terça-feira, 6 de janeiro de 2009

O HERÓI SEM RISCO

Em todas as idades e em todos os idiomas, o herói era aquele que arriscava, na melhor das hipóteses, a própria pele. Não ha­via heroísmo sem perigo. Foi assim em Dumas pai, foi assim em Walter Scott. D’Artagnan teve de morrer umas 25 vezes. E a bem-amada do herói era, ao mesmo tempo, a sua viúva. Se um Ivanhoé custava a morrer, familiares e vizinhos já punham em dú­vida o seu heroísmo.
Fiz a pequena introdução acima para chegar às greves de França, Eis o que eu queria dizer: — lá se inaugurou, com os estudantes e com os operários, um tipo novo de herói e um ti­po inédito de epopéia. Refiro-me ao herói sem risco e à epo­péia sem ônus. Pela primeira vez, em qualquer época e em qual­quer idioma, chega-se ao heróico, chega-se ao épico, chega-se ao sublime sem um arranhão, sem uma fratura e, mais, sob for­te proteção policial.
Um amigo bate o telefone para mim: — “Os garçons ocu­param os hotéis e seqüestraram os patrões”. Compreendo o pâ­nico ou, por outra, não compreendo o pânico. Meu amigo não quer enxergar o lado humorístico do episódio. Não deixa de ter sua graça a inversão hierárquica e de papéis: — os proprie­tários servindo os garçons e embolsando as propinas. Por ou­tro lado, as esposas, amantes e filhas dos patrões vão para a co­pa lavar pratos e para a cozinha fazer o bife, a carne assada, o jiló.
Todavia, o que me espanta é, repito, o nenhum risco. Não estou fazendo um exagero caricatural. Fazer greve na França é muito menos arriscado do que atravessar uma rua na Guanaba­ra. Quando passamos de uma calçada para outra calçada, a hi­pótese de uma trombada é sempre cogitável. Ao passo que, na França, os gerentes são raptados e não devolvidos. E não acontece nada, nem ao raptor, nem à vítima. Ou por outras palavras: — é uma Revolução Francesa sem vítimas.
Porque, no fundo, também as vítimas estão de acordo. To­do mundo concorda. E o que é mais degradante: — até a polí­cia concorda. Dirá alguém que resta o exército. Mas, quem lim­paria as ruas, se os garis também são grevistas? Acontece, en­tão, esta coisa patética: — incumbe-se o soldado francês de vi­rar latas, como os cães sem dono e os gatos vadios. Como a polícia é solidária, e como o exército faz limpeza pública — nin­guém ameaça ninguém. As Forças Armadas pararam.
Mas o herói sem risco acaba não convencendo ninguém. A Guerra de Secessão, nos Estados Unidos, foi o que se sabe. Lincoln dissera: — “Não quero governar uma nação que é me­tade livre e metade escrava”. E, então, a metade livre brigou para continuar livre e a outra, para continuar escrava. Foi uma morte recíproca e total. No fim de tudo, suspirava-se: — “Quem não morreu na guerra civil?”. Estavam todos mortos, inclusive os vivos. Quando foram chamar um sobrevivente para o almo­ço, bocejou: — “Morri”.
Bem se vê que o grevista francês não é um defunto voca­cional. Também na Guerra Civil Espanhola todo mundo mor­reu. Mais uma vez constatou-se que a História não avança um passo, e não recua um passo, sem sangue e, repito, muito san­gue. Na Espanha, seria justo uma morte unânime, porque um lado era canalha e o outro lado, também. Mas na “revolução cultural” da França não há canalhas. Nem isso. Em 17, na Rús­sia, houve todo um elenco, toda uma antologia de canalhas. Um deles, e perfeito, irretocável, foi o nosso tão conhecido Joseph Stalin.
Eis o espanto geral: — e por que ninguém morre na Fran­ça? Porque lá não existe uma causa nítida, uma causa precisa. E só se morre, ou só se mata por uma causa. É uma causa, boa, má ou péssima, que faz os assassinos, as vítimas e, até, os cana­lhas. Até prova em contrário, ninguém sabe, na França, por que e para que se viram os carros, se queima o lixo e se seqüestram os gerentes. Outro amigo me diz, no telefone: — “Deve haver um explicação. Tudo tem explicação”.
Aquilo ficou na minha cabeça: — “Tudo tem uma explica­ção”. De noite, exatamente às três da madrugada, acordo. Era a úlcera. Não estava doendo e eu sentia, justamente, a falta da dor. Levantei-me, vim para a janela. Pensava na França. Tentei explicar a “revolução cultural”. Eis o que me ocorreu: — a Fran­ça tem todo um potencial de heroísmo inédito, frustrado. Não fez a guerra, e repito: — os outros lutaram por ela. Os alemães perfuraram Sedan e deslizaram em solo francês. E todo o povo, com atraso de vários anos, precisa sentir-se herói. Cada carro virado é um tanque alemão. Os franceses estão fazendo a guer­ra. Essa ferocidade tardia, espetacular, é uma vingança contra a capitulação.
Mas o que eu queria dizer é que o herói sem risco surge por toda parte. Li, outro dia, um artigo admirável do dr. Alceu. Era sobre Régis Debray. E o dr. Alceu considerava a prisão do fran­cês uma ignomínia. Meu Deus, que idéia faz da guerrilha o nos­so Tristão de Athayde? Pensa talvez que é um piquenique? Uma farra? E que os guerrilheiros são frívolos, álacres peraltas? Qual­quer um sabe que não há, obviamente, uma guerrilha sem riscos precisos. Assim como o guerrilheiro mata é também natural que o matem. E, se leva um tiro na cara, como um passarinho, vamos convir que tal contingência nada tem de extraordinário. Surpreendente é que um guerrilheiro sobreviva indefinidamen­te. Queria o dr. Alceu que o exército boliviano carregasse Guevara na bandeja, e de maçã na boca, como um leitão assado?
Volto à França. Não admiramos o grande povo na derrota. Podemos admirá-lo na greve? Hoje, até os artistas param. Mas, por toda a ocupação nazista, Barrault não morreu uma única e escassa vez. E os pianistas, os violinistas, os violoncelistas iam fazer recitais para os eruditos generais inimigos. Ontem ou an­teontem incendiaram a Bolsa. Mas é também um terrorismo sem perigo. O incêndio foi aplaudido e quase bisado. Na ocupação, nenhum garçom pôs formicida na sopa nazista. Sim, a França faz o anti-herói, a antiepopéia, e nos dá a imagem da anti-França.

[27/5/1968]

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