terça-feira, 30 de dezembro de 2008

LÍDER DA PRÓPRIA NAMORADA

Certa vez, houve um grave almoço literário. Estavam pre­sentes o Guimarães Rosa, o Antônio Callado e o Otto Lara Re­sende. O velho Rosa era, se assim posso dizer, um santo do es­tilo. E, como estilista fanático, achava uma frase mais importante do que o destino do Vietnã. Em tal almoço, fez ele tremenda pressão sobre o Callado. E dizia-lhe: — “Faça literatura! Faça literatura!”. O Otto ao lado, repetia: — “Literatura! Literatura!”.
Mas o Callado, como a maioria dos nossos intelectuais, tem a ilusão de que carrega, nas costas, a responsabilidade do mun­do subdesenvolvido. Tem tido insônias políticas, ideológicas, libertárias. Até o fim do almoço, que se alongou por três horas fecundas, o Rosa e o Otto malharam o amigo: — “Faça literatu­ra! Faça literatura!”. Deixo o romance e passo à arte dramática. Se almoçasse com a classe teatral, diria eu: — “Façam teatro! Façam teatro!”.
Tão fácil de dizer e tão duro de fazer. Sim, em nosso tem­po é quase impossível fazer apenas romance ou apenas teatro. Há dois ou três dias, escrevi, aqui mesmo, que não há nada mais antigo, mais obsoleto, do que “o artista”. O puro “artista” se­ria algo de inusitado, como uma girafa. A arte passou a ser uma atividade secundária, subalterna e até comprometedora.
E, no entanto, na minha infância, os valores, os usos, os tipos, eram tão mais nítidos e precisos. O pintor era “o pintor” e só “o pintor”. Tinha a forte singularidade da gravata. Imagi­nem um repolho despetalado e cromático. E essa gravata ulu­lante era como que um uniforme inconfundível, inalienável, eterno. E quando “o pintor” entrava, não havia dúvida sobre o seu métier. As senhoras diziam por trás do leque: — “Olha o pintor!”.
Hoje tudo mudou. Vou falar da minha classe. Um ator de­via ser um ator. De igual sorte, uma atriz devia ser uma atriz. É o seu métier, a sua arte, a sua vida ou, na mais prosaica das hipóteses, o seu ganha-pão. Mas ai do artista que quiser ser ape­nas artista. A toda hora e em toda parte, estão a exigir-lhe o ates­tado de ideologia. Ele precisa ter poses de esquerda, frases de esquerda, paixões de esquerda, palavrões de esquerda. Lembro-me de um contra-regra que foi chamado a assinar um manifes­to pelo Vietnã. Coçou a cabeça e gaguejou: — “Eu não sou po­lítico!”. Três ou quatro o acuaram: — “Se não é político, é uma besta!”. O pobre-diabo, espavorido, acabou assinando.
E, no entanto, desde João Caetano ou, mais longe ainda, desde Anchieta, o teatro brasileiro está por fazer. É a nossa ta­refa. Mas há o Vietnã, e há Cuba, e há a questão racial norte-americana, e há a mortalidade infantil na Índia. Nós, de teatro, devíamos perceber a modéstia de nossos meios. Não temos re­cursos nem para consertar uma bica, para tapar um cano furado. E, de vez em quando, fazemos reuniões gravíssimas. Bem me lembro de um seminário de teatro que houve em São Pau­lo. Eram atores, atrizes, diretores, dramaturgos, cenógrafos; cada qual tinha lá a sua função nítida, exata. E, súbito, um autor co­mete a asneira suicida de falar nos problemas plásticos, dramá­ticos, poéticos da arte cênica. Um rapaz ergue-se e toma-lhe a palavra: — “Não estamos aqui para discutir teatro!”. Era um se­minário de teatro em que não se falava absolutamente de teatro.
De outra feita houve, aqui no Rio, uma assembléia da clas­se. (Quando a classe se reúne, eu tremo.) Decidia-se uma greve. E, de repente, um empresário se levanta. Apavorado com as rea­ções possíveis, gaguejou uns dez minutos. A classe não estava diretamente atingida e apenas faria uma greve de solidarieda­de. Justamente, era a “solidariedade” que engasgava o pobre empresário. Ele perguntou: — “E, se houver uma greve de al­faiates, ou de camelôs, ou de veterinários, ou de químicos, ou de táxis, nós também somos solidários?”. Pode parecer estra­nho, mas éramos, sim, solidários com todas as greves possíveis e imagináveis.
Todavia, simultaneamente com a assembléia, houve um epi­sódio patético. Enquanto fazíamos a nossa briosa retórica, esta­va a sra. Eva Todor no seu teatrinho, representando não sei o quê. E assim ganhava o pão suado, sofrido, abnegado de cada dia. Pois foi despachado um piquete para lá. Nada descreve o horror da atriz, quando seu teatro foi invadido. Dizia a santa senhora: — “Mas eu quero representar!”. Os outros a arrasa­ram: — “Estamos em greve. Suspenso o espetáculo!”. O públi­co, indignado, quase pôs fogo no teatro.
Vejam bem: — o nosso ator está tão desinteressado de ser ator que chega ao ponto de impedir que os colegas represen­tem. Mas volto à assembléia. Às três da manhã, houve um epi­sódio que chegou ao patético, raiando pelo sublime. Eis o caso: — na tribuna, um orador falava não sei de que ou contra quem. No seu fervor, babava fisicamente. E, súbito, soluça: — “Quem for brasileiro que me siga!”. Pulou do palco para a platéia. Ima­ginei que, no mínimo, ia assaltar o Poder ou decapitar pessoal­mente Maria Antonieta. Mas ninguém se mexia. Fez-se um silên­cio de rebentar os tímpanos. E o orador avançava em passadas épicas. Ele presumia que hordas ululantes iriam acompanhá-lo. E repito: — ninguém se mexia. Minto. Uma menina se levantou. Em passos rápidos e miúdos, caminhou para a saída. O rapaz ouviu o trotinho tão familiar. Não estava só, nem falhara a sua liderança. A garota o seguia, para a cadeia ou para o exílio. En­fim, estava realizado. Era líder da própria namorada.
Pelo amor de Deus, não pensem que nós, do teatro, seja­mos pessoas frívolas, inconseqüentes, irresponsáveis. Somos profundos, somos transcendentes. E mais: — só ventilamos pro­blemas inenarráveis. Um deles é a fome dos povos subdesen­volvidos. A fome! Imaginem que nem Cristo, nem Buda, nem Maomé, nem Alá, nem os santos, nem Marx, Engels, Freud e outros, resolveram as questões que tanto atribulam a classe tea­tral. Mas nós, com o nosso otimismo, vamos salvar povos, ra­ças, continentes. E para isso é que fazemos as nossas assembléias e impedimos a sra. Eva Todor de ganhar o seu dinheirinho. Nem tem sido vão o nosso esforço. Quando aqui se junta a classe tea­tral, lá nos Estados Unidos o Pentágono treme.
Dizia Machado de Assis, erradamente: — suporta-se com paciência a cólica alheia. Mentira. Nem sentimos as nossas. Está aí o Nordeste. É uma boa cólica. Nós a ignoramos. Há também o Amazonas. Outra cólica razoabilíssima. Nem a percebemos. E há a nossa mortalidade infantil. Outra e considerável cólica. Não nos preocupa. Mas gememos pelo Vietnã, por Cuba, por todos os povos subdesenvolvidos. É a cólica alheia que torce e retorce as nossas entranhas.

[11/5/1968]

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