quinta-feira, 2 de outubro de 2008

ROBINSON CRUSOÉ SEM RADINHO DE PILHA

Terça-feira passada, lá vou eu para a noite de autógrafos de Roberto Campos. Era na Oca. E fazia o célebre mau tempo do 5º ato do Rigoletto. A cidade estava cheia de relâmpagos de curto-circuito e de trovões de orquestra. E, assim, nesse décor de La donna è mobile, cheguei na praça General Osório. Co­migo ia o “Marinheiro Sueco” (sempre este homem fatal).
Ora, o Roberto Campos não é mais o Poder, e vamos e ve­nhamos: — não há ninguém mais vago, mais irrelevante, mais contínuo do que o ex-ministro. Se me perguntassem qual é o perfeito pobre-diabo, daria eu a seguinte resposta fulminante: — “É o ex-ministro”. De mais a mais, era uma noite de autó­grafos com chuva, goteiras e marrecos. Cochichei para o “Marinheiro Sueco”: — “Não vai ninguém”.
Chego e eis o que vejo: — uma fila de Metro, uma fila de Casas da Banha. Todo o Rio de Janeiro estava ali. Vi grã-finas, vi ministros, diplomatas, escritores, arquitetos, cineastas, o dia­bo. E, súbito, passa por mim o governador Negrão de Lima. Há o sorriso recíproco e ele baixa a voz: — “Você deixou em paz o Alceu!”. Foi só. Todavia, para o bom entendedor uma insi­nuação basta.
O que senti, na malícia do governador, foi o seguinte: — o nosso Negrão de Lima sente falta do Alceu nos meus escritos. E não é ele um caso único. Vários leitores ligam e pedem, sem rebuços: — “Fala do Alceu, fala”. Quanto a mim, devo confes­sar: — não há escritor sem assunto e o Alceu é uma das minhas fixações.
(Direi mesmo que um assunto pode fazer um autor, pode ser o autor do autor.) Não nego o deleite com que escrevo so­bre o notável pensador católico. Há dias em que me sinto mais árido do que três desertos. Não me ocorre um nome, ou uma figura, ou um fato. No tempo do Eça, havia a solução do Bei de Túnis. Havia em Túnis um Bei, obeso e sórdido, mais corrupto do que um Nero de Cecil B. de Mille. E o romancista re­solvia a própria esterilidade — malhando o Bei.
Mal comparando, o nosso Alceu, aliás dr. Alceu, é, para mim, uma espécie de Bei sem a sordidez, a obesidade, a cor­rupção do autêntico. E, como vou escrever hoje sobre ele, ima­gino que um dos meus leitores obrigatórios e imensamente di­vertidos há de ser o governador Negrão de Lima. Cabe então a pergunta: — o que teria eu a acrescentar sobre o nosso Tristão de Athayde? Vejamos.
Li, tempos atrás, um artigo do mestre sobre os “crimes con­tra a inteligência”. Ótimo, ótimo. Diz o Otto Lara Resende que o único crime que merece fuzilamento é o erro de revisão. Di­ria eu que fuzilamento mereciam os assassinos de Pasternak, e os juizes russos que condenaram um poeta por ser poeta etc. etc.
Portanto, se o dr. Alceu estava contra os tais crimes, eu es­taria a favor do dr. Alceu. Mas logo tive que recolher a minha solidariedade. É que, mais adiante, o sábio católico equipara, em matéria de liberdade, Espanha, Portugal, China, Rússia etc. etc. e os Estados Unidos. Li o artigo e o reli. E estavam lá os Estados Unidos entre os totalitários, como outro Estado também totalitário.
Não há, pois, liberdade nos Estados Unidos, dentro dos Es­tados Unidos. Quem o diz e, naturalmente, com sólidas razões, é o dr. Alceu. Vejam vocês: — cem mil sujeitos vão ao Pentágo­no protestar contra a guerra. Não lhes acontece nada, ninguém quebrou a cabeça, ninguém foi preso. Pode parecer que o dr. Alceu não lê jornal; ignora as manchetes e é um Robinson Crusoé sem radinho de pilha. Pelo contrário: — lê tudo e sabe tudo.
Há mais: — está em exibição uma peça, em Nova York, que acusa o presidente Johnson e sra. de assassinos de Kennedy. E ninguém lhe cortou uma vírgula. O texto e o espetáculo per­manecem virginalmente intactos. Agora mesmo, recebo uma car­ta do meu filho Joffre, que está em Nova York. Ele me conta, estupefato, o seguinte: — passou lá nos cinemas, em circuito normal, e foi exibido na televisão, um filme das atrocidades norte-americanas no Vietnã.
Eu poderia passar dias aqui demonstrando, com fatos sóli­dos, que os Estados Unidos são o país mais livre do mundo. Mas o leitor, que é um simples e respeita figuras, nomes, reputações, há de perguntar: — “Mas, se há esta evidência, por que o dr. Alceu não a enxerga?”. Quem explica isso, num artigo magis­tral, é o ex-ministro Roberto Campos.
Diz Roberto Campos que um dos maiores pânicos das nos­sas esquerdas, inclusive a católica, é que os Estados Unidos pos­sam ser riscados do mapa. Digamos que a Rússia faça, de sur­presa, um ataque atômico. Em quinze minutos, não há mais Es­tados Unidos, não há mais norte-americanos, não há mais im­perialismo yankee, não há mais nada.
Estou vendo a cena: — o dr. Alceu acorda, apanha o Jor­nal do Brasil e lá está (sem ponto de exclamação) em oito co­lunas o fim dos Estados Unidos. Vamos imaginar o sr. Tristão de Athayde e a esquerda católica num mundo sem os Estados Unidos. Ele e ela perderiam qualquer função, qualquer desti­no. Por outro lado, o Antonio’s teria que fechar suas portas. Sem os Estados Unidos, as esquerdas lá não iriam babar seus pileques e modular seus palavrões.
Ah, não estou exagerando um milímetro. Há sujeitos, no Brasil, que não estão de quatro e urrando no bosque porque há os Estados Unidos. Xingar essa pobre nação é uma maneira de ser inteligente sem ler, sem escrever, sem pensar. Vejam os nossos suplementos dominicais. O sujeito lê, lê e pensa que to­do mundo está escrevendo o mesmo artigo contra os mesmos Estados Unidos.
Certa vez, passo pela porta da puc. Lá vejo, com suas olhei­ras artificiais de vilão de cinema mudo, um conhecido. Fazia a sua ronda de fauno. Paro um momento e ele explica: — “Xin­gar os Estados Unidos dá mulher!”. Diz isso e tem um riso en­charcado e torpe de sátiro vadio. Realmente, que falta fariam os Estados Unidos ao gesto, à ênfase, à retórica e ao palavrão de tanto brasileiro ilustre.
Continuo a minha fantasia. A morte dos Estados Unidos se­ria também a morte de d. Hélder. Vejo-o errante, por entre me­sas e cadeiras, sem o seu assunto, o seu ganha-pão. Eis o nosso arcebispo tendo que voltar a ser um vago funcionário do so­brenatural. Ora, nós sabemos que Deus, a vida eterna, o céu, deixaram de ser promocionais. Imagino d. Hélder apanhando um crucifixo, olhando aquilo e gemendo: — “Ora bolas”.

[24/2/1968]

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