domingo, 28 de dezembro de 2008

O HOMEM FATAL

Dois ou três amigos me atribuem uma fantasia fluorescen­te das Mil e uma noites. Ainda ontem, cruzei com um dos meus raros admiradores. Assim que me viu, correu para mim, como se fosse me agredir. Agarrou-se a mim e dizia e repetia, esbugalhado: — “Que imaginação! Que imaginação!”. Baixei a vista, escarlate de vergonha. Na véspera, uma vizinha já me cochicha­ra: — “O senhor é fértil. Não é fértil?”.
Fértil, eu! Quer-me parecer que ela aludia às minhas inven­ções, às minhas imagens. Mas, no primeiro momento, por uma dessas associações fatais, cheguei a pensar nos “dias férteis” das senhoras. De uma forma ou de outra, não me cabia promover minha própria fertilidade. Fiz um gesto (o brasileiro gesticula muito) e balbuciei: — “Mais ou menos, mais ou menos”. E fica­mos por aí.
Mas vejam vocês: — sou obrigado a confessar, de público, o equívoco atroz. A minha imaginação é rala e, repito, a minha imaginação é escassa. Mas sou profissional e tenho que subven­cionar o leite do caçula e o sapato da mulher. E que faço? O meu processo é repetir. Arranquei de mim mesmo, a duras pe­nas, uma meia dúzia de imagens. E, um dia sim, outro não, re­pito a metáfora da antevéspera. A televisão vive das reprises dos seus filmes, eu vivo das reprises das minhas imagens.
Graças a Deus, o leitor não percebe que já leu aquilo umas cinqüenta vezes. E não só repito as metáforas, como os perso­nagens. Houve um tempo que o Otto Lara Resende estava em todas as minhas crônicas. Aliás, esta é uma das fatalidades da vida literária. Cada autor precisa ter uns personagens obsessi­vos, obrigatórios. Ontem foi, como já disse, o Otto; hoje, é d. Hélder. Mas há personagens ocasionais e outros definitivos.
Ou muito me engano ou d. Hélder está no seletíssimo elen­co dos personagens definitivos. Aliás, faço mal quando falo em “meu” personagem. Em verdade, é personagem de todo o mun­do. Ninguém abre um jornal sem esbarrar, sem tropeçar no seu nome, no seu retrato, no seu gesto, na sua palavra. Ele saiu do país e cada um pensou que íamos descansar de sua ênfase, de sua inflexão, de sua batina. Ledo engano. A ausência de d. Hél­der é uma total impossibilidade. Não sei se me entendem e vou explicar. Havia entre nós e o bom padre toda uma distância enor­me. Andou em Berlim, Roma, Paris. Mas, insisto: — essa distân­cia geográfica nada significa. A ausência de d. Hélder tem a ten­são, a força, o apelo da presença física.
Sábado, véspera de Botafogo x Vasco, o Salim Simão ar­rancava os cabelos: — “Parece que o Gerson não joga”. Alguém, ao lado, pergunta: — “D. Hélder não joga?”. Aí está dito tudo. Como o arcebispo é um hábito visual e auditivo do brasileiro, vemos a sua figura e ouvimos o seu nome por toda a parte. Nin­guém se espantaria de vê-lo no jogo, de calções e chuteiras, ga­nhando o “bicho”. Ele está no Velho Mundo e continua aqui. O Jornal do Brasil não concede uma linha ao papa e põe d. Hél­der na primeira página. Podemos dizer de d. Hélder, o padre, o que Victor Hugo dizia de Napoleão, o Grande: — “Ele! Sem­pre ele!”.
No momento lá se instala o homem em todas as conversas. Imaginem que, ontem, fui a um outro e instrutivo sarau de grã-finos. O sujeito que quiser saber a quantas anda o destino do Brasil não consulte o jornalista, o estudante, o sociólogo, o edu­cador, o jornal. Esses não sabem de nada. O sujeito deve recor­rer, direto, ao primeiro grã-fino ou, melhor dizendo, à primei­ra grã-fina. Não sei por que, mas o fato é que a grã-fina tem o que poderíamos chamar de “sensibilidade histórica”. Sabe qual é o fato ou a figura que vale historicamente. E nunca se engana.
