sexta-feira, 3 de outubro de 2008

INTEGRAR PARA NÃO ENTREGAR

Imaginem o seguinte: — uma massa de elefantes em dispa­rada. O seu rumor povoa de medo a solidão. E, súbito, um de­les desgarra dos outros. Está monstruosamente só. E, sempre só e cada vez mais só, tenta construir o seu destino individual. Vai destruindo tudo e assassinando tudo. E só pára quando mor­re. No fim, não é mais o homicida, mas o suicida.
Também sozinho constrói a sua morte. Matou e agora se mata. Eis o que eu queria dizer: — não sabia que, assim como um elefante desgarra do seu povo, também há rios que se tor­nam possessos. Quem me disse isso foi o meu amigo Eucyro Pereira. Acaba de chegar do Amazonas, como integrante do Pro­jeto Rondon. Ele, que é cirurgião-dentista, e mais seiscentos estudantes deram um pulo ao “Inferno Verde”.
As intenções nobilíssimas do Projeto Rondon podem ser assim resumidas: — “Integrar para não entregar”. Por aí se vê e por aí se sente o nosso brio nacional. O sujeito que ali do An­tonio’s ou do Castelinho declama sobre o Amazonas é, na me­lhor das hipóteses, um cínico. Temos que ir lá fisicamente, te­mos que farejar, apalpar aquela imensa e florestal Sibéria.
Volto ao elefante que, tocado por uma tara irresistível, parte para a sua tremenda aventura solitária. O que me diz Eucyro Pereira, de volta daqueles mundos, é que uma fantástica loucu­ra induz um certo rio a tomar um itinerário inesperado e absur­do. Que misteriosa tara fluvial é essa que desvia águas tranqüi­las e as enfurece?
Em certas regiões, não são possíveis as paisagens fixas, imu­táveis. De repente, a loucura de um rio pode mudar tudo. O nosso Eucyro conta que certa vez (passou lá, se bem me lembro, trinta e tantos dias) estava diante de um grande rio. Era um afluente do rio Negro. Nós, que só conhecemos os poentes do Leblon, nem podemos imaginar o que seja um poente explodindo naquelas solidões.
E conta o Eucyro que, muitas vezes, teve uma sensação pa­radisíaca. (Vamos entender por paraíso uma paisagem virginal-mente analfabeta, sem jornal, sem manchete, sem radinho de pilha. Se, naqueles dias, ocorresse o duplo suicídio atômico dos Estados Unidos e da Rússia, Eucyro e os outros expedicioná­rios não iam perceber nada.) O meu amigo via, lá adiante, no meio do rio, uma ilha maravilhosa. Era doce, muito doce. E, na margem, o Eucyro ficava ouvindo o silêncio da ilha.
Até que um dia ele acorda e olha. Não via nada. Põe a boca no mundo: — “Cadê a ilha? Cadê a ilha?”. Outros vieram e nin­guém viu a ilha. E, além disso, também a paisagem mudara, tam­bém a paisagem era outra, outros os rumores, outros os silên­cios. Era o rio. Como um elefante tarado, o rio destruíra a ilha, ou a enxotara. Ela estaria submersa ou fora levada para outras paisagens.
Eis o nosso Eucyro num mundo que parecia ser recriado de quinze em quinze minutos. O sujeito fazia a sua acomoda­ção visual para uma paisagem. Do dia para a noite, a paisagem podia ser outra, exigindo todo um novo reajustamento óptico. Era de alucinar.
Mas vejamos. O nosso Eucyro era uma visita no chamado “Inferno Verde”. E como se comportam os que lá habitam? Sim, os que nascem, vivem e morrem junto aos rios que lambem e devoram as ilhas? Perguntei ao meu amigo: — “E os índios? E os índios?”.
Preliminarmente, o meu amigo informa que o Serviço de Proteção aos índios é uma lúgubre piada. Eucyro andou fazen­do suas observações sobre a tribo Arapago, que vive no alto rio Uaupés, afluente do rio Negro. Ora, nós que passamos as noi­tes no Antonio’s, tomando cerveja em lata — não podemos ima­ginar o que seja a miséria dos índios. Vamos fazer um paralelo entre eles e os nossos favelados.
