domingo, 5 de outubro de 2008

O ÓDIO AO FATO E À PALAVRA

Há coisa de um mês, ou dois, sei lá, reuniam-se uns rapa­zes de Belas Artes. No princípio do século, o brasileiro era o mais desacompanhado dos seres. (Não havia multidão, e repi­to: — a multidão foi inventada pelo Fla-Flu.) Vejam um retrato da avenida Rio Branco em 1910. E verificaremos o que acima foi dito: — o brasileiro andava fatalmente só.
E, quando três patrícios se juntavam, as instituições tre­miam. Eis o que eu queria dizer: — os rapazes de Belas Artes que se reuniam, em 1968, não queriam derrubar nenhuma bas­tilha. Imaginavam uma singular cerimônia e escolheram a doce paisagem da Cinelândia. Ora, a Cinelândia, mal comparando, é a nossa praça São Marcos. E, portanto, os jovens de Belas Artes se reuniam, provavelmente, com o seguinte e franciscano pro­pósito: — dar milho aos pombos.
E seria, realmente, uma cena linda: — estudantes de am­bos os sexos, com um pombo em cada ombro! E desfilariam, irmanados, pombos e estudantes. O povo aplaudiria e pediria bis, como na ópera. Infelizmente eram outros, e mais ferozes, os desígnios dos rapazes. A cerimônia que eles premeditavam era uma queima de livros. Em suma: — tratavam de exumar uma antiga, obsoleta, mumificada solenidade nazista.
Eu disse “livros” e não precisavam ser obrigatoriamente livros. Os jovens queriam queimar poemas de amor e porque eram de amor. E, depois, sapateariam sobre as cinzas dos ver­sos. Cabe então a pergunta: — o que é que se escondia por trás de um gesto tão limpidamente hitlerista? Eis a surpreendente resposta: — o ódio à palavra.
Os rapazes já odiavam o amor e já odiavam a poesia. Mas o grande ódio era mesmo à palavra. Disse eu, mais acima, que eles não pretendiam derrubar nenhuma bastilha. Engano. Ti­nham, sim, uma bastilha em mira. Essa bastilha era a palavra. Os peraltas vinham anunciar justamente a morte da palavra.
Diga-se, em desfavor dos inconfidentes, que eles se arre­penderam. À última hora deu-lhes uma salubérrima pusilanimi­dade. Em vez de queimar os versos e de entregar as cinzas aos abutres, rasgaram uma meia dúzia de páginas. Esperava-se que dissessem, de fronte alta: — “Somos nazistas, sim! E vocês vão para os diabos que os carreguem!”. Teríamos todo o direito de admirar essa coragem suicida.
Em vez disso, mandaram uma circular para os jornais, na qual se diziam democratas. Essa covardia mimeografada bem me­recia a nossa náusea. Bem. Eu não diria que a palavra morreu. Diria que devemos salvá-la, com toda urgência e sem perda de um minuto. Realmente, nunca a degradamos tanto.
Mas há pior e, repito, há pior. Falo de um editorial do Jor­nal do Brasil, assim intitulado: — imagem falsa. Os estudantes negam a palavra. E vem o Jornal do Brasil e nega também o fato. Senão, vejamos.
Escreve o velho órgão que a televisão projetou uma “ima­gem falsa” do carnaval. Como falsa e por que falsa? Durante os qua­tro dias, eis o que o vídeo nos mostrou: — uma massa inédita de nus. Escrevi que, na quarta-feira de Cinzas, todo mundo acordou com uma atroz ressaca de umbigos. Um vizinho meu acordou, al­ta madrugada, aos berros. A família pulou: acenderam as luzes. Simplesmente, ele tivera um pesadelo de umbigos.
Pergunto eu: — foram as câmaras e os microfones que in­ventaram a nudez unânime? Os umbigos eram apócrifos? Vá­rias senhoras ou mocinhas tinham cicatrizes de apendicite. E, na paisagem abdominal, estava nítida a lembrança do bisturi. Insisto: — também a cicatriz foi uma fantasia das câmaras e microfones?
A televisão saía de um baile para outro baile. E era o mes­mo nu multiplicado e obsessivo. O vídeo continuava mostran­do, ora a nudez individual de uma ou outra figura, ora a nudez coletiva das panorâmicas. Que devia fazer a televisão? Apresentar cavalheiros de fraque, damas de espartilho ou escafandro?
De mais a mais, lá estava a imagem, com a sua veracidade insuportável. E o Jornal do Brasil, em vez de ficar furioso com os umbigos, as cicatrizes, os bustos, os quadris, aplica a sua ira na televisão. Como se vê, é uma fúria errada, que lembra aque­le marido da anedota. Vocês devem lembrar-se e, se não se lem­bram, vou contar.
Imaginem vocês que certo marido soube que tinha sido traí­do. E pior: — na sala. E, então, o santo homem virou-se, não contra a adúltera, não contra o amigo indigno, mas contra o di­vã. Havia lá um divã, que a vítima mandou retirar, incontinenti. Como a infiel insinuasse uma objeção, o marido impôs-lhe a opção fatal: — “Ou eu ou o divã!”. Tão inadequada é a revol­ta do Jornal do Brasil contra as câmaras e os microfones.
Também não concordo quando o gravíssimo órgão diz que as várias estações competiam entre si no “comentário chulo” às imagens vulgares. Ora, nenhum locutor ganha para ser um Flaubert, um Proust. Por outro lado, um pouquinho de modés­tia assentaria bem ao editorialista do Jornal do Brasil: — ele também não é nenhum estilista.
Mas o que me assombra é o ódio ao fato. Os nus, os umbi­gos, os bustos, as cicatrizes, as brotoejas, são fatos sólidos, e mais: — exaustiva e monotonamente documentados, gravados, filmados, esfregados na cara do telespectador. Pois o Jornal do Brasil limpa o pigarro, emposta a voz, alça a fronte e diz, como o português da girafa: — “Isso não existe!”. Vejam vocês: — de um lado, os rapazes juram que a palavra morreu. De outro lado, o Jornal do Brasil trata o fato como se fosse outro defunto.
Mas o editorialista tem sutilezas imprevisíveis. Ao mesmo tempo que condena o nu ele o justifica e consagra. Diz mesmo: — “Ninguém há de esperar que, num instante em que nas praias do mundo inteiro os costumes de banho chegaram a uma ex­pressão mínima”. Paro com a transcrição, que já está me dan­do cãibras no pescoço. Mas o que quer dizer o editorialista é que as nossas carnavalescas têm todo o direito à exibição do umbigo, do busto, da cicatriz. Bem, se o próprio Jornal do Brasil concorda com a nudez promíscua, frenética e ululante, vamos cair nos braços um do outro, aos soluços. E vamos, como ago­ra se diz, parabenizar a televisão, que se limitou a dar uma for­ma visual e auditiva à verdade inapelável e crudelíssima.
Mas onde o editorial atinge as culminâncias do próprio ci­nismo é quando usa uma voz cava de pai de ópera e fala nos “lares da cidade”. Eu sei que há lares deslumbrantes. Mas, de onde pensa o Jornal do Brasil que saíram os umbigos, as cica­trizes, os quadris, os nus? Eram extras das tvs, pagas a tanto por cabeça? Ou ainda: — seriam escravas brancas? Não, duzentas mil vezes não. Vamos reconhecer que oitenta por cento desses nus saíam, precisamente, dos lares, sim, dos lares. E não saem dos lares o umbigo, o seio, a cicatriz do biquíni?
[2/3/1968]

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