sábado, 4 de outubro de 2008

A VIUVEZ DE SARONG

Disse não sei quem que o desejo é triste. Triste de acordo, se for verdadeiro. Porque o falso desejo, o desejo apenas re­presentado, é alegríssimo e salubérrimo. Eis o que eu queria di­zer: — o carnaval que passou foi um espetáculo inédito na Ter­ra. O turista que aqui veio teve uma sensação de erotismo unâ­nime e colossal.
Os gregos antigos achavam que o estrangeiro é divino. E divino porque não traz nome, nem passado, nem história, nem lenda. Tudo o que diz, ou faz, tem um toque de mistério e de sagrado. Assim pensavam os gregos. Mas eu diria que o turista de carnaval não é divino, mas obtuso. Passou aqui os quatro dias e viu tudo errado.
“Errado, como?” — perguntará o leitor. Explico: — viu um erotismo que absolutamente não houve. Nunca se desejou tão pouco e repito: — nunca a mulher foi tão secundária para o ho­mem, nunca o homem foi tão secundário para a mulher. Alguém poderá argumentar com os nus da televisão. E, de fato, o que se viu foi uma nudez indiscriminada, sim, uma nudez multipli­cada, obsessiva e feroz.
Usou-se um sarong que realmente só era sarong na cor. Em verdade, em verdade, o sarong era uma nesga de pano, va­ga folha de parreira, sei lá. A tv é que olhava tudo com a pupi­la violenta dos faunos. Lembro-me de um ventre de baile. Du­rante horas o câmara parou nessa obsessão abdominal. E o es­pectador só via aquele umbigo, sempre o mesmo. Minto. Via também a cicatriz de uma apendicite recente. Nada de caras, ou de gestos. Só o umbigo e só a cicatriz.
Na praia ou, pior, num campo de nudismo, há uma distân­cia, uma distância que permite um mínimo de idealização da nudez. O olho não está tão próximo que possa descobrir uma pe­quena cicatriz. Ao passo que a tv elimina qualquer distância. Sua lente aproxima e amplia o umbigo e a cicatriz. Em todos os bailes, a função da imagem foi essa berrante ampliação.
No vídeo, o cavo umbigo era um súbito e feio abismo. E a penugem leve, que o olho humano não percebe, que o pró­prio tato não sente, vira uma flora liliputiana, mas visível. Os poros estão lá. Em casa, o telespectador vê, de repente, aquele umbigo invadir sua intimidade. Não são milhares, e eu quase dizia, milhões de umbigos. É um único, sempre e fatalmente o mesmo. E a mesma cicatriz da mesma apendicite.
Mas por que essa fixação cruel e cínica? Ao mesmo tempo em que nos era imposta a paisagem abdominal, vinha o locutor e falava em “festa sadia”. Sadia, como? Sadia, o quê? E todas as estações, todas, insistiam em chamar tudo de “sadio”. Uma cidade inteira se despia para milhões de telespectadores. Isso era profundamente “sadio”. Uma câmara fixava um único e ex­clusivo umbigo. Muito saudável. E a cicatriz enfiada na cara do telespectador? Saudabilíssima.
O pobre turista, com a sua obtusidade de turista, via em cada rapaz um fauno de gaita e em cada mocinha uma ninfa de tapete. Mas dizia eu que o desejo não tem nada a ver com ale­gria e nada a ver com a multidão. O desejo é triste e exige o pudor, o segredo, o mistério, a exclusividade do casal (descul­pem estar aqui proclamando o óbvio). Aí está dito tudo: — o casal.
Acabamos de ver uma festa coletiva, em que o casal não teve função, nem destino. E os pares que se beijavam para mi­lhões de telespectadores eram falsos casais, fingindo um dese­jo, representando um amor. Conheço um rapaz que conheceu e amou uma pequena. Imediatamente, os dois construíram uma solidão desesperadora. Ninguém vê o rapaz, ninguém vê a pe­quena. Eles andam por não sei que catacumbas, não sei que ter­renos baldios. Deus me livre que fossem os dois para o baile do Municipal, que é, justamente, o túmulo ululante do amor e, até, do simples e animal desejo. Sempre que um homem e uma mulher se gostam precisam estar prodigiosamente sós, como se fossem o primeiro, único e último casal da Terra.
Nunca houve um carnaval tão triste, porque nunca houve um carnaval tão nu. Dirá alguém que minha obsessão pela nudez é uma fixação infantil. Não sei se infantil, mas é uma fixa­ção. Os jornais e os locutores vão falar em “alegria, alegria”. Realmente, não houve tal. Nada mais triste do que a nudez sem amor. Mas o nu é sempre belo, dirão alguns. Nem isso. É feio, e repito: — sem amor, é feiíssimo.
Ontem, pela manhã, saio de casa perto do meio-dia. Em­baixo, na porta, encontro um amigo. Já no cumprimento sinto a sua amargura. Seu lábio tem o ricto cruel de certas máscaras cesarianas. Diz o “bom-dia” e logo geme: — “Como é feio um­bigo! Você não acha umbigo um negócio feio pra burro?”. Pe­dia, pelo amor de Deus, a minha solidariedade estética. Sim, quarta-feira a cidade acordou com o tédio cruel, uma ressaca insuportável de umbigos femininos. Estamos todos ressentidos contra eles.
E deprime ver a soma de esforços e de conivências que uma simples nudez exige. Uma garota faz, ou compra, um sarong equivalente à folha de parreira. Mas ela não faria isso sozinha. O uso de sarong seria impossível sem o apoio do pai, da mãe, dos irmãos, do marido, do namorado, dos vizinhos, das autori­dades, da imprensa, rádio e televisão. Todos aceitam e estimu­lam porque todos, inclusive as autoridades, querem ser “pra frente”. Vi, no Municipal, a viúva de um aviador que se espati­fou contra a montanha. Pôs ela um sarong na sua viuvez e foi sambar. Quero crer que o falecido também autorizou.
Vejam quantas instituições se juntaram para promover um simples umbigo. E, então, a mocinha vai para o Municipal. Será vista por dez mil pessoas no baile. Vamos somar as dez mil pes­soas e mais os cinco milhões de telespectadores da cidade e Es­tados. Portanto, cinco milhões e dez mil vão ver o que devia ser exclusividade do bem-amado. E como a televisão amplia mais do que o olho do ser amado, este não verá o que os cinco mi­lhões viram com a mais deslavada nitidez.
E perguntará o leitor: — “Quer dizer que somos todos cí­nicos?”. Exatamente: — cínicos. Não me venham falar em ale­gria. Na quarta-feira de Cinzas o brasileiro acordou com este sen­timento inexorável: — como é feia, triste, humilhada, ofendi­da, a nudez sem amor.
[29/2/1968]

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