O favelado carioca é um Walther Moreira Salles diante dos arapagos. Estes comem farinha com água. Perguntará alguém: — “E a pesca?”. Está aqui o Eucyro, a meu lado, informando: — “Nem todos pescam”. Há os que morrem de fome e não pescam. Alguns índios são alfabetizados. Estes formam uma pequena elite, com maiores possibilidades vitais. Mas a primeira provi­dência do índio alfabetizado é passar para a Bolívia, não voltan­do nunca mais, nem a tiro. O índio que aprende a ler torna-se cínico como o branco e vira contrabandista como os brancos.
Mas, o que fazer dos 4500 índios que o meu lírico Eucyro Pereira viu nas margens do rio Uaupés? Se lá ficarem, estarão condenados ao puro e simples extermínio. Mas, pergunto: — podemos abandonar os nossos irmãos índios? Aqui começa a nossa humilhação nacional: — não vamos fazer nada, rigorosa­mente nada. Eles estão entregues à sua negra sorte. Aquele que se alfabetizar passará para o outro lado e se tornará boliviano, um cínico boliviano. E os outros vão apodrecendo em vida.
Todavia, há pior, repito, há pior. Não vamos fazer nada pe­los índios, nem pelo próprio Amazonas. Deus me livre de subes­timar a utopia que inspirou o Projeto Rondon. O homem preci­sa de utopias e direi mesmo: — são umas quatro ou cinco uto­pias que ainda nos salvam. Mas não vejo como esse formidável empreendimento possa ser bem-sucedido. Senão, vejamos.
Os rapazes do maravilhoso Projeto Rondon voltaram com a sensação de que o Amazonas tem em seu ventre não um mun­do só, mas vários mundos. São várias sibérias florestais, fluviais, pedindo pelo amor de Deus: — “Me ocupem, me ocupem!”. Aquilo é nosso. Eu falei em sibérias e já uso outra imagem: — é o maior terreno baldio da Terra. Dirá alguém que não temos dinheiro. Afirma Eucyro: — “Nem todo o ouro dos Estados Uni­dos!”. Mas vamos esquecer o dinheiro. Faz de conta que há o dinheiro.
Não seria o bastante para povoar, asfaltar, edificar tantos desertos formidáveis. Eis o que eu queria dizer: — faltaria sem­pre, como excitante infalível, o ódio aos Estados Unidos. Pre­sentemente, nada se faz no Brasil sem o santo ódio aos norte-americanos. É o afrodisíaco que potencializa o jovem, o velho e os grã-finos. Sem esse bonito ódio, não há gesto, não há ênfa­se, não há patético, não há palavrão, e nem há d. Hélder. Seria insuportável uma paisagem brasileira sem o d. Hélder, de mãos postas, contra os Estados Unidos.
E, por azar, ninguém pode dizer que o imperialismo yan­kee é o autor do deserto amazônico. Os Estados Unidos não têm nada com o peixe. Não foram eles que inventaram os rios malucos, as ilhas suicidas, as solidões florestais. Por que d. Hélder não se mete no Amazonas? Certa vez, um colega meu desco­briu na mata um seringueiro que não ouvia a voz humana há um ano. O sujeito não ouvia nem a própria voz, porque desa­prendera a falar. E quando escutou a voz do meu colega caiu num deslumbramento convulsivo. Soluçava como um louco. Por que d. Hélder não vai rezar três aves-marias e seis padres-nossos para os seringueiros cegos, surdos e mudos? Ah, por­que sem o ódio ao americano nenhuma miséria é promocional, e não rende primeira página, nem manchete, nem entrevista, nem televisão.
[25/2/1968]

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