segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

O PIOR CEGO

Era a véspera de 1º de Maio. Vou eu pela avenida Rio Bran­co e, na esquina da Sete de Setembro, cruzo com um marxista. Passo adiante. Mas ele também me vira e correu atrás de mim. Crispa a mão no meu braço: — “Nelson, Nelson!”. Paro. O mar­xista, velho asmático, está arquejante. Correra cinco metros e parecia agonizar. Diz, explicando a dispnéia: — “Asma é fogo! Fogo!”. Tem o olho enorme do asfixiado.
Sou, por índole, um efusivo. De mais a mais, acho a asma um desses males quase divinos (para outros, sagrada é a epilepsia). E, já que não pudera evitá-lo, fiz-lhe uma festa imensa: — “Como vai essa figura?”. Ajuntei, com um descaro total: — “Es­tás com uma aparência ótima!”. O outro rosnou: — “Estou com o pé na cova!”. Em seguida, depois de olhar para os lados, co­chicha: “Amanhã, não sai de casa! Não sai, percebeu?”.
Qualquer suspense, qualquer mistério, me deslumbra. Já in­teressado, pergunto: “Mas vem cá. Escuta. Mas o que é que há? O que é que vai haver?”. Olha de novo para os lados; repete: — “Fica em casa!”. A minha perplexidade assume proporções inéditas. Enojado de tanta incompreensão, acrescenta, em tom cavo: — “Lembre-se que amanhã é 1º de Maio!”. E já estendia a mão: — “Adeus”.
Travo-lhe o braço: — “Mas escuta. Amanhã não posso fi­car em casa. Tenho o jogo”. O marxista não entende: — “Que jogo?”. Preciso explicar que no Dia do Trabalhador, e aprovei­tando o feriado, o Flamengo e o Vasco iam fazer um jogão. Desta vez, ele se zangou de verdade: — “Você pensa que a História está preocupada com futebol?”. Retruquei que, se a História não ligava para os clássicos e para as peladas, eu ligava. O marxista me arrasou: — “Fique sabendo que nenhum trabalhador brasileiro — nenhum! — vai a esse jogo!”.
Eu ia objetar-lhe não sei o quê, mas já o homem me virava as costas. Ou por outra: — antes de partir, ainda disse: — “Vai haver o diabo!”. Numa impressão profunda, deixei-o partir. O marxista sumiu na primeira esquina. E o pior é que a sua respi­ração infeliz de asmático valorizava o suspense e o mistério. Pelo que se desprendia de suas insinuações e de sua dispnéia, o trabalhador não iria ao Estádio Mário Filho. Em vez disso, sairia por aí derrubando bastilhas e decapitando Marias Antonietas.
Todavia, o que mais me impressionava era a hipótese de um Flamengo x Vasco para ninguém. Ou por outra: — um Fla­mengo x Vasco em que seria eu o único e mísero espectador. Todos conhecem o Estádio Mário Filho. Aquilo é uma sibéria de concreto armado, sibéria na qual eu funcionaria como o único siberiano.
No dia seguinte, 1º de Maio, acordo e ainda impressiona­díssimo com a conversa da véspera. Depois do almoço, desço e tomo a carona do Marcello Soares de Moura. Iam também o Antônio Moniz Vianna e Raul Brunini. Eu esperava topar, a qual­quer momento, com as vítimas da fome, em hordas ululantes. E só via, por toda parte, em delírio, as bandeiras do Vasco e do Flamengo. Mas quem sabe se o sangue não estaria correndo alhures? Fosse como fosse, o clássico teria quatro espectado­res, a saber: — eu, o Marcello Soares de Moura, o Moniz Vianna e o Raul Brunini. Nas imediações do Estádio Mário Filho, passa­mos por um cavalo morto. Devia ser atropelamento. O faleci­mento do nobilíssimo animal foi a única nota realmente patéti­ca do 1º de Maio carioca.
Saltamos no último andar do Estádio Mário Filho. Do alto, vimos tudo. E, súbito, me deu vontade de gritar como um as­tronauta: — “A multidão é azul! A multidão é azul!”. Não to­das, evidentemente. Tenho visto multidões negras. Mas a de Fla­mengo x Vasco era de um azul espantoso, jamais concebido. Ah, quando o locutor do ex-Maracanã anunciou a renda. O nosso marxista se enganara em apenas 416 milhões de cruzeiros ve­lhos.
Mas foi no gol do Vasco, aos quatro minutos de jogo, que me ocorreu esta verdade súbita e inapelável: — o pior cego é o marxista brasileiro. Ele nada vê e vê menos ainda o próprio Marx. Aliás, não só o marxista. Todos nós fazemos um Marx que nada tem a ver com o próprio. Já contei o que me disse um ami­go meu, num espasmo de admiração: — “O verdadeiro Cristo é Marx!”.
Essa idealização vem sendo feita por todo este século. Dia após dia, retocamos e enriquecemos a sua figura com virtudes sublimes. Chegamos a adorar a sua furunculose. O pior é que, sem o saber, temos construído o anti-Marx, a negação do Marx. O verdadeiro Marx está nas cartas.
As cartas, as cartas! Mente-se mais num artigo, num livro, num discurso. Mas as cartas de Marx têm a autenticidade de sua furunculose. É aí que ele se abre para o mundo. E elas são tão dramáticas que ninguém as comenta. Há todo um silêncio mun­dial. O único que ousou tratar desse texto espantoso foi Madariaga. Mas que espécie de Marx emerge de sua correspondência?
Gostaria de perguntar aos meus amigos marxistas: — “Que diriam vocês de um sujeito que fosse, ao mesmo tempo, imperialista, colonialista, racista e genocida?”. Pois esse é o Marx de verdade, não o de nossa fantasia, não o do nosso delírio, mas o sem retoque, o Marx tragicamente autêntico. Para ele, o po­vo miserável deve ser destruído por ser miserável. Diz: — “povos sem história”, “povos anãos”, “escórias” etc. etc. A guer­ra generalizada destruirá todas essas pequenas nações macrocéfalas, de modo a riscar do mapa o seu nome, até.
E verificamos, então, que o santo, o Cristo, é, antes de mais nada, um impotente do sentimento. Por esse lado, as cartas são demoníacas. Como se sabe, a desgraça de Satã é sua impossibi­lidade de amar. O abominável “Pai da Mentira” não gosta de ninguém. Daria a metade de suas trevas por uma lágrima. E, por todas as cartas de Marx, não há um vislumbre de amor e só o ódio, o puro ódio. Para ele, há “povos piolhentos”, “povos de suínos”, “povos de bandidos”, que devem ser exterminados.
Ele e Engels batem palmas para o imperialismo britânico e norte-americano. Eis o que eu gostaria de notar: — são cartas que Hitler, Himmler, Goebbels assinariam, sem lhes riscar uma vírgula. E os dois têm uma convicção nítida, nítida da superio­ridade do povo alemão. Mas lendo Marx e Engels, eu penso no Vietnã, em Cuba, e também no Brasil. Por que não estaríamos inseridos entre os “povos piolhentos”? Somos ou não somos piolhentos? Há populações inteiras no Brasil que vivem numa imundície de ratas. Se nos conhecessem, Marx e Engels diriam que devemos ser riscados do mapa, até. Faltou humanidade a um e outro para sentir que os “povos piolhentos” merecem mais amor por isso mesmo, porque são piolhentos.

[6/5/1968]

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