Fértil, eu! Quer-me parecer que ela aludia às minhas invenções, às minhas imagens. Mas, no primeiro momento, por uma dessas associações fatais, cheguei a pensar nos “dias férteis” das senhoras. De uma forma ou de outra, não me cabia promover minha própria fertilidade. Fiz um gesto (o brasileiro gesticula muito) e balbuciei: — “Mais ou menos, mais ou menos”. E ficamos por aí.
Mas vejam vocês: — sou obrigado a confessar, de público, o equívoco atroz. A minha imaginação é rala e, repito, a minha imaginação é escassa. Mas sou profissional e tenho que subvencionar o leite do caçula e o sapato da mulher. E que faço? O meu processo é repetir. Arranquei de mim mesmo, a duras penas, uma meia dúzia de imagens. E, um dia sim, outro não, repito a metáfora da antevéspera. A televisão vive das reprises dos seus filmes, eu vivo das reprises das minhas imagens.
Graças a Deus, o leitor não percebe que já leu aquilo umas cinqüenta vezes. E não só repito as metáforas, como os personagens. Houve um tempo que o Otto Lara Resende estava em todas as minhas crônicas. Aliás, esta é uma das fatalidades da vida literária. Cada autor precisa ter uns personagens obsessivos, obrigatórios. Ontem foi, como já disse, o Otto; hoje, é d. Hélder. Mas há personagens ocasionais e outros definitivos.
Ou muito me engano ou d. Hélder está no seletíssimo elenco dos personagens definitivos. Aliás, faço mal quando falo em “meu” personagem. Em verdade, é personagem de todo o mundo. Ninguém abre um jornal sem esbarrar, sem tropeçar no seu nome, no seu retrato, no seu gesto, na sua palavra. Ele saiu do país e cada um pensou que íamos descansar de sua ênfase, de sua inflexão, de sua batina. Ledo engano. A ausência de d. Hélder é uma total impossibilidade. Não sei se me entendem e vou explicar. Havia entre nós e o bom padre toda uma distância enorme. Andou em Berlim, Roma, Paris. Mas, insisto: — essa distância geográfica nada significa. A ausência de d. Hélder tem a tensão, a força, o apelo da presença física.
Sábado, véspera de Botafogo x Vasco, o Salim Simão arrancava os cabelos: — “Parece que o Gerson não joga”. Alguém, ao lado, pergunta: — “D. Hélder não joga?”. Aí está dito tudo. Como o arcebispo é um hábito visual e auditivo do brasileiro, vemos a sua figura e ouvimos o seu nome por toda a parte. Ninguém se espantaria de vê-lo no jogo, de calções e chuteiras, ganhando o “bicho”. Ele está no Velho Mundo e continua aqui. O Jornal do Brasil não concede uma linha ao papa e põe d. Hélder na primeira página. Podemos dizer de d. Hélder, o padre, o que Victor Hugo dizia de Napoleão, o Grande: — “Ele! Sempre ele!”.
No momento lá se instala o homem em todas as conversas. Imaginem que, ontem, fui a um outro e instrutivo sarau de grã-finos. O sujeito que quiser saber a quantas anda o destino do Brasil não consulte o jornalista, o estudante, o sociólogo, o educador, o jornal. Esses não sabem de nada. O sujeito deve recorrer, direto, ao primeiro grã-fino ou, melhor dizendo, à primeira grã-fina. Não sei por que, mas o fato é que a grã-fina tem o que poderíamos chamar de “sensibilidade histórica”. Sabe qual é o fato ou a figura que vale historicamente. E nunca se engana.
Quando entrei no sarau, discutia-se, exatamente, d. Hélder. Ótimo, ótimo. Em Paris, entre outras coisas, dissera o nosso arcebispo: — “Não sou um Guevara de salão”. Muito bem: — não era um Guevara de salão. Seria então que tipo, que espécie de Guevara? Um dos presentes fala em “marxismo”. Um outro pula: — “Absolutamente. Não é Marx, é Freud”. E insistia, no seu fervor polêmico: — “Sim, senhor, Freud”. Disse mais, que era um Freud nada misterioso, de uma transparência ideal.
Lançada a sugestão freudiana, não houve mais sossego. Ninguém se entendia. Muitos viam d. Hélder, no mato, dando tiros como um Tom Mix. Outros o imaginavam varado de balas. Havia também a dúvida: — ousaria ele trocar a batina pelo fuzil, o altar pela barba do guerrilheiro, a oração pelo palavrão? Digo “palavrão” porque imagino que a guerrilha induz à linguagem obscena. E o pior foi quando alguém falou em Gilberto Freyre. Como se sabe, o sociólogo não acredita no assassinato de d. Hélder. Acredita muito mais no seu atropelamento. Foi um gelo total no salão. Cada qual imaginou o atropelamento de d. Hélder. Achando que o passageiro de táxi só é cumprimentado nos sinais fechados, e especialmente interessado na própria popularidade — d. Hélder só anda a pé. O pedestre é apalpado, farejado, adulado. O diabo é que não há mártir do atropelamento. E d. Hélder seria o primeiro, sim, o primeiro mártir, o primeiro herói, o primeiro Guevara da trombada. Nem Freud, nem Marx, simplesmente um táxi homicida ou um ônibus tarado.
Fosse como fosse, a hipótese de Gilberto Freyre esvaziou a figura de d. Hélder de todo o patético, de todo o sublime. Na altura das três da manhã, insinuei um novo tema: — “E os índios? E os índios?”. Silêncio. Fiz nova tentativa: — “Chato o negócio dos índios”. Nenhuma receptividade. E, então, falei do jogo Botafogo x Vasco. Foi um impacto. Cada qual teve a sua opinião, o seu palpite. Em matéria de índios, ou o silêncio, ou o bocejo.
Mas estão matando índios. São nossos semelhantes e brasileiros como qualquer um de nós. E estão morrendo. Há de chegar um dia que não sobrará um índio para contar a história. Mas como respondemos à matança? Temos uma esquerda que só treme e só esperneia quando matam um vietcong, Há uma carnificina de índios nas nossas barbas cínicas. E não fazemos nada. Nenhum guerrilheiro do Antonio’s derramara uma furtiva lágrima. Bem se vê que, em matéria de índio, nós paramos na protofonia do Guarani da Hora do Brasil.
Por que não chorar por eles? Odiamos os norte-americanos. Vá lá. Mas por que não odiar também os assassinos dos índios? Mataram mulheres, crianças. Essa matança é uma cordial rotina. No farwest americano, a paisagem está cheia de ossadas de vacas. Em nossa selva, são ossadas de índio. D. Hélder está furioso Com a questão racial dos Estados Unidos. E eu pergunto: — “E os nossos negros?”. O branco brasileiro é subdesenvolvido e o negro, muito mais. Por que d. Hélder não fala de negro brasileiro? Mas se não quer falar de negro, fale dos índios. O bom padre declara, para uma platéia mundial, que não quer ser um “Guevara de salão”. Ficam-lhe muito bem tais sentimentos. Pois seja Guevara de verdade. Compre um fuzil e vá matar assassinos de índio.
[30/4/1968]
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