco e vira contrabandista como os brancos.
Mas, o que fazer dos 4500 índios que o meu lírico Eucyro Pereira viu nas margens do rio Uaupés? Se lá ficarem, estarão condenados ao puro e simples extermínio. Mas, pergunto: — podemos abandonar os nossos irmãos índios? Aqui começa a nossa humilhação nacional: — não vamos fazer nada, rigorosamente nada. Eles estão entregues à sua negra sorte. Aquele que se alfabetizar passará para o outro lado e se tornará boliviano, um cínico boliviano. E os outros vão apodrecendo em vida.
Todavia, há pior, repito, há pior. Não vamos fazer nada pelos índios, nem pelo próprio Amazonas. Deus me livre de subestimar a utopia que inspirou o Projeto Rondon. O homem precisa de utopias e direi mesmo: — são umas quatro ou cinco utopias que ainda nos salvam. Mas não vejo como esse formidável empreendimento possa ser bem-sucedido. Senão, vejamos.
Os rapazes do maravilhoso Projeto Rondon voltaram com a sensação de que o Amazonas tem em seu ventre não um mundo só, mas vários mundos. São várias sibérias florestais, fluviais, pedindo pelo amor de Deus: — “Me ocupem, me ocupem!”. Aquilo é nosso. Eu falei em sibérias e já uso outra imagem: — é o maior terreno baldio da Terra. Dirá alguém que não temos dinheiro. Afirma Eucyro: — “Nem todo o ouro dos Estados Unidos!”. Mas vamos esquecer o dinheiro. Faz de conta que há o dinheiro.
Não seria o bastante para povoar, asfaltar, edificar tantos desertos formidáveis. Eis o que eu queria dizer: — faltaria sempre, como excitante infalível, o ódio aos Estados Unidos. Presentemente, nada se faz no Brasil sem o santo ódio aos norte-americanos. É o afrodisíaco que potencializa o jovem, o velho e os grã-finos. Sem esse bonito ódio, não há gesto, não há ênfase, não há patético, não há palavrão, e nem há d. Hélder. Seria insuportável uma paisagem brasileira sem o d. Hélder, de mãos postas, contra os Estados Unidos.
E, por azar, ninguém pode dizer que o imperialismo yankee é o autor do deserto amazônico. Os Estados Unidos não têm nada com o peixe. Não foram eles que inventaram os rios malucos, as ilhas suicidas, as solidões florestais. Por que d. Hélder não se mete no Amazonas? Certa vez, um colega meu descobriu na mata um seringueiro que não ouvia a voz humana há um ano. O sujeito não ouvia nem a própria voz, porque desaprendera a falar. E quando escutou a voz do meu colega caiu num deslumbramento convulsivo. Soluçava como um louco. Por que d. Hélder não vai rezar três aves-marias e seis padres-nossos para os seringueiros cegos, surdos e mudos? Ah, porque sem o ódio ao americano nenhuma miséria é promocional, e não rende primeira página, nem manchete, nem entrevista, nem televisão.
[25/2/1968]
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