quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

O CULTO DA IMATURIDADE

Está sendo representada, em São Paulo, a minha “farsa irresponsável”, Viúva, porém honesta. O autor é velho, a peça é velha e há personagens bem idosos ,e, eu diria mesmo, gagás. Um desses personagens, clínico famoso, chega a dizer: — “Es­tou na idade em que os médicos começam a vender amostras”. O leitor pode imaginar uma velhice unânime, a tropeçar nas ca­deiras do cenário.
Nem tanto, nem tanto. Alguém se salva da esclerose abje­ta, quase unânime. Refiro-me ao “jovem diretor” Libero Ripoli Filho. Foi com maliciosa intenção que eu coloquei aspas na sua juventude. Em nossa época, ser ou não ser jovem, eis a ques­tão. Na minha infância, o jovem tinha vergonha de o ser. Todo mundo queria ser velhíssimo. E havia casos, como o do Conse­lheiro Rui Barbosa, de septuagenários natos.
Em nossos dias acontece exatamente o inverso. Diz-se “o jovem” como se diria “o engenheiro”, “o arquiteto”, “o mé­dico”, “o advogado”, “o magistrado” etc. etc. Há também, por toda a parte, o “Poder Jovem”. E conheço um rapaz, dentista, que mandou fazer assim o seu cartão de visitas: — “Zezinho dos Anzóis Carapuça”, e, por baixo, em tipo maior, estava escrito: — jovem.
Para o nosso tira-dentes era mais funcional ser jovem do que dentista. Por aí se vê que o culto da personalidade foi subs­tituído, em boa hora, pelo culto da idade. Minto. Não é bem assim. O que há, em todos os idiomas, é “o culto da imaturida­de”. O nosso tempo exige das pessoas plena imaturidade. Não pensem que exagero. Neste final de século, a Imaturidade é a musa perfeita, sereníssima, universal.
E aqueles que, por azar, atingiram a maturidade, trataram de assumir atitudes de ginasiano em gazeta. Se o dr. Alceu for visto jogando bola de gude com os moleques, ou brincando de amarelinha, não me admirarei nada, nada. Seria uma maneira de parecer jovem ou, na pior das hipóteses, espiritualmente jo­vem. Do mesmo modo, d. Hélder. Se o querido arcebispo pu­lar muros para roubar goiabas — ficaremos encantadíssimos com a sua imaturidade.
Bem. Fiz toda a reflexão acima para voltar ao Libero Ripoli Filho. O fato de ser ele um “jovem diretor” já desencadeou em mim um processo de pânico. Desgraçadamente, não tenho, co­mo vários sacerdotes meus conhecidos, o “culto da imaturida­de”. Claro que o jovem Libero podia ser um Rimbaud. Aos de­zessete anos, Rimbaud já era Rimbaud.
Eu não o conhecia pessoalmente, senão de informação. Tre­mi quando soube que seguia a mesma linha, exatamente, do Jo­sé Celso. Sou amigo e admirador deste último. Mas a sua dire­ção nada tem a ver com o autor, nem com o teatro. Como o Vianinha, o nosso Zé Celso acha que só a platéia existe. Em su­ma: — para ele e o Libero o mistério teatral reduz-se a duzentas senhoras gordas comendo pipocas.
Dirá o leitor: — “É uma idéia”. E eu concordo. “É uma idéia”. Mas aí começa o cavo e afetuoso abismo entre mim e o Zé Celso, entre mim e o Ripoli. Assim como o Zé Celso acha que o espetáculo nada tem a ver com o autor, eu entendo que o teatro nada tem a ver com a platéia. Só reconheço na platéia uma função estritamente pagante. Não devia ter nem o direito do aplauso. O aplauso já me parece uma exorbitância.
Vou um pouco mais longe: — também acho que, por causa da platéia, o teatro é a mais incriada das artes. Mesmo os maio­res poetas dramáticos escrevem para a platéia. A rigor, não exis­te o autor dramático absoluto, já que todos aceitam a co-autoria das duzentas senhoras gordas. Elas não sabem de nada, não en­tendem de nada, não pensam nada. Mas o espetáculo é feito pa­ra elas e, repito, feito à sua imagem e semelhança. E, porque existe uma co-autoria bastarda, o teatro ainda não conseguiu ser arte.
Até que estreou, em São Paulo, Viúva, porém honesta. As primeiras notícias pareciam justificar os meus terrores. A pri­meira informação foi a de Osmar Pimentel, admirável espírito, homem de lucidez prodigiosa. Em carta a um amigo, dr. Thalino, fala o nosso Osmar dos “jovens diretores” que, “misturan­do Brecht com Chacrinha, confundem comunicação, em arte, com a participação física do auditório no cricri da encenação”. Entre parênteses, nada tenho a objetar contra o Chacrinha. Di­go mais: — Chacrinha, como tal, é um artista maravilhoso. Ao mesmo tempo, tenho que reconhecer o óbvio, isto é, que José Celso ou Ripoli não podem fazer Chacrinha com Shakespeare, ou Ibsen, ou Sófocles.
Em seguida, leio a crítica do Sábato Magaldi. Ora, nem a cambaxirra tem uma estrutura tão doce quanto o Sábato. Até sua restrição é um arrulho. E ele tem o medo, o remorso, a ver­gonha, a pena de não gostar. Apesar de todo o seu escrúpulo crítico e de toda a doçura de sensibilidade, sente-se que o Sába­to achou abominável o espetáculo. Não chega a tanto, mas a insinuação é límpida.
No próprio Jornal da Tarde, onde o Sábato escreve, está dito tudo. Antes de ser mostrada ao público, Viúva, porém ho­nesta teve quarenta representações para estudantes. E, durante o espetáculo, em plena ação, os personagens desciam para a pla­téia e corriam bandejas com sanduíches, salgadinhos, Coca-Colas, Guaranás, guardanapo de papel. Os estudantes não que­riam outra vida. No Rio, fechava-se o Calabouço; em São Pau­lo, abria-se outro Calabouço. Em suma: — eu sou o novo Cala­bouço, eu!
Eu falara nas duzentas senhoras comendo pipocas. Era uma metáfora. Mas vem o Libero e transforma a metáfora em reali­dade concreta, sim, em realidade de comer. Comia-se a realida­de com direito a Coca-Cola e Guaraná. Só que as pipocas foram substituídas por sanduíches. E os estudantes, nas primeiras re­presentações, tomaram o lugar das gorduchas.
Pelo amor de Deus, ninguém pense que eu esteja aqui fa­zendo uma restrição intelectual ao Zé Celso e ao Libero. De mo­do algum. São inteligentes, modernos, revolucionários. Mas o mal reside, precisamente, em tais méritos, em tais virtudes. A inteligência está liquidando o teatro brasileiro. Daqui por dian­te, só darei uma peça minha ao diretor que provar a sua imbe­cilidade profunda.

[16/5/1968]

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