Quando entrei no sarau, discutia-se, exatamente, d. Hélder. Ótimo, ótimo. Em Paris, entre outras coisas, dissera o nosso ar­cebispo: — “Não sou um Guevara de salão”. Muito bem: — não era um Guevara de salão. Seria então que tipo, que espécie de Guevara? Um dos presentes fala em “marxismo”. Um outro pula: — “Absolutamente. Não é Marx, é Freud”. E insistia, no seu fer­vor polêmico: — “Sim, senhor, Freud”. Disse mais, que era um Freud nada misterioso, de uma transparência ideal.
Lançada a sugestão freudiana, não houve mais sossego. Nin­guém se entendia. Muitos viam d. Hélder, no mato, dando tiros como um Tom Mix. Outros o imaginavam varado de balas. Ha­via também a dúvida: — ousaria ele trocar a batina pelo fuzil, o altar pela barba do guerrilheiro, a oração pelo palavrão? Digo “palavrão” porque imagino que a guerrilha induz à linguagem obscena. E o pior foi quando alguém falou em Gilberto Freyre. Como se sabe, o sociólogo não acredita no assassinato de d. Hél­der. Acredita muito mais no seu atropelamento. Foi um gelo total no salão. Cada qual imaginou o atropelamento de d. Hélder. Achando que o passageiro de táxi só é cumprimentado nos si­nais fechados, e especialmente interessado na própria popula­ridade — d. Hélder só anda a pé. O pedestre é apalpado, fareja­do, adulado. O diabo é que não há mártir do atropelamento. E d. Hélder seria o primeiro, sim, o primeiro mártir, o primeiro herói, o primeiro Guevara da trombada. Nem Freud, nem Marx, simplesmente um táxi homicida ou um ônibus tarado.
Fosse como fosse, a hipótese de Gilberto Freyre esvaziou a figura de d. Hélder de todo o patético, de todo o sublime. Na altura das três da manhã, insinuei um novo tema: — “E os ín­dios? E os índios?”. Silêncio. Fiz nova tentativa: — “Chato o negócio dos índios”. Nenhuma receptividade. E, então, falei do jogo Botafogo x Vasco. Foi um impacto. Cada qual teve a sua opinião, o seu palpite. Em matéria de índios, ou o silêncio, ou o bocejo.
Mas estão matando índios. São nossos semelhantes e brasi­leiros como qualquer um de nós. E estão morrendo. Há de che­gar um dia que não sobrará um índio para contar a história. Mas como respondemos à matança? Temos uma esquerda que só tre­me e só esperneia quando matam um vietcong, Há uma carnifi­cina de índios nas nossas barbas cínicas. E não fazemos nada. Nenhum guerrilheiro do Antonio’s derramara uma furtiva lágri­ma. Bem se vê que, em matéria de índio, nós paramos na protofonia do Guarani da Hora do Brasil.
Por que não chorar por eles? Odiamos os norte-americanos. Vá lá. Mas por que não odiar também os assassinos dos índios? Mataram mulheres, crianças. Essa matança é uma cordial roti­na. No farwest americano, a paisagem está cheia de ossadas de vacas. Em nossa selva, são ossadas de índio. D. Hélder está furioso Com a questão racial dos Estados Unidos. E eu pergunto: — “E os nossos negros?”. O branco brasileiro é subdesenvol­vido e o negro, muito mais. Por que d. Hélder não fala de ne­gro brasileiro? Mas se não quer falar de negro, fale dos índios. O bom padre declara, para uma platéia mundial, que não quer ser um “Guevara de salão”. Ficam-lhe muito bem tais sentimen­tos. Pois seja Guevara de verdade. Compre um fuzil e vá matar assassinos de índio.

[30/4/1968]

Nenhum comentário: