domingo, 11 de janeiro de 2009

A HERÓICA RESISTÊNCIA

Ah, o brasileiro mata e morre por uma frase. Nunca me es­queço de uma crônica dominical do Carlinhos de Oliveira. Ter­minava assim: — “A solidão do homem é um problema políti­co”. Era a chave de ouro. Antigamente, os poetas não a dispen­savam. Soneto sem “chave de ouro” morria ao nascer e, repi­to, morria antes da primeira Chupeta. Carlinhos não faz sone­tos e, se os faz, não os publica. Mas é um parnasiano. E usa, nas suas crônicas, a perfeita, irretocável chave de ouro.
A mim interessa, e muito, o destino das frases. “A solidão dos homens é um problema político.” Saiu no domingo; e já no dia seguinte, segunda, alguém me perguntava: — “O que é que o Carlinhos quis dizer com isso?”. Há um velho e obtuso preconceito, segundo o qual todas as frases querem dizer algu­ma coisa. Nem sempre. No caso do Carlinhos, nem ele nem a frase querem dizer rigorosamente nada.
E foi por isso que Carlinhos a fez, e foi por isso que Carli­nhos a publicou. Mas certas frases vivem, precisamente, de mis­tério e de suspense. A nitidez seria fatal. “A solidão dos homens é um problema político.” Na pior das hipóteses há uma melo­dia e o resultado auditivo basta. Mas entendo o drama do cro­nista. Os melhores autores têm três ou quatro frases encalhadas. É preciso aplicá-las. Mas onde e quando? O ideal seria que o dr. Brito pagasse e publicasse, no espaço da crônica, uma única e escassa frase. Mas tal não acontece.
O autor traz no ventre um romance. E quando trabalháva­mos ambos com os Blochs, o Carlinhos fez insinuações sobre uma “obra ciclópica” que estaria realizando, no silêncio de sua água-furtada. Seriam umas oitocentas ou, talvez, mil páginas. E o nosso Carlinhos estaria disposto a lá inserir a “frase”, que o ralava. Mas não saía uma vírgula do tal romance. Até que, um dia, exausto da própria frase, pingou-a na primeira crônica. “A solidão dos homens é um problema político.” Se fosse na guer­ra, o Carlinhos seria preso como espião, pois todos veriam, aí, uma senha para o inimigo.
Bem. Escrevi tudo isso para chegar a uma verdade eterna, ou seja: — a pequena causa, ou o motivo irrelevante, pode pro­duzir o grande efeito. Uma frase mínima, ínfima, quase levou o Carlinhos a escrever um romance monumental, uma espécie de Guerra e paz, sei lá. Outras vezes, uma simples e irrespon­sável piada faz História. Por exemplo: — a Revolução Francesa. Abanando-se com a Revista do Rádio, pergunta Maria Antonieta: — “O povo não tem pão? Coma brioche”. E, com isso, com meia dúzia de palavras, morreu um mundo e nasceu outro.
Também um paletó, um vago paletó, pode mudar os desti­nos de um povo. Tentarei explicar. Normalmente, um paletó só interessa ao alfaiate, que o faz, e ao freguês, que o veste. Do mesmo modo, uma gravata. Uma gravata não é nada. Muitos nem a usam. O único que não a dispensa é o defunto. O cadáver mais favelado tem sempre uma gravata. Lembro-me de um pastor pro­testante que, em 1920, morreu na minha ma. Morreu, se bem me lembro, de tifo. E foi enterrado de gravatinha borboleta.
Não sei se vocês acompanharam pelos jornais o episódio do paletó. Era em Brasília. E para lá embarcou uma comissão dos Cem Mil que ia se avistar com o presidente Costa e Silva. Um dos seus membros era meu amigo, e quase dizia irmão, Hé­lio Pellegrino. Este pôs o seu melhor terno e a sua melhor gra­vata. Muito bem. A comissão ia resolver problemas de alta trans­cendência, ia propor nobilíssimas e urgentíssimas reivindicações.
E lá chegam os intelectuais e estudantes. (No dia seguinte, eu vi, pelos retratos dos jornais, que os dois estudantes estão de cara amarrada. Tenho vontade de pedir à fotografia para sor­rir, sorrir como os namorados sorriem para o lambe-lambe.) En­tra a comissão e vem o assessor da presidência espavorido. Os dois estudantes não têm paletó, nem gravata. E, como o proto­colo exige uma coisa e outra, era preciso que ambos se compu­sessem.
Pode, não pode, e criou-se o impasse. O diabo é que o pro­blema era aparentemente insolúvel. Os dois estudantes tinham o paletó e a gravata no Rio. Felizmente, surgiu a idéia: — dois contínuos emprestariam tanto o paletó como a gravata. Mas os estudantes não aceitaram. Absolutamente. Queriam ser recebi­dos sem paletó e sem gravata. Outros assessores vieram. Discu­te daqui, dali. Apelos patéticos.
Vejam como um nada pode mudar a direção da História. De repente, os estudantes presos, o Calabouço, as reformas, tu­do, tudo passou para um plano secundário ou nulo. Os dois es­tudantes faziam pé firme, esbanjavam uma formidável energia física e mental contra o paletó e contra a gravata. O paletó e a gravata eram agora “O Inimigo”. Vesti-los seria a abjeção suprema, a humilhação total, a derrota irreversível.
O rádio e a tv pediam paletós e gravatas, assim como quem pede remédios salvadores. Paletós de luxo e gravatas de Paris, de Londres, de Berlim, foram doados. Mas os dois permaneciam inexpugnáveis. Gravata, não! Paletó, jamais! Ora, o Brasil está por fazer, e repito: — todos os dias o Brasil pede que alguém o faça. E há o Amazonas. É uma imensa Sibéria florestal. É pre­ciso que o Brasil conquiste seus próprios desertos, antes que outros os ocupem. E há a fome do Nordeste. Todos os dias, os jornais gastam seu papel e sua tinta com a nossa mortalidade infantil. Pois bem. E dois estudantes reduzem o Brasil à ques­tão shakespeariana: — pôr ou não pôr um paletó, pôr ou não pôr uma gravata. O Poder os esperava e, dócil ao protocolo, de gravata e paletó.
Se um de nós por lá aparecesse, havia de imaginar que tu­do estava resolvido, e atendidas todas as reivindicações especí­ficas da classe. Claro! Uma vez que se discutiam paletós e gra­vatas, como se aquilo fosse uma assembléia acadêmica de alfaia­tes, a “Grande Causa” estava vitoriosa. Libertados os estudan­tes, aberto, e de par em par, o Calabouço, e substituída toda a estrutura do ensino. E continuava a “Resistência”, muito mais épica e muito mais obstinada do que a francesa na guerra. Até que, de repente, veio do alto a ordem: — “Manda entrar, mes­mo sem paletó, mesmo sem gravata”. Era a vitória. E, por um momento, os presentes tiveram a vontade de cantar o Hino Nacional.

[5/7/1968]